domingo, março 30, 2014

Neurogadget que promete sonhos lúcidos é sintoma da cultura dos aplicativos

Um aplicativo que promete para o usuário sonhos lúcidos. É o “Aurora”, criado por uma start up californiana e previsto para ser lançado no segundo semestre desse ano, que promete tornar os sonhos tão produtivos e eficientes que farão a terça parte da vida que passamos dormindo valer a pena. O neurogadget Aurora é um sintoma tanto da cultura atual dos aplicativos que cria nos usuários uma falsa ilusão de racionalidade e planejamento de onde nem os sonhos parecem escapar; e de uma agenda tecnognóstica que une neurociências, ciências computacionais e Inteligência Artificial com o propósito de efetuar a cartografia e topografia da mente com objetivos de manipulação e controle social.

Em postagem anterior discutíamos como o cinema parece antecipar uma espécie de agenda tecnocientífica – sobre isso clique aqui. Dessa vez, os diversos filmes que abordaram o tema dos sonhos lúcidos (Vanilla Sky, A Origem, Sonhando Acordado, entre outros) parecem ter se antecipado ou inspiraram um aplicativo criado pela IWinks, uma start up de San Diego, nos EUA: o “Aurora”, aplicativo que promete ao usuário criar sonhos lúcidos a partir de um dispositivo que mede as ondas cerebrais e o movimento dos olhos.

O sonho lúcido ocorre no momento em que o sonhador começa a ter uma relação de estranheza com o fluxo dos acontecimentos oníricos e passa a questionar a própria realidade. Consciente que se encontra num sonho, passa então a interferir na lógica onírica. O aplicativo “Aurora” supostamente promete criar essa situação para o usuário a partir do momento em que o dispositivo percebe os movimentos REM e a alteração das ondas cerebrais, enviando jogos de luzes e sons personalizados para o usuário que, sem despertar, perceberá que está num sonho - veja abaixo o video promocional do aplicativo.  


O Aurora é usado com uma fita na cabeça que mede as ondas cerebrais e os movimentos dos olhos, funcionando com uma ligação Bluetooth a uma app para smartphone.

O texto promocional do produto que estará disponível para o mercado em junho desse ano é eloquente: “A ideia de sonho lúcido tem sido perseguida por séculos. Nesse estado tudo é possível: zoom através do espaço, combater dragões cuspidores de fogo ou tornar-se presidente, tudo a partir do conforto e segurança da sua própria cama” – sobre essa notícia clique aqui e aqui.

Assim o neurocientista e engenheiro elétrico co-criador do Aurora, Dany Schoonover, descreve sua experiência com o aplicativo: “Eu vi as luzes e percebi que estava sonhando e, como eu estava caindo, ao invés disso eu comecei a voar”. Para ele, os estudos apontaram uma menor incidência de pesadelos. Com essa possibilidade de controle dos sonhos, o sistema promete melhorar a qualidade do sono: “passamos um terço de nossa vida dormindo. Por que não tirar o máximo proveito desse tempo?”, questiona a IWinks.

Para Schnoover, além da melhora da qualidade do sono e diminuição do stress, haveria uma melhora do desempenho das atividades reais: “ao executar uma tarefa em um sonho lúcido, como jogar basquete ou tocar piano, aumenta sua capacidade de jogar ou tocar na vida real”.

Mas já existem opiniões especializadas críticas ao projeto como a Dra. Rachel Salas, diretora do Centro de Distúrbios do Sono John Hopkins. Para ela o produto apenas explora o fascínio das pessoas pelos sonhos e que o dispositivo nada mais faz do que insuflar ainda mais o problema da insônia.

Pode ser que tudo seja especulação, um mero factoide promocional de uma start up californiana, mas a ideia por trás desse aplicativo é um sintoma não só das transformações atuais da tecnociência mas principalmente da forma como os aplicativos estão invadindo o nosso cotidiano criando uma verdadeira cultura, uma forma de pensar e compreender o mundo a partir do ponto de vista de um usuário de gadgets.

A ciência se transforma em gagdgets e aplicativos


Na pós-modernidade a ciência transformou-se em tecnociência e a tecnologia em gadgets. Filosoficamente isso significa dizer que no passado o desenvolvimento científico era impulsionado por aquilo que podemos chamar de topos projetado, uma consciência inquieta que queria enxergar longe, transpor o estado atual do sonhador para uma utopia futura realizada pela ciência. A ciência era impulsionada por uma ideia de totalização, aspirava a um projeto de planejamento global seja social, urbana etc. Uma invenção como, por exemplo, o automóvel não era uma mera criação de um gadget, mas implicava numa concepção global de organização espacial por meio do planejamento urbano, industrial e de transportes.

Hoje, esse topos projetado está sendo substituído por um logos concêntrico. A tecnologia até continua sofisticada, porém perde o seu caráter de planejamento, totalização e controle. A Ciência abandonou qualquer projeto que aspirava à universalidade, ao planejamento da totalidade global, social ou urbana. Ao assumir a forma de tecnociência, ela privatiza e individualiza seus propósitos. Abandona o macro para concentrar-se no micro: gadgets tecnológicos sofisticadíssimos e prédios inteligentes conectados com velozes fibras óticas enquanto as ruas e o entorno público são dominados pelo caos da poluição, trânsito e lixo.

A tecnologia transforma-se em gadget: as pessoas lidam com sofisticados aparelhos a partir de complexas telas, manipulam telematicamente eventos distantes, perscrutam, vigiam e controlam. Porém, diferente das utopias e distopias de controle e totalização do passado, apenas intervêm pontualmente, fragmentariamente, o que só fomenta o caos e a desordem.

E isso cria uma forma de pensar por gadgets fragmentários: o crime e violência crescem nas cidades? Blinde-se o carro. O trânsito está caótico? Baixe um aplicativo para android como o Waze de mapeamento de trânsito. Você está estressado e já acorda cansado? Compre o neurogadget Aurora? E assim por diante... Dessa maneira os aplicativos e gadgets criam uma falsa sensação de racionalidade, de segurança e planejamento. Suas ações pontuais e circunscritas à esfera privada do usuário renunciam a qualquer busca das causas públicas ou macrosociais da violência, do caos urbano e da péssima qualidade de vida. A ciência converte-se em tecnociência materializada por gadgets de ação pontual, fragmentada e privatizada, acelerando ainda mais o caos e desordem.

Um sono sem sonhos


O fascínio humano pelos sonhos e o seu controle
Essa cultura de gadgets e aplicativos vai resultar em um efeito de retroalimentação que pode ser observado nesse neurogadget Aurora: se no nível macro reina o caos e a desordem, obsessivamente buscamos a racionalidade no nível micro (nas telas de computadores e celulares, na busca de um aplicativo que resolva ou organize qualquer coisa) a tal ponto que todas as esferas da vida devem ser comandadas por um mesmo princípio de desempenho (eficácia, produtividade e eficiência seja no esporte, sexo, profissão, relações pessoais etc.) até chegar ao último refúgio de resistência a essa racionalidade desesperançada: o mundo dos sonhos e do inconsciente.

Se os sonhos foram o leit motiv de muitos insights científicos e motivador das utopias através quais a história da ciência se orientou, agora essa matéria-prima das descobertas deve ser disciplinada e orientada pelos mesmos princípios de eficácia e produtividade do mundo real: aprender a tocar piano ou jogar basquete com mais eficiência.

Curioso efeito de retroalimentação: uma espécie de sono sem sonhos que retira da ciência uma das suas principais inspirações e que, por isso, acaba se convertendo em gadgets para tentar solucionar desordens provocadas por um mundo igualmente sem sonhos.

O antigo movimento centrífugo das descobertas científicas em que as energias da imaginação nos conduziam para lugares “onde nenhum homem jamais esteve” inverte-se em movimento centrípeto, de contração em direção ao centro, ao presente. Isso é o que estamos chamando de logos concêntrico que, acreditamos, é a essência dessa cultura dos aplicativos e gadgets.

Portanto, pouco importa se esse neurogadget promete mais do que pode cumprir. Somente a sua concepção e interesses dos usuários pelo fascínio de controlar seus próprios sonhos (e o que é pior, confundir sonhos lúcidos com sonhos controlados) por si só já representa um sintoma de um duplo fenômeno: de um lado, um subproduto da agenda tecnognóstica que une neurociências, ciências computacionais e Inteligência Artificial com o propósito de efetuar a cartografia e topografia da mente com objetivos de manipulação e controle social; e do outro a cultura cotidiana dos gadgets e aplicativos que prometem trazer racionalidade e ordem à vida privada e manter distância do caos e desordem social. 


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