domingo, outubro 25, 2020

Em 'Borat Subsequent Moviefilm' o humor enfrenta uma realidade que quer superar a ficção


Catorze anos depois, Sacha Baron Cohen encontra um mundo pós-Borat que realizou na prática tudo aquilo que o primeiro Borat ridicularizava em 2006: confederados, supremacistas, o Sul Profundo da América e negacionistas conspiratórios que encontraram na Internet e na tecnologia digital (que, acreditávamos, nos tornaria mais sábios) o seu mundo para crescer e se reproduzir. E chegaram ao Poder. Como será que o novo filme de Sacha Cohen, “Borat Subsequent Moviefilm” (2020, disponível na Amazon Prime Video), vai conseguir fazer uma sátira crítica de uma realidade que parece ter superado qualquer ficção imaginada pelo Borat de 2006? Resposta: através do paroxismo - enfrenta o desafio de superar a realidade que está além da mockufiction fazendo um humor crítico travestido de comédia vulgar. 

Estamos em 2020, um mundo pós-Borat, catorze anos depois do primeiro filme do personagem de Sacha Baron Cohen. Um mundo com gigantescas redes sociais, câmeras de vigilância por todos os lugares e décadas de reality show na TV pulsando em nosso imaginário na chamada Era da Informação. Lá em 2006, achávamos que décadas depois nos tornaríamos mais sábios com toda essa evolução tecnológica.

Borat Subsequent Moviefilm (2020) encontra um mundo que é exatamente o oposto daquilo que esperávamos em 2006: o crescente negacionismo do Holocausto, de vacinas, da esfericidade da Terra ou de qualquer coisa que cheire a Ciência, junto com a escalada do extremismo de direita, a espiral de teorias conspiratórias como Pizzagate e QAnon dominando a Internet e o relativismo da pós-verdade que o efeito bolha das redes sociais acabou criando.

Em 2006, Borat nos fazia rir de um repórter da gloriosa República do Cazaquistão que se deixava levar pelos valores americanos, carregava um saco de cocô em um educado jantar conservador, destruía acidentalmente US$ 400 de quinquilharias confederadas, e bradava em uma loja de armas: “Eu me sinto como a estrela do cinema americano Dirty Harold... Vamos lá, faça meu dia, judeu!”.

Mas agora, Borat tem um sério desafio: como ridicularizar uma realidade que superou aquela pitoresca América conservadora do mockumentary de 2006? Hoje, Trump e Bolsonaro, seguido pelos seus séquitos de apoiadores, emulam de tal maneira as bizarrices de “Dirty Harold” que muitas vezes o humor e a caricatura podem se tornar não mais crítica, mas espelho e elogio.

Este Cinegnose chama esse fenômeno de “canastrice na política” – fenômeno hiper-real em que a realidade procura imitar ou até superar a ficção.



Como, por exemplo, o caso da banda “Massacration”, criada pelo grupo de humor “Hermes e Renato” da extinta MTV Brasil. É uma banda que faz paródia da atitude poser das bandas metaleiras: os fslsetes, os vocais metaleiro castrati, roupas apertadas com muito metal, o tom apocalíptico etc. Parece que os metaleiros não entenderam a paródia: “Massacration” passou a ser levada a sério por metaleiros reais, chegando, inclusive, a abrir festivais do estilo musical como mais uma atração - talvez porque os roqueiros do metal sejam tão caricatos quanto a caricatura e acabam, por isso, se reconhecendo nela. 

De paródia crítica, “Massacration” virou um espelho para orgulhosos metaleiros posers.

Sacha Cohen enfrenta esse desafio de uma realidade que parece querer superar a mockufiction. Como? Levando o hilário e as calamidades ao paroxismo. Como, por exemplo, na sequência em que Borat e sua filha (sim! Ele tem uma filha...) vão a um baile de debutantes republicano em um estado sulista – já dar para imaginar o “sal da terra” presente no evento. 

A filha fala no ouvido do pai que está começando a ter o “sangue lunar” (como é chamada a menstruação no Cazaquistão, dentro do universo do filme). Sem problemas: Borat decide então mostrar ao distinto público a “Dança da Fertilidade” cazaque. O que vemos é uma bizarra e desajeitada dança sangrenta. Vemos olhares constrangidos dos conservadores... menos para alguns, que começam a achar tudo pervertidamente interessante...



O exagero hiperbólico já começa com o quilométrico título: “Borat Subsequent Moviefilm: a entrega do prodigioso suborno ao regime americano para obter benefícios para a nação outrora gloriosa do Cazaquistão”.

Por isso, o espectador deve se preparar quando for assistir ao filme: as fronteiras entre o humor e a comédia vulgar serão deliberadamente ignoradas. Vemos um Sacha Cohen ainda mais confrontador, porque o mundo Pós-Borat superou a própria ficção de 2006 e agora está à beira do abismo. Por isso, para Cohen, a sátira nunca poderá ser suave.

O Filme

Descobrimos de início que o bigodudo jornalista cazaque caiu em desgraça: condenado a trabalhos forçados no Gulag para sempre, por ter jogado a República do Cazaquistão na desgraça: o sucesso do primeiro filme trouxe a vergonha para a sua família, sua aldeia, e para toda a nação.

Até o momento em que governo ditatorial tem uma ideia para voltar a colocar o país no mapa: que tal Borat retornar à América com um presente sexy para alguém do governo Trump? Mais precisamente, o “Vice Pussy-Grabber” Mike Pence. O presente? Um macaco “sexy”, sucesso em filmes pornôs no país... digamos que o macaco não sobrevive à viagem internacional. Quem sai da caixa nos EUA é a sua clandestina filha, Tutar Sagdiyev (Maria Bakalova), cujo sonho é ser chamada na América como “Jéssica Parker Sagdiyeve”.

Em muitas cenas, a atriz búlgara Bakalova rouba a cena... com uma alegria tão anárquica que parece ter saído de algum laboratório de Sacha Cohen. 

Tutar é feliz em viver em uma gaiola no Cazaquistão (como recomenda um manual governamental para pais com filhas) e sonha em viver numa gaiola dourada como “Melanie Trump”. Até descobrir que na América as mulheres republicanas guiam carros, vivem em casas e têm empregos. 



Tutar protagoniza as cenas mais ultrajantes do filme com a gradual descoberta da própria individualidade. Por exemplo, o monólogo que faz sobre a descoberta dos prazeres da masturbação ou quando se transforma em repórter de um site de extrema-direita. É quando protagoniza cenas que, inclusive, viralizaram na Internet: a entrevista com Rudoph Giulliani que aceita os assédios da jovem repórter.

O filme começou a ser rodado nos EUA antes do início da pandemia. Com uma produção acelerada para ser lançado antes das eleições nos EUA, no decorrer do filme começamos a ver pessoas usando máscaras e pedindo distância. E os primeiros discursos negacionistas contra o vírus, ora descrito como “chinês”, “liberal” ou “democrata”. Como, por exemplo, Mike Pence afirmando que os EUA têm, até o momento, apenas 15 casos do coronavírus.

O trajeto de Borat e sua filha Tutar inicia no Sul profundo da América até chegar a Nova York e a infame entrevista com Giuliani. No caminho, uma sequência hilariante de situações e entrevistas forçadas, como com a instagrammer e coach de “Sugar Babies”, Macey Chanel, dando aulas de como encontrar um marido “pé-na-cova”.




O “Efeito Massacration”

O talento de Sacha Cohen em conversar com pessoas moralmente questionáveis está no centro do novo Borat. Desde a padeira que escreve no bolo a pedido de Borat “Judeus não nos substituirão”, um estilista que dá resposta direta à pergunta “qual a melhor cor para uma família racista?” ou quando ele interrompe Mike Pence em uma entrevista vestido de “McDonald Trump”.

Porém, o ponto alto que reflete essa tensão entre o a sátira e uma realidade que parece superar a própria sátira é quando Borat fica em quarentena com dois teóricos da conspiração de meia-idade e de extrema-direita chamados Jerry Holleman e Jim Russell. É um autêntico duelo entre Borat e uma realidade política que emula a mockufiction.

O paroxismo de Borat chega ao auge no paradoxo do Holocausto: chocada, Tutar descobre no Facebook que o Holocausto jamais existiu. Mas como? Se todo o ódio dos cazaques contra os judeus se funda no orgulha da existência de alguma coisa como o Holocausto na História? Até que mais tarde, entre o alívio e o orgulho, Borat descobrir que o Holocausto realmente existiu. Esse paradoxo entre o negacionismo de extrema-direita e o antissemitismo cazaque é um exemplo do enfrentamento de Borat em um mundo Pós-Borat. 

Um mundo que define como “polêmica” alucinações como a conspiração “QAnon” na qual Hillary Clinton bebe sangue de criancinhas num plano do Estado Profundo que envolveria cabala, tráfico de crianças, antenas 5G, China e políticos democratas.

O efeito “Massacration”, como descrito acima, (essa tensão entre paródia e realidade) fica evidente quando Borat aparece numa manifestação de supremacistas brancos chamada “Marcha Pelos Nossos Direitos” disfarçado de um músico country. Sacha Cohen faz uma performance que enlouquece os red necks cantando versos como “Obama, o que vai fazer?/Injetar-se com a gripe de Wuhan!”. 

Todos cantam juntos numa reação daqueles que veem na paródia o melhor espelho de si mesmos. Essa cena é a que melhor define o mundo pós-Borat de 2006, no qual Sacha Cohen alertava algo que ainda estava nascendo: a canastrice como a nova força política.


         

Ficha Técnica 

Título: Borat Subsequent Moviefilm

Diretor: Jason Woliner

Roteiro: Sacha Baron Cohen, Anthony Hines

Elenco: Sacha Baron Cohen, Maria Bakalova

Produção: Four by Two

Distribuição:  Amazon Prime Video

Ano: 2020

País: Reino Unido, EUA

 

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