Cadê os black blocs? De 2013 a 2016, em toda manifestação de rua, lá estavam eles fazendo poses épicas para câmera e cinegrafistas em meio a chamas e destruição, enquanto eram incensados por alguns pesquisadores e artistas como “linda anarquia” antiglobalização. Por que desapareceram? Onde estavam nas grandes manifestações de rua, no dia 15, por todo o País contra os cortes na educação? Talvez suas ausências tenham uma relação direta com o atual governo que ocupa Brasília, embora o “manifesto do apocalipse” compartilhado por Bolsonaro nas redes sociais aponte para um governo vítima dos “interesses corporativos”. Ironicamente, um “manifesto” escrito por um espécime do mercado financeiro com seus interesses bem corporativos – um “não-acontecimento”. Sem black blocs, Bolsonaro responde às ruas através de um manifesto semioticamente criptografado para elevar o moral das milícias virtuais e reais. Numa estratégia de manter-se sempre no centro das atenções, seja como herói ou “boi de piranha”. Um discurso monofásico e repetitivo, como apontou o linguista Noam Chomsky em relação à estratégia midiática de Donald Trump, emulada por Bolsonaro.
Nos anos 1950, o linguista Noam Chomsky criou uma das mais influentes abordagens sobre a gramática das línguas humanas – a “Sintaxe Gerativa”. Em rápidas palavras, consiste na descoberta de que todas as línguas humanas são capazes de criar um número infinito de expressões linguísticas (frases, sintagmas etc.) a partir de um conjunto limitado de fonemas, morfemas, palavras e regras computacionais. Uma surpreendente capacidade gerativa de fazer um uso infinito de recursos finitos.
Talvez isso explique a indignação de Chomsky com a criação artificial do consenso político na opinião pública através da mídia por meio de um discurso monofásico, repetitivo, previsível, mas de grande eficiência ideológica. Uma linguagem com pouquíssima variação. Repetitiva, mas eficiente.
Isso pode ser percebido na entrevista de Noam Chomsky concedida a Jan Ahrens do El País. Para Chomsky, “as pessoas já não acreditam nos fatos” porque "as pessoas não confiam mais em ninguém” – clique aqui.
“Nem mesmo nos veículos de comunicação?”, indagou Jan Ahrens.
“A maioria está servindo os interesses do Trump”, disparou Chomsky diante da surpresa do jornalista.
“Mas há alguns críticos, como The New York Times, The Washington Post, CNN...”, pontuou o repórter.
E Chomsky respondeu:
“Olhe a televisão e as primeiras páginas dos jornais. Não há nada mais que Trump, Trump, Trump. A mídia caiu na estratégia traçada por Trump. Todo dia ele lhes dá um estímulo ou uma mentira para se manter sob os holofotes e ser o centro da atenção. Enquanto isso, o flanco selvagem dos republicanos vai desenvolvendo sua política de extrema direita, cortando direitos dos trabalhadores e abandonando a luta contra a mudança climática, que é precisamente aquilo que pode acabar com todos nós”.
Chomsky em seu escritório na Universidade do Arizona, Tucson (Apu Gomes - El País) |
Despolitização de extrema-direita
Acredito que é sob esse olhar perspicaz de Chomsky que deve ser interpretado o “texto bomba”, “manifesto do apocalipse”, “manifesto de Dallas” ou simplesmente “carta bomba” que o capitão da reserva dublê de presidente Jair Bolsonaro compartilhou no WhatsApp para seus contatos.
Escrito por Paulo Portinho (filiado ao Partido Novo pelo qual concorreu a vereador no Rio de Janeiro em 2018 e trabalha na Comissão de Valores Mobiliários - CVM), o típico “textão de Facebook” no qual desfila todos os clichês da atual onda de despolitização promovida pela extrema-direita.
Lamentos sobre um país “ingovernável” porque a política tem que se submeter a “conchavos”. Além disso, o textão diz que Bolsonaro ajuda a revelar toda essa “podridão” quando confronta os “interesses das corporações”.
“Não existe compromisso de campanha que pode ser cumprido sem que as corporações deem suas bênçãos”, para terminar em tom apocalíptico alerta para a ingovernabilidade, desemprego, inflação. Afinal, a “agenda de Bolsonaro não é dos interesses das corporações” e, por isso, o presidente está de mãos atadas pela “velha política”. Por isso, “Sell”, venda! Típica exortação do mercado financeiro no qual o missivista trabalha – ele parece fazer uma curiosa distinção entre “interesses de corporações” (os vilões) e “mercado financeiro” (no qual trabalha).
Não-acontecimento
O episódio tem todos os ingredientes de um “não-acontecimento” ou “pseudo-evento”, no sentido atribuído por Daniel Boorstin (clique aqui) ou Jean Baudrillard (clique aqui). O que aproxima ainda mais das observações de Chomsky: estratégia deliberada para manter sempre Bolsonaro no centro das atenções enquanto o “flanco selvagem” põe em ação a política de terra arrasada neoliberal.
"Não sabia que ia ter tanta repercussão...", diz "surpreso" o autor Paulo Portinho |
Se não, vejamos:
(a) Tanto o autor como o dublê de presidente se dizem “surpresos” com a repercussão do textão. Em suas santas inocências ou espontaneidade, pretendiam apenas partilhar “com amigos e contatos” ... Como se em redes sociais fosse possível algum tipo discrição.
(b) Paulo Portinho publica o texto nos dias que antecediam às manifestações contra os cortes na educação no dia 15 de maio – que acabaram sendo gigantescas por todo País.
(c) Timing e oportunidade: Bolsonaro compartilha o textão “com os amigos” em meio a uma agenda midiática negativa – a quebra do sigilo bancário do filho Flávio Bolsonaro e Fabrício Queiroz e os protestos nas ruas contra os cortes nas verbas da educação.
(d) Paulo Portinho é um típico espécime do mercado financeiro: criar pseudo-eventos, boatos ou não-notícias para produzir movimentos especulativos de compra e venda. Por isso, o tom genérico de “interesses das corporações”, assim como jornalistas criam não-notícias a partir de expressões como “segundo fontes”...
(e) O “manifesto do apocalipse” tem todos os elementos do terrorismo de mercado financeiro análogo às publicações financeiras da Empiricus Research durante à guerra híbrida que culminou no golpe de 2016 – banners pipocando por toda a Internet com previsões assustadoras para o País caso a presidenta Dilma e o PT não fossem tirados do poder.
(f) Óbvio que o mercado financeiro é o principal interessado por esse jogo de chantagem e terra arrasada que mantenha Bolsonaro sempre sob os holofotes: o capitão jogado à opinião pública como um “boi de piranha”, enquanto as “reformas” são gestadas e até ampliadas – Paulo Guedes agora quer “fundir” o Banco do Brasil com o Bank of America...
"Desculpe o transtorno, estamos mudando o País..." |
Cadê os black blocs?
Mas a principal evidência da natureza de não-acontecimento desse “manifesto de Dallas” pode ser encontrada respondendo a uma simples pergunta: cadê os black blocs nas manifestações de rua em 15 de maio?
Figuras onipresentes (2013-16) no pelotão de frente das manifestações que pediam desculpas pelo transtorno por estarem “mudando o Brasil”, tão rapidamente como surgiram, desapareceram. Atraíram a simpatia de acadêmicos e pesquisadores que, romanticamente, viam nos jovens que posavam epicamente para as câmeras e cinegrafistas, o “novo” ou a ressurgimento do anarquismo nas táticas de ação direta nas ruas. Supostamente, grupos “antiglobalização” que, também, combatiam as “corporações”.
Consumada a “mudança” do País, sintomaticamente sumiram – coincidentemente, também na esteira das revoluções coloridas pelo planeta, black blocs sempre desaparecerem após a consumação de uma Revolução Popular Híbrida – clique aqui.
Se realmente essas ações diretas fossem táticas antiglobalização anarquistas, também estariam nas ruas contra essa consequência nefasta da globalização financeira sobre a soberania dos estados nacionais: cortes na educação e nos programas sociais exigidos pela banca credora.
Bolsonaro precisa da crise |
Como todo não-acontecimento, o “manifesto do apocalipse” joga com o chamado “dilema midiático” que sequestra tanto a mídia como a esquerda: se quiserem ignorar o “buzz”, ficará por fora do debate público; porém se participam, darão visibilidade involuntária ao não-acontecimento – essa é a infernal fórmula da intitulada “mídia espontânea” das estratégias de marketing de guerrilha. Como bem intuiu o linguista Noam Chomsky
Assanhada e cheia de esperanças, a esquerda começa a ver fissuras, um governo em crise ou a própria confissão do desejo de renúncia do capitão da reserva, emulando uma espécie de Jânio Quadros em pleno século XXI.
Outros até veem a “família mais poderosa do Brasil” (os Marinhos) abandonando o governo Bolsonaro no telejornalismo da TV Globo ou nos editoriais do jornal do grupo.
É óbvio e gritante que o compartilhamento “desavisado” (o capitão supostamente nem lê o que compartilha) foi uma resposta aos protestos bem-sucedidos dos estudantes nas ruas. Bolsonaro quer elevar o moral da tropa e também colocar nas ruas e redes sociais suas milícias analógicas e digitais.
E também que a única alternativa para a esquerda para furar a armadilha do dilema midiático na guerra semiótica criptografada é ocupar as ruas numa escalada crescente, até tornar o País, aí sim, realmente ingovernável.
Desde que sofreu controversa facada na campanha eleitoral, a guerra semiótica de Bolsonaro tem como meta fugir de qualquer debate político-econômico e colocá-lo sempre no campo conspiratório e moralista. Criar deliberadamente polêmicas, dissonâncias, crises e, através da estratégia do dilema midiático, convocar mídia e oposição para jogar os holofotes em Bolsonaro. Seja como herói lacrador e mito ou simplesmente como “boi de piranha”.
Esse é o único papel que um deputado do baixo clero poderia assumir: emissor de um discurso monofásico, repetitivo, que emula o discurso de extrema-direita de Donald Trump. Um ruído insuportável demais para um linguista como Chomsky, fascinado pelas potencialidades infinitas da linguagem.
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