domingo, agosto 25, 2013

O gnosticismo cult de "Donnie Darko"

Desde o seu lançamento em 2001, o filme “Donnie Darko” do diretor Richard Kelly tornou-se um fenômeno cult: é um dos filmes mais pesquisados e acessados na Internet (atualmente ocupa a 185° do Top 250 do IMDB), em geral espectadores que buscam uma explicação para enigmática narrativa sobre um adolescente problemático com misteriosas visões de um coelho de dois metros de altura chamado Frank que faz uma espécie de contagem regressiva para o fim do mundo. “Donnie Darko” é um exemplo de filme que se tornou atemporal por amarrar em um inteligente roteiro arquétipos contemporâneos e milenares sobre o tempo, destino e redenção.

As primeiras cenas parecem ter todos os ícones dos filmes convencionais sobre adolescentes que moram em subúrbios com problemas existenciais na high school envolvendo namoradas e jovens valentões. Mas aos poucos vamos descobrindo que estamos diante de um filme incomum: uma parábola em humor negro da angústia da Geração X? Um drama sobre um adolescente psicopata? Um filme de ficção científica e fantasia ao estilo da série “Além da Imaginação”? Alguma coisa entre David Lynch e Arquivo X? Nenhuma dessas alternativas consegue dar o tom exato à estranha narrativa. Mas uma coisa é certa: “Donnie Darko” é um desses filmes com inteligentes linhas de diálogo e personagens realistas imersos em uma narrativa com uma atmosfera fantástica que nos compele a ver o filme mais de uma vez.


Doze anos depois de muitas entrevistas evasivas do diretor, sempre reticente em dar uma explicação, e diversas teorias de críticos e espectadores, podemos chegar a uma conclusão que é o tema dessa postagem: “Donnie Darko” é um dos poucos filmes que consegue amarrar através de um roteiro inteligente uma série de arquétipos que emergem como o espírito de uma época. O que faz o filme ter uma atmosfera atemporal, condição fundamental para se transformar em um cult. O filme foi produzido em 2001 e a história se passa em 1988 e a narrativa se estrutura em uma potencial viagem no tempo em loop, onde o protagonista tenta quebrar esse ciclo vicioso temporal.

O Filme


Jake Gyllenhaal é Donnie Darko, filho de pais que convivem em uma espécie de tensa normalidade. Nessa família há conflitos tradicionais e dramas à mesa do jantar. O pai republicano fica bravo que sua filha mais velha pretende votar no Democrata Michael Dukakis (candidato à presidência em 1988) e a irmã caçula de Donnie tenta vencer um concurso nacional de talentos com seu grupo de danças da escola – ecos do filme “Beleza Americana” de 1998.

Donnie é sonolento, introspectivo, uma dor de cabeça para os pais. Apesar das boas notas na escola, ele tem problemas psíquicos e toma remédios psiquiátricos: sonâmbulo, sai todas as noites de casa para acordar em estranhos lugares como no meio de estradas ou no campo de golfe local.

A vida de Donnie é tocada pelo destino quando, após passar mais uma noite fora do seu quarto, a turbina de um boeing 747 cai sobre sua casa. Se estivesse lá, estaria morto. O que é estranho é que ninguém sabe de onde a turbina caiu e que Donnie escapou da morte após ser chamado por um estranha figura chamado Frank de dois metros de altura fantasiado de coelho que o avisa que o mundo vai acabar em questão de dias.

Frank começa encorajar Donnie a cometer atos de vandalismo contra instituições opressivas como a escola (que depreda e causa uma inundação), a psiquiatra (a constrange quando tenta se masturbar sob hipnose) e o escritor celebridade de livros de auto-ajuda (incendeia sua casa), e revela que existem outras realidades alternativas por meio de planos temporais simultâneos, cada um com uma lógica pré-determinada.

Donnie de apaixona por Gretchen, nova aluna da escola que veio de outro estado e mudou-se para a cidade com a mãe, tendo ambos mudados de nome para fugirem de um ex-namorado. É quando Donnie começa a ter alucinações com “warmholes” (“buracos de minhoca”) que são projetados a partir da altura do peito (alusão ao conceito esotérico de chákra cardíaco?) das pessoas, criando distorções no continnum espaço-tempo.

Tudo para preparar-se para conflito final na noite de Halloween contra os valentões da escola Seth e Alex (símbolos do status quo conformista e vazio) que determinará a morte de sua namorada e a sua disposição em sacrificar-se por todos.

Universos tangentes


O diretor Richard Kelly diz que o argumento de “Donnie Darko” se inspirou em três fontes: primeiro em um conjunto de escritores como Kafka, Stephen King e Graham Green; segundo, uma antiga lenda urbana sobre um pedaço de gelo que teria caído de um avião e matado uma pessoa; e terceiro, “criei um arquétipo de um personagem principal que se sentisse alienado ou que se sentisse diferente em uma sufocante vida das comunidades de subúrbio” (MURRAY, Rebeca. “Q&A with Writer/Director Richard Kelly” in: About.com Hollywood Movies).

               
A partir do arquétipo contemporâneo do Estrangeiro (aquele que se sente um estranho dentro de sua própria família e comunidade como forma de denúncia da ilusão do princípio de realidade), Kelly cria uma complexa trama narrativa: imagine que existem de diferentes universos além do nosso mundo – hipótese gnóstica proposta por Basilides no início da Era Cristã. Algo estranho e deslocado aconteceu em nosso universo, algo que não há explicação possível, a não ser que, talvez, este evento ou coisa que veio de outro tempo ou outro universo: a turbina que caiu no quarto de Donnie. Quando pela primeira vez cai no filme, ele não pode ser explicado, e vemos que Donnie é salvo graças ao chamado de Frank. A premissa do filme é que, por causa da queda da turbina, os dois universos diferentes, foram presos em um loop de tempo.

Em essência, um loop de tempo significa que um universo tangente foi criado, e os mesmos eventos vão acontecer uma e outra vez neste universo tangente, a menos que uma ação seja executada, que mude o curso do evento original que causou neste universo tangente. Portanto, se a queda da turbina e a ação fundamental em Donnie sair de casa e escapar da morte foram a causa original, é claro que a morte de Donnie será a única solução para o fechamento do ciclo do tempo, destruindo o universo tangente.

A condição de Estrangeiro de Donnie o fará ter sucessivos estados alterados de consciência (sonambulismo, visões esquizofrênicas, insights etc.) que o fará descobrir que há algo errado não só na sociedade (a opressão escolar, a mediocridade sufocante da vida nas comunidades de subúrbio, a hipocrisia do autor best seller de autoajuda) como na própria textura da realidade (a estranha tangência entre os universos que pode levar ao fim do mundo).

Donnie também descobre que o plano temporal em que ele vive pode ser revertido e que ele tem poder para fazer isso, isto é, transcender seu plano temporal através de um vórtice e mover-se livremente por outros planos alterando destinos pré-determinados. Após a morte de sua namorada e, mais tarde, da sua mãe na queda de um avião sugado por outra dimensão temporal pela tangência dos universos, Donnie retorna no tempo para a noite em que viu Frank pela primeira vez. Dessa vez Donnie fica no seu quarto e morre na queda da turbina. Um grande sacrifício que Donnie assumirá para que desperte desse de mundo e altere o fluxo temporal – sua namorada e sua mãe irão escapar da morte.

Uma fábula gnóstica


A certa altura do filme, Donnie sai de um cinema onde se lê o título do filme “A Última Tentação de Cristo”. O diretor Richard Kelly em entrevistas afirmou que propositalmente procurou um paralelo entre a vida de Cristo e a do protagonista Donnie Darko. Essencialmente, Donnie foi um mártir que procurou em Frank um meio para morrer, assim como o personagem Judas foi para Cristo. Mais do que isso, Donnie, como um personagem estrangeiro, quer ensinar a todos a falsidade e ilusão da sociedade e da própria realidade, como um constructu temporal e arbitrário.

Além disso, denuncia todas as formas de consolação ou racionalização da tragédia desse mundo: No filme é mostrado o confronto de Donnie Darko contra o sistema escolar conformista e contra a figura de Jim Cunningham, celebridade e vendedor de livros de auto-ajuda, adotado como conteúdo programático pela escola. Donnie se insurge contra o simplismo do pensamento de auto-ajuda (agrupar todas as matizes dos sentimentos humanos entre Amor e Medo) e incendeia a sua casa. A forma como a professora Mr. Monnitoff aborda o método de Cunnigham é de um evidente fundamentalismo religioso.

Semelhante ao que vemos em Show de Truman onde se tenta reduzir a melancolia do protagonista ao script freudiano, em Donnie Darko procura-se tratar do “problema” do protagonista com sessões de psicoterapia, hipnoterapia e remédios psicotrópicos.

Curiosamente, o filme aborda, também, o simbolismo do coelho, tanto no aspecto esotérico como na perspectiva literária ao aproximar-se com Alice no País das Maravilhas de Lewis Carroll. A melancolia e o tédio de Donnie que criam as circunstâncias que abrem sua consciência para a existência dos múltiplos níveis de realidade se equiparam ao tédio e melancolia de Alice (“em um dia quente que a deixava sonolenta e estúpida”) que prefere correr atrás de um coelho branco a “não ter nada para fazer”.

Donnie segue as ordens do enigmático coelho que aparece para ele. Em uma dessas seqüências a figura do coelho associa-se, ainda, ao complexo simbolismo do espelho. O coelho (Frank) aparece para Donnie no espelho do banheiro da sua casa (Alice Através do Espelho?). Donnie tenta tocá-lo e a superfície manifesta-se flexível, como uma superfície líquida. Esta analogia entre espelho e água frequentemente simboliza a utilização mágica do espelho como instrumento de adivinhação, premonição (o coelho prevê o fim do mundo em um mês). Por outro lado, há uma correspondência direta entre o espelho e a melancolia de Donnie: assim como o espelho reflete as pessoas, o Frank reflete os papéis conformistas da sociedade:
Donnie: Por que você veste essa estúpida fantasia de coelho?
Frank: Por que você veste essa estúpida fantasia de homem?
Em Donnie Darko, o olho aparece constantemente pontuando a narrativa como, por exemplo, nos planos em que aparece um pôster no quarto de Donnie. O pôster é muito mais do que um item decorativo, pois há constantes planos de Donnie com o enquadramento aproximando o símbolo ao protagonista - veja foto acima.

Para o Gnosticismo, o olho tem um profundo simbolismo. Segundo Cirlot, a essência do simbolismo do olho está contida num dito do filósofo romano Plotino, segundo o qual “nenhum olho está capacitado a ver o Sol enquanto, de certa maneira, não for ele mesmo um sol”. Dado que o Sol é fonte de luz, e que a luz é símbolo da inteligência e do espírito, deduz-se que o processo de ver representa um ato do espírito e simboliza o conhecimento. Mantido aprisionado no mundo material, mantém-se cego necessitando ser aberto pela gnose.

O olho deve ser aberto para revelar o “homem interior”, a centelha de Luz, a parte da alma que mantém contato com o mundo superior. Faz parte do dualismo platônico que vê a alma dividida em duas partes: a que mantém contato com os reinos das Idéias e a parte que contata o mundo físico. Da mesma maneira, o simbolismo do olho seria dotado da mesma dualidade. Para o Gnosticismo, os olhos podem simbolizar, de um lado, a visão interior, a iluminação; do outro, a ilusão: os olhos enganam, criam ilusões, aceita o mundo como um dado perceptivo.

Ficha Técnica

  • Título: Donnie Darko
  • Diretor: Richard Kelly
  • Roteiro: Richard Kelly
  • Elenco: Jake Gyllenhaal, Jena Malone, Mary McDonnell, Holmes Osborne, Maggie Gyllenhaal, Patrick Swayze
  • Produção: Pandora Cinema
  • Distribuição: Pandora Cinema
  • Ano: 2001
  • País: EUA

Postagens Relacionadas

Tecnologia do Blogger.

 
Design by Free WordPress Themes | Bloggerized by Lasantha - Premium Blogger Themes | Bluehost Review