sexta-feira, março 20, 2020

Os círculos dos vivos e dos mortos no horror sul-africano "8"


“8” (2019) é um horror sul-africano que foge totalmente os cânones do horror e do gótico euro-hollywood cêntrico. A partir da tensão racial como pano de fundo (os eventos ocorrem no auge do apartheid nos anos 1970) uma família branca é assombrada pela mitologia ancestral negra sul-africana, fugindo do tradicional maniqueísmo do gênero e figurar o confronto do Bem e Mal, Vida e Morte dentro dos ciclos da Natureza – a Morte capaz de tirar a vida, mas também capaz de criar vida. E o simbolismo mágico do número oito: o símbolo do infinito e do constante fluxo de energia. No caso do filme, o infinito intercâmbio entre vida e morte. O número que consiste em dois círculos ou anéis que se interligam e interagem: o mundo dos vivos e dos mortos. Filme sugerido pelo nosso colaborador Felipe Resende.

Em linhas gerais, no gênero horror encontramos dois grandes subgêneros: o gótico (seja inglês ou norte-americano com as convenções desse subgênero – p.ex., casarões vitorianos, bonecas antigas, sótãos misteriosos etc.) e magia negra (rituais Wica ou de matriz africana, vodu, maldições, pactos macabros com o Mal etc.).
O que unifica esses subgêneros é a luta da vida contra a morte, do Bem contra o Mal, o amor contra as trevas, da família contra falanges malignas, vivos contra aqueles que morreram e insistem em permanecer por aqui e assim por diante.
Isso sem falar na construção asséptica, estereotipada e clichê de feiticeiros, videntes, principalmente quando se trata do Mal originado em folclores ou rituais de matriz africana.
8: A South Africa Horror History (2019) é uma surpreendente descoberta num gênero cinematográfico que parece ter esgotado todos os seus possíveis temas e fixado todas as narrativas em rígidos cânones dos subgêneros. Surpreendente porque, para começar, o estreante diretor e escritor Harold Hölscher faz uma interessante fusão do cânone gótico com o folclore negro sul-africano associado a demônios, pactos maléficos e maldições.
Tudo isso com um background político e social: a estória ocorre em 1977, em pleno auge do regime de apartheid sul-africano, quando uma família de brancos de classe média muda-se para uma fazenda no interior do país, ao lado de um pequeno povoado negro ancestral. E que convive com demônios e maldições. 
Logicamente aquela família de brancos que traz uma cultura ocidental vai conhecer essa realidade da pior forma possível.

8 literalmente enreda a narrativa com a complexidade dos simbolismos dos mitos populares sul-africanos: para começar, as montanhas que cercam a região, comparadas às costas de serpentes as quais, dependendo da luminosidade do dia, exibe suas escamas para o sol.
Estão lá os cânones dos dois subgêneros descritos acima: um casarão vitoriano estilizado, uma menina com sensibilidade para perceber os aspectos mágicos da realidade, um quarto infantil repleto de bonecas antigas; mas também a sabedoria dos pretos velhos, mitologias sobre os mundos dos vivos e mortos que se tocam naquela região do país, criaturas sombrias, sombras, fumaças e fogo – elementos trabalhados simbolicamente com maestria pelo diretor.
A grande virtude de 8 é, a partir da tensão racial sugerida pelo pano de fundo do apartheid e de uma família branca assombrada pela mitologia ancestral negra sul-africana, fugir do tradicional maniqueísmo do gênero e figurar o confronto do Bem e Mal, Vida e Morte dentro dos ciclos da Natureza – a Morte capaz de tirar a vida e criar vida. 


Um delicado equilíbrio que é quebrado pela chega de um demônio que quebra essa harmonia. Mas mesmo assim, a vida transcorre por caminhos misterioso. Até que o Mal é “derrotado” porque, ele próprio, faz parte desse delicado ciclo da Natureza.

O Filme

A falência nos negócios obriga William Ziel (Garth Breytenbach) a retornar à fazenda que herdou do seu pai em uma região distante no interior da África do Sul, junto com sua esposa Sarah (Inge Beckmann) e a jovem sobrinha órfã de William, Mary (Keita Luna).
O casal tenta reunir os fragmentos de uma série de revezes recentes (nos negócios, a impossibilidade de Sarah engravidar e a morte dos pais da menina Mary), na esperança de transformar o antigo casarão da fazenda em algo parecido com um lar.
No começo, tudo é difícil: o gerador não funciona e a casa está sem energia elétrica, enquanto Sarah está nervosa e insegura em seu novo papel de madrasta. Mary aproveita que seus novos pais estão preocupados e discutindo para vaguear pela desconhecida floresta que envolve a fazenda.
Quando se depara com Lazarus (Tshamano Sebe), um senhor negro e idoso que no passado trabalhou na fazenda para o pai de William. Apesar das suspeitas de Sarah (que parece ter uma intuição ruim sobre Lazarus – o que só faz aumentar a tensão racial) William o contrata por ser um trabalhador experiente, por anos, naquela fazenda.
Lazarus e a jovem Mary começam a criar uma estreita amizade: ambos perderam seus entes queridos – ela os pais e Lazarus perdeu a esposa e a filha em um incêndio devastador.
O velho negro é atormentado pelas tristes lembranças daquele lugar, mas parece carregar um segredo ainda mais sombrio que o assombra constantemente – uma criança demoníaca que carrega em um saco de couro com um apetite insaciável por almas humanas.


Com a perda trágica da filha, Lazarus fez no passado algum tipo de acordo demoníaco para tentar reviver seus entes queridos. Mas tudo que obteve foi uma maldição, sendo, por isso, expulso pela comunidade local. Tornando-se um andarilho, carregando aquele pesado saco de couro, em busca de almas humanas para saciar o apetite de um pequeno demônio.
Aos poucos Sarah começa a ver a confirmação seus temores, enquanto o personagem insondável de Lazarus ganha a amizade da menina Mary. Ele se mostra um velho sábio e, talvez, mais do que isso: uma espécie de sensitivo e xamã, profundo conhecedor dos ciclos da vida e morte, impressionando Mary – uma pequena jovem curiosa e interessada pelo folclore e mitologias misteriosas da cultura africana da localidade.

A “semiótica da macumba”

A morte, suas representações e simbolismos, está em toda parte no filme. Até chegar na sequência final na qual a simbologia do número “8” surge, o que define o próprio título da produção – o número oito como o símbolo do infinito e do constante fluxo de energia, no caso da narrativa o infinito intercâmbio entre vida e morte. O número que consiste em dois círculos ou anéis que se interligam e interagem: o mundo dos vivos e dos mortos.


A tensão racial e o aparente maniqueísmo da família de brancos vítima da maldição maléfica originada diretamente do folclore negro africano são dissolvidos pela ambiguidade do personagem Lazarus: ele é ao mesmo tempo algoz, um sábio xamã e um pai que caiu nas garras do Mal ao ver sua família se perder em um incêndio.
Esse maniqueísmo que é sugerido no primeiro ato do filme, desaparece ao percebermos que o que está em jogo naquela fazenda e na aldeia que expulsou Lazarus faz parte de um plano muito maior no círculo infinito da vida e morte – representado pelo simbolismo do número oito.   
Sombras, fumaça e fogo é o tripé simbólico central do filme, através do qual se desenvolve o tema central do filme: o contato entre o mundo dos vivos e dos mortos. 
Em postagem anterior (“A Semiótica da Macumba” – clique aqui) discutíamos como a chamada “magia simpática” (regida pelo princípio da semelhança) busca uma contiguidade física ou material entre a ordem sobrenatural e feiticeiros e xamãs – objetos ou elementos que criem semelhança, analogia entre a realidade material e o material.
Observávamos como o mundo mágico é estruturado por uma rígida ordem linguística ou semiótica:
Xamãs, feiticeiros ou médiuns são aqueles que possuem dons de estabelecerem relações de contiguidade com espíritos ou forças sobrenaturais. Formas fluidas (fumaça, cachaça, água) são condutores indiciais. Pode parecer bizarra tal analogia, mas assim como no desenho animado onde vemos o ratinho Jerry flutuando no ar ao seguir o rastro do cheiro do queijo (o cheiro como índice que conduzirá ao referente), da mesma forma a fumaça do charuto, os odores fortes de ervas e incensos são liames físicos através dos quais forças e entidades conectam com o indivíduo que manipula a magia.

Em todo o filme há sequências sobre objetos ou elementos que criam a contiguidade mágica entre “céu” e “terra”, “mortos e vivos”. Os principais são fumaça e fogo (há também as montanhas, por exemplo) – representações simbólicas, respectivamente, do espírito dos mortos e do élan dos vivos.
Como dissemos acima, a morte está em toda parte do filme, frequentemente figurada como algo bonito, poético, dentro de um plano maior de um círculo infinito – o brilho quente de uma vela, uma delicada mariposa que dedicadamente Mary cuida (a metáfora da transformação da lagarta como a passagem dos vivos pela morte), o enterro emocionado de uma lagarta morta. 
Dessa maneira, 8 é um surpreendente horror folclórico, bem longe das fontes eurocêntricas do gótico e do horror. Por isso, é um filme que torna tudo imprevisível com reviravoltas difíceis de se prever. 


Ficha Técnica 

Título: 8: A South African Horror History
Diretor: Harold Holscher
Roteiro: Harold Holscher
Elenco: Inge Beckmann, Keita Luna, Garth Breytenbach, Tshamano Sebe
Produção: Man Makes a Picture Productions
Distribuição: Koch Films
Ano: 2019
País: África do Sul

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