A princípio, o filme estoniano “Klass”(2007) é mais um filme sobre
assassinatos seriais em escolas, na linha de “Elephant”, “Tiros em Columbine”
ou “Precisamos Falar Sobre Kevin”. Também baseado em um incidente real, “Klass”
se esforça em não ser mais um filme “sobre” violência escolar, mas procura
falar “da” violência, sem estilização tradicional do tema – fetichização das
armas e atiradores vestidos com trajes snipers negros. Formado por um cast de
atores amadores e não-atores, “Klass” arranca performances espontâneas e
brutais sobre a história de Joosep, vítima de bullying e desprezo de uma classe
que cria um mundo fechado. Incompreensível para adultos preocupados com seus
próprios afazeres. “Klass” vai ao fundo psicológico do nascimento do extremo desejo
de vingança: uma Nova Ordem na qual família e escola pouco significam ou
compreendem um movimento que está muito além da Razão: uma secreta aliança
entre Id e Superego – autoritarismo aliado ao prazer sadomasoquista. Filme sugerido pelo nosso onipresente leitor Felipe Resende.
Filmes
sobre bullying e tiroteios seriais em escolas como Elephant (2003) de Gus Van Sant, o documentário Tiros em Columbine (2003) de Michael
Moore ou Precisamos Falar sobre Kevin
(2011) em geral transitam entre o sensacionalismo e a esteticização da
violência ou o viés sócio-político no qual a violência juvenil é o reflexo de
uma sociedade armada e militarizada.
Mas o
resultado final é sempre uma metalinguagem. Sempre um discurso sobre a violência do que uma figuração da violência. Camadas de racionalização
sobre uma tragédia. Tentativas de explicar o incompreensível – as tragédias
criadas por espécies de anjos vestidos de preto que primeiro mataram seus
próprios superegos para depois matar as pessoas em volta.
Um
filme desafiador a esse viés cinematográfico é o filme estoniano Klass (2007), dirigido por Iilmar Raag,
um ex-chefe do canal de TV pública. O filme provocou uma série de controvérsias
em grupos de discussão em escolas na Estônia. Principalmente porque Klass foi baseado em um incidente real.
Sem
falar que a polêmica pública criada por Klass
supostamente teria provocado o chamado “Efeito Copycat” (efeito midiático de
imitação) na vizinha Finlândia: tiros
nas escolas Kauhajoki (10 pessoas mortas) e Jokela (8 vítimas fatais) – sobre
esse conceito, clique aqui.
Klass se esforça em examinar o
nascimento de um ato tão extremo de vingança diante de episódios de assédio. No
filme, a mídia e internet aparecem muito circunstancialmente pelo cotidiano
escolar dos jovens – certamente para tentar fugir dos velhos clichês
hipodérmicos dos games, filmes e redes sociais como incitadores de violência e
ódio.
Raag
preferiu trabalhar com atores amadores ou não-atores, para extrair mais força e
espontaneidade das sequências. Por isso, é muito mais impactante do que os
congêneres norte-americanos, fascinados pelo fetiche das armas e uniformes
pretos de snipers – agradeça ao looby
da indústria de armamentos, bem ativa em Hollywood.
Muito além das armas
Em Klass vemos jovens apenas de jeans,
tênis, toucas de lã. E as armas só aparecem nas sequências finais. Numa
história contada de forma simples, linear, mas dolorosa e realista: é
impactante ver como as coisas progridem de mal a pior. A violência sem
planejamento ou estética: apenas uma explosão irracional de vingança. O diretor
Raag está mais interessado em se aprofundar na violência física e tortura
psicológica do que em armas, ação e gritos.
Porém,
o mais importante em Klass é a
figuração dos pais, da estrutura (ou a falta) familiar e a impotência da
escola: professores não estão mais diante de jovens neuróticos e produtos da
repressão sexual de famílias patriarcais, na qual restaria à escola ou dar
continuidade à repressão (por meio da disciplina e autoridade escolares) ou
fazer um libelo da liberdade e autonomia – como no filme Sociedade dos Poetas
Mortos (1990).
Temos
uma sala de aula fechada em si mesma, como uma comunidade hermética, onde
adultos e professores nada representam – todas as medidas disciplinares são
simplesmente ridicularizadas através do cinismo e amoralidade. Na qual vítima e
algozes parecem criar uma dinâmica sadomasoquista: de cada lado há uma
adaptação à situação, como se o bullying fosse uma nova ordem, um novo e
natural ritual de iniciação. Cuja instituição escolar deixou há muito de desempenhar
o papel.
O Filme
Klass é narrado de forma episódica (em cinco
capítulos, como os cinco dias de uma semana escolar), em capítulos separados
por letterings e introduzido em linguagem vídeo-clip.
Acompanhamos
Joosep, um novo aluno que parece entrar em um universo fechado no qual ele é
apenas um esquisito intruso. Sua personalidade fechada, introvertida apenas
reforçam essa aura, criando o fenômeno relacional da “profecia
autorrealizável”: quanto mais assediado, mais fechado se torna. Confirmando a própria
razão do assédio.
Tudo
começa a piorar quando Kaspar, também um novo garoto na classe (porém, mais
sociável) começa inesperadamente a defender Joosep. O líder dos valentões,
Anders, vê nisso um enfraquecimento da sua autoridade. E através de ameaças (por
exemplo, interferindo nas tentativas de namoro com Thea) Anders tenta
dissuadi-lo.
Mas
Kaspar não pode recuar mais: com o conflito direto com o líder, agora é a sua
honra que está em jogo. Ao mesmo tempo, os valentões (com o coro das risadas
sarcásticas das garotas) inventam métodos cada vez mais refinados para fazer
Joosep diariamente “pedir desculpas” para os valentões. Tudo em meio a torturas
psicológicas e físicas.
Até o
ápice: Anders e Joosep são violentamente forçados a posar para fotos como se estivessem
tendo uma relação sexual homo-afetiva. Isso levará as duas vítimas a cruzar a
linha – eles não verão mais os adversários como seres humanos, preparando o
terreno para a vingança a tiros.
Os
adultos aparecem como personagens tão ocupados com seus afazeres que são
incapazes de perceberem o que está ocorrendo. A começar pelo pai de Joosep: um
ex-militar machista que explora financeiramente o próprio filho – Joosep ganha
algum dinheiro com trabalhos de computação gráfica. Enquanto a diretora da
escola simplesmente ameaça Kaspar com expulsão: “nós nem tínhamos a obrigação
de tê-lo nessa escola,” diz.
O
próprio Kaspar criado pela avó, alheia a evidentes sinais de algo estava muito
errado na escola.
O
trabalho do diretor por trás das cenas com os jovens atores levou quase um ano,
participando na formação dos papéis e linhas de diálogo. Conseguindo arrancar
uma força autêntica. Como na cena da festa, refletindo realisticamente a vida
dos jovens.
A “Nova Ordem”
Esse
abismo entre jovens e adultos representado em Klass apenas confirma uma sombria previsão de Theodor Adorno e Max
Horkheimer no livro clássico “Dialética do Esclarecimento”: a ascensão de uma
nova ordem social bem diferente da velha ordem patriarcal adulta – enquanto no
passado a velha ordem era instituída pela aliança do ego com o super-ego (a
ordem repressiva fundamentada na Razão), a Nova Ordem (da sociedade fundada no
entretenimento e na indústria cultural) é construída na surpreendente aliança
entre id e superego.
A forma como uma classe escolar inteira aceita
a liderança do valentão Anders e seus asseclas como uma ordem natural das
coisas (descontar o ódio e desprezo sobre o “esquisito” Joosep e o “desmancha
prazeres” Kaspar), mostra a intolerância, ódio e assédio como uma nova ordem.
Ordem na qual o prazer sadomasoquista (as instâncias dos prazeres regressivos
do psiquismo) assume o controle.
Tanto
Joosep (a vítima) como Anders (o algoz) parecem prisioneiros de uma dialética quase hegeliana entre
senhor/escravo. No filme, em vários momentos, vislumbram-se oportunidades nas
quais uma simples denúncia de algum dos envolvidos quebraria o infernal ciclo
vicioso de auto-realização.
Mas
parece que estamos em uma rede de relações daquilo que se chama “sujeitos
fractais” – indivíduos que replicam inconscientemente um padrão do Todo: a
própria sociedade.
Se
pensarmos que tragédias históricas como o nazi-fascismo surgiram dessa estranha
aliança entre autoritarismo e o prazer sádico-masoquista do desconto da tensão
social sobre um bode-expiatório (judeus, homossexuais, ciganos, eslavos etc.),
então perceberemos que as origens desses rompantes de violência escolar tem
raízes muito mais profundas do que apenas filmes, games ou internet.
Na
verdade, tudo isso são apenas suportes dessa estranha Nova Ordem diagnosticada
por Adorno e Horkheimer ainda no século XX: a naturalização da violência e
desprezo contra o outro como ritual de iniciação de uma sociedade
individualista e competitiva. Alimentada pelo prazer psíquico de impingir a
própria dor no outro.
Ficha Técnica
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Título: Klass
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Diretor: Ilmar Raag
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Roteiro: Ilmar Raag, Vallo
Kirs
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Elenco: Vallo Kirs,
Pärt Uusberg, Lauri Pedaja, Paula Solvak, Mikk Mägi
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Produção: Amrion,
Eesti Television (ETV)
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Distribuição: Vivarto
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Ano: 2007
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País: Estônia
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