segunda-feira, agosto 10, 2015
Wilson Roberto Vieira Ferreira
Com inegável influência do grupo inglês de humor Monty Python, “Nothing”
(2003) acompanha a vida de dois amigos que inexplicavelmente pulam para uma
outra dimensão onde apenas restaram eles próprios e a casa, cercados pelo Nada
– um aparente gigantesco fundo infinito branco. Ou será que estão prisioneiros
no interior de suas próprias mentes? Dirigido por Vincenzo Natali (diretor do
cult de terror “Cube”), o filme é uma experiência minimalista com argumento
PsicoGnóstico: naquele nada, acharam que viraram deuses, capazes de deletar
qualquer coisa de que não gostem (inclusive suas memórias). Mas há um perigo:
poderão deletar a si mesmos. Filme sugerido pelo nosso leitor Felipe Resende.
O humor do grupo
inglês Monty
Python sempre direcionou sua munição contra os papéis sociais,
autoridades e a moral, mostrando o absoluto ridículo e non sense do funcionamento das instituições. Por décadas essa trupe
inglesa desconstruiu as normas sociais nas suas piadas em programas de TV e
filmes no cinema como Em Busca do Cálice
Sagrado ou O Sentido da Vida.
Com a virada do século, o diretor canadense Vincenzo
Natali (fã do Monty Phyton, mais precisamente de um de seus integrantes, Terry
Gilliam) decide focar esse humor non sense na própria mente humana, resultando
no conceito de “realidade editada”, nos termos do diretor.
O resultado foi o
filme Nothing (2003), um dos filmes
mais minimalistas e estranhos dos últimos tempos: dois losers que não esperam nada da vida se defrontam com o próprio
nada: são inexplicavelmente jogados para uma dimensão que figura como um enorme
fundo infinito branco – eles só têm a si mesmos, sua casa e um gigantesco nada
por todos os lados como uma espécie de um gigantesco e branco tofu!
Vicenzo Natali já
vinha de experiências minimalistas com baixo orçamento como Elevated (1997) e o cult de terror Cube (1997). Mas em Nothing, Natali radicaliza: dois atores contracenando em um fundo
infinito branco que certamente é a representação do interior de suas próprias
mentes.
Com muitas alusões
ao estilo Monty Python de humor (os movimentos de câmera delirante estilo Terry
Gilliam, a clássica cena dos braços e pernas decepadas do cavaleiro negro no Em Busca do Cálice Sagrado, cabeças
falantes sem corpo como em As Aventuras
do Barão e Munchausen, os diálogos non sense etc.) Natali embarca em uma
viagem PsicoGnóstica – os atores não são mais prisioneiros em um cosmos
material. Agora a prisão é suas próprias mentes.
Em entrevistas
Vincenzo Natali afirmava que Nothing
era o lado divertido do filme anterior Cube.
Certamente, o diretor evoluiu com um conjunto de filmes gnósticos pós-Matrix
que começaram a focar o funcionamento da mente como uma nova prisão dos
protagonistas. Filmes da época como Vanilla
Sky (2001), Brilho
Eterno de uma Mente Sem Lembranças (2004) ou A Passagem (Stay, 2005)
mostravam constantemente protagonistas que de alguma forma tornaram-se
prisioneiros ou estavam perdidos no labirinto das suas memórias e nos
mecanismos da mente.
Roteiristas e
diretores como Charllie Kauffman ou Michel Gondry não estavam mais interessados
em ilusões virtuais, tecnológicas ou cenográficas que enganavam protagonistas como
em Matrix ou Show de Truman. O século XXI agora oferecia os perigos e as
armadilhas da mente.
O Filme
Nothing acompanha a vida de dois perdedores chamados Dave
(David Hewlett) e Andrew (Andrew Stan). Dave teve uma carreira musical
fracassada e arrumou um pequeno trabalho para sobreviver, enquanto Andrew sofre
de agorafobia e não consegue sair de casa: ironicamente trabalha como agente de
turismo na Internet, vendendo pacotes turísticos como se já tivesse conhecido o
mundo – aqui uma visão cínica de como no mundo virtual cada um é capaz de criar
a melhor imagem de si mesmo.
Eles criaram uma
amizade perfeita e moram em uma pequena casa espremida entre duas autoestradas
poluídas e barulhentas. De repente, tudo começa a dar errado: Dave é acusado de
peculato no trabalho (na verdade, sua namorada roubou o dinheiro hackeando o
sistema da empresa), Andrew é acusado de molestar sexualmente uma pequena
bandeirante vingativa (não me perguntem porquê) e a prefeitura envia uma equipe
de demolição para botar a casa deles a baixo por ser considerada uma ameaça à
segurança do tráfego.
Desesperados, Dave
e Andrew veem bater na sua porta a polícia, advogados e operários da
prefeitura. Eles trancam a porta, fecham as janelas e desejam que todo mundo vá
embora e... funciona! Até melhor do que pretendiam: simplesmente o mundo
desaparece e descobrem que a casa simplesmente ficou suspensa em um vazio,
branco e macio “como um tofu”, como compara Dave. Tudo o que permaneceu foram
eles próprios e a casa com tudo no seu interior – inclusive uma tartaruga de
estimação.
Depois de
explorarem as qualidades físicas daquele nada (o chão é macio e podem pular
como num trampolim), descobrem que têm o poder de fazer coisas desaparecerem.
Acham que tornaram-se deuses. Mas há uma limitação: não podem fazer coisas
aparecerem.
Depois que Dave e
Andrew desistem de explorar a geografia inexistente daquele fundo infinito
(simplesmente não há distinções entre leste e oeste, norte e sul ou em cima e
em baixo), a narrativa de Nothing
começa a ficar mais introspectiva: só poderão interagir um com o outro. O que
resultará em um mergulho nas memórias e segredos escondidos de cada um, criando
tensões, brigas e acertos de contas de diferenças do passado.
A falsa Gnose
Cada vez mais o
espectador vai percebendo que tudo aquilo pode ser a metáfora da própria mente
dos protagonistas, uma viagem interior por traumas e memórias. E nesse ponto, Nothing sintoniza-se com a visão crítica
do filme Brilho Eterno de Uma Mente Sem
Lembranças – a crítica às chamadas “tecnologias do espírito”, as diversas
técnicas terapêuticas e de autoajuda atuais que defendem o esquecimento como
forma de superação de todos as nossas barreiras interiores que supostamente
limitariam nossas potencialidades e realizações.
Se em Brilho Eterno temos uma máquina que
escaneava a mente para deletar más memórias, em Nothing Andrew e Dave descobrem que também têm o poder de fazer
desaparecer memórias infelizes.
No começo tudo
parece dar certo: Andrew torna-se mais assertivo e decidido e Dave supera o
trauma de não ter conseguido ser um músico.
Como deuses inebriados de poder e fechados num universo solipsista, eles
passam os dias jogando videogames, televisão e deletando suas próprias
lembranças... até começar a fazer desaparecer objetos no interior da casa...
até um ameaçar deletar o outro.
Tal como os protagonistas de Brilho Eterno, Dave e Andrew estão
fechados em suas própria mentes. Mas em Nothing,
tudo é conduzido em tom de comédia trash
e non sense onde o roteirista permite
que o delírio interior dos protagonistas chegue às últimas consequências.
Como um filme com
argumento PsiGnóstico, Vicenzo Natali quer mostrar como essa busca interior que
a cultura atual tanto valoriza, pode resultar em uma falsa gnose: sob pretexto
de libertar-se de tudo aquilo que nos tolhe, não redimimos ou compreendemos às
memórias mas simplesmente tentamos deletá-las. Algo como apertar uma tecla
/delete/ ou /esc/ em um teclado de computador ou a trocar de canais em um
controle remoto.
O que seria um
atalho psíquico, resulta em nova prisão com o enfraquecimento do Eu: tentamos
apagar o passado sem trazer qualquer lição para o futuro.
E em Nothing, Natali representa isso de forma
bizarra e ao pé-da-letra: deletar a si próprios até restarem apenas cabeças
falantes.
Ficha
Técnica
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Título: Nothing
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Diretor: Vincenzo Natali
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Roteiro: Andrew Lory e Andrew Miller
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Elenco: David Hewlett, Andrew Miller
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Produção: 49th Parallel Productions
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Distribuição: MTI Home Video
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Ano: 2003
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País: Canadá
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