São
as raras as sequências que superam o filme original. “Uma Noite de Crime 2:
Anarquia” (“The Purge: Anarchy”, 2014) é um desses raros casos. Não pela
estética que, como no original, emula uma produção B. Mas porque é um perfeito
documento do espírito de época atual, pós-globalização, no qual o
hiper-capitalismo financeiro procura criar uma nova ordem a partir do rescaldo
da crise de 2008: o aumento do "excremento populacional" (idosos, aposentados, inválidos, imigrantes,
excluídos, miseráveis, refugiados etc.) que nem mais para serem explorados
servem. Se o primeiro filme refletia as reações da ultra-direita contra o
“Obama Care”, nessa sequência o roteiro de James DeMonaco reflete a nova ordem
pós-globalização: formas invisíveis de controle populacional com o objetivo de
exterminar o “excedente humano”. DeMonaco dá ao espectador nessa sequência uma
noção mais ampla dos efeitos e propósitos da “Purgação” – a noite anual em que
todas as formas de crime são permitidas, sob o pretexto de servir de válvula de
escape para a besta interior presente em cada um de nós, garantindo a ordem
social. Mas os propósitos de controle social são mais sombrios.
A humanidade, que
outrora, em Homero, foi um objeto de espetáculo para os deuses olímpicos,
tornou-se agora objeto de espetáculo para si mesma. Sua autoalienação atingiu
um grau que lhe permite vivenciar sua própria destruição como um gozo estético de
primeira ordem.
Walter Benjamin, “A
Obra de Arte na Época da Sua Reprodutibilidade Técnica”
Para além dos aspectos estéticos
e linguísticos, este Cinegnose interessa-se pelo cinema principalmente como
representação do imaginário, sensibilidade ou transformações de uma época. Como
o historiador francês Marc Ferro considerava, principalmente o cinema de ficção
abre um excelente caminho no campo psicossocial, político e econômico de um
momento – as narrativas ficcionais seriam como “verdades parabólicas”, como
definia Umberto Eco – leia do pesquisador “Viagens na Irrealidade Cotidiana”.
Embora “parabólicas”, são
representações tão próximas da realidade que, em dados momentos, a realidade
parece até imitar a arte. Como, por exemplo, as conexões do filme Uma Noite de Crime 2: Anarquia (The Purge: Anarchy, 2014) com os
incidentes em Baltimore em 2015 – protestos contra a morte, em circunstâncias
misteriosas, de um negro sob custódia da polícia. Motins definidos pela mídia
como “A Purgação (“Purge”) de Baltimore”: nas redes sociais circularam
mensagens de que uma “purgação” (em referência ao filme The Purge) aconteceria a partir de um shopping e depois iria para o
Centro.
Resultado: 144 incêndios em veículos
e 15 em prédios. Os motins se iniciaram logo depois do lançamento de Uma Noite de Crime 2: Anarquia (2014),
sequência do The Purge de 2013.
The Purge como reflexo da Pós-Globalização
O primeiro filme de 2013 nos
apresentou um futuro próximo distópico no qual o Governo institucionalizou uma
verdadeira noite de crimes chamada “A Purgação”: durante doze horas estão
suspensas toda as leis e qualquer cidadão pode cometer crimes sem ser
punido. Uma medida que criaria uma
espécie de válvula de escape que diminuiria dramaticamente os números da
violência no restante do ano.
Os ricos usam essa noite de
purgação para chacinar as minorias como pobres e inválidos que, supostamente,
atrasariam o progresso da América.
O filme foi uma resposta direta à
reação popular conservadora que condenou a disposição do então presidente Obama
desenvolver um sistema público de saúde (o “Obama Care”) para atender classes
socioeconômicas baixas.
O filme focava uma família de
classe média que tentava sobreviver àquela noite sangrenta.
Mas na sequência Uma Noite de Crime 2: Anarquia o foco
agora é desviado para a periferia – “chicanos” trabalhadores precarizados e
personagens de classe média baixa e remediados. No primeiro filme víamos uma
nova América recriada pelos “Novos Pais Fundadores” com taxa zero de violência,
crescimento econômico e mínima taxa de desemprego. O filme baseava-se na ideia
simplista e preconceituosa conservadora: os pobres e inválidos atrasam a nação.
Por que? Ora, porque não servem para nada! Pior, vivem às custas do Estado.
Porém, essa continuação detalha
com uma precisão sombria o porquê do sucesso econômico da Nova América
construída pelos “Pais Fundadores”: matar aqueles que nem mais para serem explorados servem – uma nova e eficiente forma de controle populacional para
exterminar o excremento social dos chamados “excluídos”.
Uma
Noite de Crime 2: Anarquia representa um momento bem diferente daqueles
dos conservadores se opondo ao “populismo” do “Obama Care”. Aqui, vemos o
momento pós-Globalização no qual estamos entrando – uma nova economia que deve
lidar com o rescaldo da globalização pós crise de 2008: o aumento da desigualdade,
da pulverização das garantias sociais, guerras e terrorismo. O fim dos
explorados e o crescimento exponencial dos excluídos: aqueles que nem mais para
serem explorados servem ao Capitalismo. Esse é o pano de fundo da necessidade
de um brutal controle populacional, como representado pelo filme.
O Filme
Uma Noite de Crime 2: Anarquia leva
a “purgação” para caminhos obscuros não abordados no primeiro filme. O filme
original parece extremamente controlado perto dessa continuação: aqui, os
social e economicamente mais fracos são os mais vulneráveis sem ter como pagar
uma proteção (há um mercado negro de venda de proteções). Há agressão sexual,
vingança, destruição em massa, saque, roubo e comportamentos verdadeiramente
psicóticos.
A história evolui a partir de
três conjuntos de personagens que involuntariamente se encontram para resistir
à violência reinante:
Leo (Frank Grillo) que sai às
ruas armado até os dentes em um carro blindado com uma agenda bem definida:
vingar-se do assassino do seu filho – ele o atropelou alcoolizado;
Eva (Carmen Ejogo) e Cali (Zoe
Soul), mãe e filha hispânicas que vivem de subempregos cuja renda é para pagar
caros remédios para o seu avô com uma doença degenerativa. O seu prédio é
invadido por um grupo de choque militarmente organizado que as arrasta para as
ruas para serem executadas por alguma forma ritual;
Shane (Zach Gliford) e Liz (Kiele
Sanchez), um casal em conflito de relacionamento que há poucas horas do início
da purgação veem-se nas ruas com o carro quebrado e perseguidos por um numeroso
bando mascarado.
Relutantemente, Leo resgata Eva e
Cali das mãos do misterioso grupo militarizado e na fuga encontram Shane e Liz
perdidos nas ruas que ecoam gritos, tiros e explosões. Cabe a ele, fortemente armado, conduzir esse grupo
à salvo no seu destino, e ainda arrumar um tempo para realizar a sua vingança
pessoal até os últimos minutos da Purgação.
Leo é o anti-herói taciturno –
ele teria tudo para ser mais um “vigilante” assassino, mas encontra um pouco de
humanidade em toda selvageria da Purgação.
Mas a sua ação como um herói que
salva pessoas não será aceita por aqueles que gerenciam a noite de crimes. Essa
é a vantagem em relação ao filme original The
Purge – Uma Noite de Crime 2:
Anarquia é uma das raras sequências que consegue ser superior ao original.
Isso porque aqui o diretor e roteirista James DeMonaco dá ao espectador uma
noção muito melhor dos efeitos e propósitos mais amplos da Purgação.
Eliminar o excremento populacional
E a revelação é sombria. Não se
trata apenas de criar uma válvula de escape instintiva para baixar os índices
de criminalidade. Trata-se de um extermínio dentro de uma luta de classes que,
em apenas uma noite, é explicitada.
A América figurada no filme vive
uma nova fase do Capitalismo: o sistema econômico precisa se livrar dos
próprios efeitos deletérios que ele criou – expansão da desigualdade, do
desemprego e das doenças (somáticas e psíquicas) numa sociedade que colocou em prática o projeto
neoliberal: não há mais Estado de Bem Estar Social e nem garantias sociais.
Por isso o Capitalismo tem que se
livrar do refugo, do lixo social que nem mais para ser explorado serve. A noite
de Purgação é a última forma mais eficiente de controle populacional –
mobilizando ódio, rancor, raiva e ressentimento, fazem todos voltarem-se contra
todos. E os mais vulneráveis social e economicamente irão morrer por não
poderem pagar sua própria proteção.
Uma
Noite de Crime 2: Anarquia já sinalizava em 2014 essa nova fase do
Capitalismo pós-Globalização e da crise de 2008. Dos explorados, o sistema acabou criando uma nova categoria
sócio-econômica: a dos excluídos da
própria exploração. Devem ser eliminados por formas híbridas de controle
populacional, para além das guerras e violência – indução à má alimentação, aos
alimentos transgênicos, ao sedentarismo, o sucateamento deliberado de toda
forma de assistência ou proteção social etc.
Claro que The Purge é uma “verdade parabólica”, uma representação exagerada e
distópica. Mas a Purgação já começou, por meio de invisíveis formas de controle
populacional.
Afinal, na sua fase atual de
hiper-financeirização, o modo de produção capitalista não necessita tanto das
formas clássicas de exploração da mais-valia, tal como Karl Marx descreveu em “O
Capital”. Por isso, agora há um incômodo excedente populacional que precisa ser
eliminado.
A Noite de Crime do filme é a
forma populista de direita de cumprir essa necessidade estrutural do novo
sistema pós-globalização. Nada como direcionar a raiva, ódio e ressentimento
das massas contra elas mesmas. E ainda tirar de tudo isso, entretenimento.
Como antecipou Walter Benjamin na
epígrafe que abre essa postagem: as massas assistem fascinadas ao espetáculo da sua própria destruição.
Ficha Técnica
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Título: Uma Noite de Crime
2: Anarquia
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Diretor: James DeMonaco
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Roteiro: James DeMonaco
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Elenco: Frank Grillo, Carmen Ejogo, Zach Gliford, Zoe
Soul, Kiele Sanchez, Justina Machado
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Produção: Universal Pictures,
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Distribuição: Universal Home Entertainment (DVD)
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Ano: 2014
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País: EUA
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