Já foi a época em
que a Previsão do Tempo nos telejornais era uma prestação de serviços para os
espectadores saberem se teriam que sair de casa de guarda-chuva ou então se o
próximo final de semana seria aproveitável para passeios. Hoje tornou-se um
jogo televisual onde os dados dos satélites e os infográficos animados
representando depressões atmosféricas e deslocamentos de massas de ar
tornaram-se alibis da busca de uma amarração ideal das seguintes pautas: a
“crise hídrica”, a presunção da catástrofe climática e a descontextualização
das notícias. É o "estágio meteorológico da informação", onde os boletins da previsão do tempo sucedem ou precedem notícias que precisam ser semioticamente maquiadas.
A sessão da
Previsão do Tempo nos telejornais tornou-se peça subliminar daquilo que
chamamos de “jornalismo metonímico” – a ordem em que as notícias são colocadas
em um telejornal cria uma narrativa para confirmar predisposições, visões de
mundo e ideologias políticas pré-existentes nas reuniões de pautas das
editorias.
O pensador francês
Jean Baudrillard já observava esse fenômeno em 1995 ao afirmar que a informação
estava entrando no “estágio meteorológico”: na televisão francesa as notícias
sobre Bolsa de Valores e Economia sempre antecediam ou sucediam os boletins
meteorológicos como que as previsões e incidentes climáticos naturalizassem as flutuações especulativas – a
especulação dos mercados financeiros não são eventos políticas, mas fenômenos parecidos
como os da Natureza – leia BAUDRILLARD, Jean. “A Informação no Estágio
Meteorológico” In: Idem, Tela Total,
Porto Alegre: Sulina, 1997.
O mundo da
Economia seria tão objetivo e neutro quanto os fenômenos meteorológicos,
restando a nós observarmos e tentar prever as tendências. Hoje, os europeus
pagam o preço dessa blindagem ideológica dos anos 1990 que ajudou a criar a chamada “Zona do
Euro”.
Aqui nos
telejornais brasileiros, os boletins meteorológicos atualmente procuram fazer a
amarração semiótica de três pautas: a
“crise hídrica”, a presunção da catástrofe climática e descontextualização de notícias.
Blindagem semiótica da “crise hídrica”
A cobertura
jornalística da crise do abastecimento de água na Grande São Paulo e de cidades
no interior do Estado tem se limitado a fazer uma contagem regressiva do
esvaziamento das represas em cada boletim da Previsão do Tempo. Infográficos
dinâmicos mostram massas de ar quente e nuvens de chuvas desviadas para o
oceano.
Analistas criticam
a mídia de que a cobertura à chamada “crise hídrica” não menciona a
responsabilidade do governador do Estado, Geraldo Alckmin, e nem a omissão administrativa
da Sabesp (empresa de saneamento básico do Estado), alertada desde o início
desse século por especialistas que já previam o cenário atual. E muito menos
são noticiados os lucros recordes da Sabesp, mesmo em um momento de crise de
abastecimento – que, aliás, é noticiado como pontuais “quedas de pressão” da rede de
fornecimento.
Porém, mesmo que
os telejornais comecem a fazer o contraponto e deem espaço para especialistas
que falem sobre as verdadeiras razões da falta d’água, o estágio meteorológico
atual da informação blindaria a pauta da grande mídia contra qualquer voz
dissonante: logo em seguida ao bloco de notícias entraria um boletim sobre a
previsão do tempo falando em estiagens, quantidades de chuva abaixo de uma
suposta média esperada para o mês e assim por diante.
O primeiro critério
que o leitor deve ter em mente ao fazer a leitura crítica de um telejornal, não
é ficar apenas atento ao que não foi informado, mas a sucessão narrativa da pauta, a
escalada das notícias. A contiguidade entre notícias e boletins meteorológicos,
por exemplo, é uma desses mecanismo semióticos com a finalidade de, subliminarmente,
amarrar a narrativa que se quer empurrar goela abaixo do telespectador.
Certa
vez, o jornalista e sociólogo espanhol Ignácio Ramonet escreveu que mais
importante do que as próprias notícias, é a forma como elas são dispostas na
pauta do telejornal: as aproximações acabam sugerindo conexões e relações de
causa-efeito entre fatos que, de outra forma, seriam meras informações
isoladas. Ou, o inverso: notícias cujas conexões são críticas são afastadas,
esvaziando seus significados. Aproximações ou afastamento de notícias dentro da
pauta do telejornal acabam criando novas significações que, muitas vezes, podem
ter motivações político-ideológicas.
A bomba-relógio dos boletins meteorológicos
Outro função
semiótica é a da presunção da catástrofe climática – depois de cada notícia
exótica sobre fenômenos climáticos extremos (um lugar que não nevava há 50
anos, recorde de calor em Nova York ou Londres ou as apavorantes imagens do
cone escuro de um ciclone destelhando casas no Paraná) ou incêndios em matas ou
áreas urbanas, vem o boletim meteorológico sobre algumas palavras-chave esotéricas
(e, portanto, assustadoras) para o leigo como “efeito El Niño”, “depressões”, “corredor
de convergência”, “anti-ciclone tropical”...
Eventos
previsíveis, sazonais ou compreensíveis numa perspectiva de recorrência
climáticas de longo prazo transformam-se em evidências de uma catástrofe que se
aproxima.
O
cacoete metonímico em aproximar rapidamente um incêndio isolado com a sessão da
previsão do tempo é um efeito involuntário dessa ansiedade nervosa por conexões
que conduzam à agenda do Aquecimento Global. Notícias sazonais de queimadas em
estações secas desde a Califórnia (principalmente quando se aproximam de mansões
de celebridades) até o Planalto Central brasileiro seriam confirmações dessa
marcha histórica para a catástrofe.
O interessante na
retórica das previsões do tempo é o efeito bomba-relógio ou contagem
regressiva: diariamente os apresentadores do tempo fazem uma leitura da umidade
do ar decrescente, a contagem dos dias de estiagem (não chove desde...) etc.
Mesmo sabendo-se que colocado em perspectiva histórica é o período do ano de
natural estiagem, o boletim reforça as tintas ao provar na contagem regressiva
que alguma bomba climática explodirá.
Historicamente sabemos
que, desde quando o magnata das comunicações dos EUA William Hearst inventou
uma guerra entre EUA e Cuba em 1898 para aumentar a tensão diplomática com a
Espanha e vender mais jornais, a mídia vive da presunção da catástrofe, do
pânico e do medo. Supostamente, essas situações tornariam os cidadãos ainda
mais sedentos por informação, para encontrar uma saída ou simplesmente
sobreviver.
Mãe Natureza seletiva
Além de tudo isso,
o estágio meteorológico da informação descontextualiza as notícias – neutraliza
acontecimentos sociais e políticos, transformando-os em eventos naturais ou
acidentes imprevisíveis. Notícias sobre acidentes envolvendo intempéries
(inundações, secas, raios, tufões etc.) são reportadas como tragédias humanas e
as vítimas como cidadãos genéricos, que parecem não pertencer a nenhuma classe
social específica.
O porquê das
vítimas serem principalmente pobres e habitantes de regiões periféricas passa
longe da preocupação da pauta. Não há contexto sócio-econômico que explique o
porquê da Mãe Natureza ser tão seletiva na escolha das vítimas – em geral
pobres que moram em áreas de risco.
Fechada a
reportagem, entra em seguida o boletim meteorológico que legitima através dos
elegantes infográficos em chroma key
a naturalização das desigualdades sociais.
Como Baudrillard
escrevia sobre o estágio meteorológico da informação, as sessões de Previsão do
Tempo dos telejornais parecem assumir uma função paradoxal: embora falem em
“previsões” (como é de se esperar, já que a Natureza opera por ritmos e
padrões), na verdade os boletins buscam o efeito contrário: o imprevisível, o
acidente, o catastrófico. Com isso naturaliza as desigualdades sociais e a má
gestão dos recursos de uma sociedade que, por princípio, deveria nos proteger
da Natureza.
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