Quando assistimos ao documentário “Hitler’s Hit Parade”
(2005) somos assombrados por uma estranha sensação de atualidade: uma sucessão
de imagens de alta qualidade das décadas de 1930-40 de clipes de filmes de
propaganda, desenhos animados, filmes musicais e vídeos caseiros que demonstram
como a estratégia de comunicação Nazi criou as bases da moderna Publicidade e
da indústria do entretenimento. Sem fazer comentários e apresentando apenas as
imagens da época, o documentário mostra como o mal foi banalizado através de
uma estética kitsch repleta de estereótipos de felicidade (mais tarde imitados
pela sociedade de consumo dos EUA e irradiado para todo o mundo), a estetização
e erotização da política por meio de celebridades, modelos sensuais e a
fetichização dos uniformes. O documentário sugere que o nazismo não morreu - se transfigurou na moderna linguagem midiática.
Quando
pensamos em documentários sobre o nazismo, vem a nossas mentes imagens
impactantes do holocausto, trilhas musicais marciais, soldados em marcha e a
figura de Hitler como um orador enlouquecido nos congressos do Partido Nacional
Socialista.
Bem diferente,
durante pouco mais de uma hora, Oliver Axer e Suzanne Benzer nos apresenta no
documentário Hitler’s Hit Parade uma
surpreendente visão do fenômeno nazi, uma catástrofe política que parece se
originar de uma cultura pop, de um universo paralelo estranhamente
reconhecível, cujo aspecto assustador é a sua alegre normalidade – artistas
cantando em shows exuberantes, enérgicos números de dança, coristas sensuais
sapateando e namorados em jogos amorosos surpreendentemente avançados para os
costumes da época.
Dividido
em seções como “Nova Vida” e “Sob a proteção da Noite”, os cineastas apresentam
fragmentos da vida cotidiana alemã, um compêndio de clipes de filmes de
propaganda, anúncios, desenhos animados, noticiários, musicais e filmes
caseiros. Famílias felizes fazem seus piqueniques ao lado de modernas autobahnen (as highways alemãs) enquanto observam
zepelins em cor prata, identificados pela suástica, flutuando em céus de azul
profundo, pessoas reúnem-se em locais públicos para assistir televisão,
mulheres bonitas experimentam meia-calça, artistas cantam e dançam e os líderes
políticos exibem modelos em escala do mundo utópico que estava por vir.
Esses
clipes de arquivos da década de 1930-40 podem facilmente ser confundidos com
imagens do filme Isso é Hollywood (That’s
Entertainment, 1974 – compilação de filmes musicais na comemoração dos 50 anos
da MGM) com o mundo singular da fantasia cinematográfica, intercaladas com
algumas cenas da realidade cotidiana, com crianças sorridentes e músicas com
letras cheias de sentimentos nobres, saudades e desencontros amorosos.
A banalização do mal
Hitler’s Hit Parade
foi estruturado para aproveitar ao máximo um sentimento estranho e
mal-assombrado de atualidade para os espectadores: não há narração, nenhuma
explicação – apenas os próprios cânticos que são anunciados com títulos
estilizados. A dupla de cineastas não quis fazer um documentários detalhista e
cronológico da cultura popular nazista (seus estúdios de cinema, distribuidores
e artistas). Em vez disso, através de uma sedutora colagem de clipes
pretenderam ilustrar o famoso diagnóstico da banalidade do mal da filósofa
Hannah Arendt ao revelar facetas que foram esquecidas – recordamos o Reich de
Hitler como um catástrofe histórica sem precedentes, mas Hitler’s Hit Parade sugere que os cidadãos alemães e suas
distorções morais foram tão banalizados como uma ida ao cinema local ou uma
canção popular no rádio.
Mesmo
quando a realidade da guerra irrompia na normalidade cotidiana (soldados
retornando da guerra com pernas amputadas e blecautes), tudo era neutralizado
pelo otimismo da propaganda e de um discurso da superação semelhante à cultura
atual de autoajuda: exemplos de superação de soldados com pernas mecânicas que
se transformam em atletas, a temperança dos alemães que mantem a rotina na
escuridão como se nada estivesse acontecendo.
Suásticas
e uniformes da gestapo se integram nos cenários do dia-a-dia numa estranha
normalidade, para o nosso olhar atual. A estigmatização dos judeus nos desenhos
animados, lindas mulheres fazendo “sig-heil” e corpos de soldados alemães
mortos rodeados de moscas fazem um caleidoscópio que lembra o atual efeito
zapping do telespectador que confortavelmente na sua poltrona vê o desfile de
imagens de morte e diversão na TV.
Uma estranha sensação de atualidade
A
virtude de Hitler’s Hit Parade é
mostrar como o Nazismo foi a base da moderna publicidade e propaganda e da
indústria do entretenimento. O documentário faz lembrar a célebre frase do
filósofo Theodor Adorno: “A humanidade preparou-se séculos para Victor Mature e
Mickey Rooney”, dois atores canastrões da era de ouro de Hollywood. Parece que
séculos de filosofia e sofisticação cultural preparam terreno para as suas
próprias negações: a propaganda, a cultura kitsch e a banalização do mal.
Ao
contrário dos estados terroristas modernos, as bases da cultura alemã estavam
na sofisticada teatralidade, na influência dos artistas de Berlim em suas
diferentes vertentes do modernismo e na vanguarda artística e intelectual da
escola de artes plásticas da Bauhaus. Porém, ironicamente, como sugere Adorno,
preparam o terreno para a propaganda e a estética kitsch: o apreço de Hitler à
pintura decorativa, a canastrice dos cantores e atores dos filmes de
propaganda, os sorrisos com maçãs do rosto avermelhadas que mais tarde seriam o
modelo de felicidade estereotipada da publicidade norte-americana, o otimismo
místico por futuros utópicos representados por maquetes dos clipes de
propaganda. Tudo isso preparou o terreno da moderna sociedade de consumo.
A estética Kitsch
Certa
vez o escritor austríaco modernista Hermann Broch definiu a estética kitsch
como “o mal com um sistema artístico de valores”. Talvez na cultura kitsch devamos
buscar as origens da “banalidade do Mal” de Hanna Arendt. Por exemplo, o
documentário mostra diversos filmes de propaganda onde Hitler era promovido
como uma celebridade, ao invés de líder político: Hitler com seus cães na sua
casa de campo, brincando com crianças, flagrantes dele ajeitando delicadamente
o cabelo antes de um comício etc. E o idêntico script não só da propaganda política atual, como da promoção de
celebridades em revistas como Caras
ou em programas televisivos como TV Fama
ou Estrelas.
A
estetização inédita dos políticos como celebridades iniciada pela sedutora
linguagem nazista banalizaria todo o mal e o horror do cotidiano que se seguiu:
a celebridade e seria a prova de que todos nós poderíamos um dia vencer, e que
as desgraças da vida seriam apenas obstáculos para tornar a nossa vitória ainda
mais doce... Essa é a base ideológica de todo o otimismo fetichista e místico
(o imaginário da autoajuda e da suposta força do pensamento positivo) que
animaria mais tarde a indústria do entretenimento e a sociedade de consumo.
Se
você perdeu uma perna na guerra, a maravilhosa ciência nazi está aí para te dar
uma perna mecânica novinha em folha... isso não é nada. É apenas um degrau para
a vitória!...
A sensualidade nazi
Outro
ponto importante no documentário Hitler’s
Parade, e que cria um mal estar de atualidade, é a fetichização e
erotização da guerra e da política, lembrando a atual erotização de bens e
serviços feita pela publicidade.
Das
pinups nazis que vendiam a beleza e
superioridade da raça ariana, cantando e rebolando em eróticos números
musicais, até a evidente fetichização dos uniformes nazistas (não é à toa que
até hoje são objetos não só de culto, mas também de apetrecho erótico
sadomasoquista) percebe-se a até então inédita erotização generalizada de bens
e ideias pela propaganda.
Sob
o pretexto do culto ao corpo saldável de uma nação que seria a base da futura
super-raça (as primeiras campanhas sistemáticas anti-tabaco foram nazistas),
estava na verdade a estratégia de erotização generalizada como isca de sedução
política.
Vemos
no documentário diversos clipes de jovens atléticos em trajes sumários praticando
atletismo, danças artísticas e coreografias sincronizadas. Somado a filmes O
Terceiro Reich deveria ser sensual, atraente, erótico, sob o álibi da saúde e
da raça superiora.
O
que faz lembrar o cínico final do filme de Kubrick Dr. Fantástico (Dr. Strangelove, 1964): com a bomba do juízo final
próxima de ser detonada, o Dr. Fantástico (um nazista enrustido) planeja como a
humanidade sobreviverá ao holocausto nuclear. “Em cavernas subterrâneas”, diz
ele, onde o número de mulheres deverá ser superior ao de homens. Cada homem
teria várias mulheres para que a taxa de natalidade fosse alta. E as mulheres
escolhidas, claro, seriam aquelas como “melhores atributos reprodutivos”. Os
militares ouvem o Dr. Fantástico com olhares fascinados: finalmente poderão
trair suas mulheres sem culpa... O fim do mundo erotizado por um nazista: tudo,
afinal, tem seu lado bom...
Do
Terceiro Reich à erotização generalizada de bens e serviços (da mulher gostosa
ao lado de uma Ferrari à voz sensual do sistema de som de um metrô) há uma
evidente linha de continuidade, como sugere o documentário Hitler’s Hit Parade. Não só o nazismo não morreu como ele se
transfigurou na indústria publicitária e de entretenimento. Talvez estejamos na
mesma situação do alemão comum dos anos 30-40 documentado pelo filme: imersos
no presente, só vamos ter consciência de tudo que aconteceu depois da
catástrofe.
Ficha Técnica |
Título:
Hitler’s Hit Parade
|
Diretor: Oliver Axer e Susanne Benze
|
Roteiro:
Oliver Axer e Susanne
Benze
|
Produção: C. Cay Wesnigk Film
|
Distribuição:
Arte
|
Ano:
2005
|
País:
Alemanha
|
Postagens Relacionadas |