sexta-feira, maio 10, 2013

Hollywood e o fetiche das armas no filme "God Bless America"

"God Bless America" (2011) do diretor Bobcat Goldthwait parece ser um filme que segue a linha do chamado "cinema esquizo" com personagens paranoicos, psiquicamente instáveis e marcados pela revolta e cinismo contra uma sociedade racista, medíocre e xenófoba - a "América profunda". O filme faz um diagnóstico perfeito sobre uma cultura onde reality shows e programas como "American Superstars" são o objeto do desejo de milhões. Porém, Goldthwait parece cair vítima da fetichização das armas que Hollywood promove na atualidade: se o cigarro e as bebidas alcoólicas são extirpados da tela ou colocados somente nas mãos e bocas de vilões, com as armas é o contrário. Observamos uma fila interminável de armas lubrificadas, reluzentes, coldres e metralhadoras empunhadas ao nível da virilha prontas para entrar em ação com muito sex appeal. 
Compare dois filmes clássicos com Vincent Price (O Abominável Dr. Phibes de 1971 e As Sete Máscaras da Morte – Theater of Blood, 1973) com o “God Bless America”. Nesses filmes com Vincent Price o protagonista vinga-se de pessoas medíocres, indiferentes, arrogantes com requintes cruéis, sádicos e com muito humor negro: vinga-se dos médicos que mataram sua esposa por um erro na mesa de cirurgia e um ator shakespeariano que despeja sua fúria em cima dos críticos de teatro que o atormentam.
Em “God Bless America” vemos também protagonistas que querem vingar-se de uma classe média americana racista, sexista, xenófoba e alheia a valores culturais. As situações de humor negro e as mortes com requintes cruéis são parecidas. Porém, com uma diferença fundamental: Vincente Price não usa arma de fogo uma única vez, preferindo armadilhas e ardis perversamente elaborados; enquanto em “God Bless America” as armas são a grande estrela do extermínio. Mais do que isso: no filme a arma se reveste de um valor fetichista como instrumento de justiça, ordem e sex appeal.


“God Bless America” parece ser o sintoma de uma fetichização hollywoodiana pelas armas de fogo: se o cigarro e as bebidas alcoólicas são extirpados da tela ou colocados nas mãos e bocas de vilões, com as armas é o contrário. Observamos uma fila interminável de armas lubrificadas, reluzentes, coldres, metralhadoras empunhadas ao nível da virilha prontas para entrar em ação. O diretor Bobcat Goldthwait quis fazer alguma coisa na linha de “Assassinos por Natureza” (Natural Born Killers, 1994)  de Oliver Stone ou “Bonnie Clyde” (1967) de Arthur Penn onde anti-herois expõem a hipocrisia e a patologia da sociedade norte-americana.
Mas tudo o que conseguiu foi expor o fascínio fetichista pelas armas sob o pretexto de fazer uma crítica ácida ao nacionalismo patológico norte-americano. Pelo menos os filmes de Tarantino expõem esse fetiche cultural americano pelas armas sem precisar dar lições morais: todos se matam porque apontar uma arma é sexy.

Os anti-herois de “God Bless America”


O filme é sobre Frank (Joel Murray), um solitário homem divorciado de meia idade no limite da sanidade, que acumula um profundo ódio e desprezo pelo seu vizinho, pela programação televisiva estúpida recheada de reality shows que exploram o mais baixo da natureza humana, programas como “American Superstars” que ridicularizam deficientes mentais, pastores fundamentalistas que semeam ódio e sexismo; a repulsa ao conteúdo medíocre das conversas no escritório onde trabalha que nada mais fazem do que repercutir todo o lixo televisivo das fofocas de celebridades etc.
A vida de Frank desce ladeira a baixo: é demitido por suspeita de assédio sexual (ele só queria ser educado mandando flores para uma colega de trabalho), sua filha não quer passar os finais de semana com ele por que na sua casa não tem videogames, sua ex-esposa o despreza e, para completar, descobre que tem um tumor no cérebro do tamanho de uma bola de ping pong.
Depois de uma espécie de epifania religiosa a beira de se matar, decide que ele é que tem que eliminar a mediocridade, para começar matando uma adolescente cheerleader mimada estrela de um reality TV. Após matá-la se torna amigo de uma garota chamada Roxy (Tara Lynn Barr) que vislumbra todo o sentido messiânico no brutal assassinato da cheerleader: os dois partilharão do mesmo gosto em fazer justiça com sangue.
Odeia pessoas que conversam e falam no celular no cinema? Frank e Roxy vão matá-los. Odeia aquela pessoa que te dá uma fechada na rua? Frank e Roxy vão destruir o carro dele e matá-lo também. Odeia estrelas de reality shows que conseguem tudo que querem? Bem... você sabe o que acontece.
O roteiro força a barra para que nos identifiquemos com os anti-herois para que toda a violência e rajadas de balas se tornem momentos de intensidade catártica e de divertido humor negro. Assim como Frank, a vida de Roxy não é fácil: é estuprada pelos namorados da sua mãe viciada em crack...
Aparentemente “God Bless America” aproxima-se daquilo que chamamos de cinema esquizo: conjunto de filmes marcado por narrativas paranoicas e protagonistas psiquicamente instáveis e marcados pela revolta e cinismo.
Percebe-se na história de Hollywood um movimento pendular entre o cinema esquizo onde o Outro é identificado com alienígenas, monstros, femme fatales e a própria sociedade doentia e corrupta (temática cujo auge foi nos anos 1970 em filmes como Um Estranho no Ninho, Taxi Driver, Sem Destino, Perdidos na Noite etc.) e o “cinema recuperativo” onde o mal estar em relação ao Outro é reduzido a uma questão de assepsia e controle: extermínio e violência sadística e exibicionista.
O Outro aqui é a loucura da “América profunda” que o diretor faz um diagnóstico perfeito ao retratá-la como uma forma de pensamento baseado em um misto de ignorância e arrogância nacionalista. Porém, a narrativa embarca na violência exibicionista e fetichista do “cinema recuperativo” onde os protagonistas iniciam uma catártica higiene social.
Quando Frank prepara-se para matar um comentarista de TV fascistoide que defende o extermínio de gays e acusa o presidente Obama de ser um “nazista negro”, ele diz para Roxy: “Eu até concordo com algumas ideias dele”. “Exatamente com qual opinião você concorda?”, pergunta Roxy atônita. “Menos controle sobre armas, claro”, diz Frank. Claramente, o diretor  Bobcat Goldthwait dá o tom do filme: o exibicionismo sadístico em torno do fetiche das armas.
Durante todo o filme há uma evidente tensão erótica entre a dupla, uma atração perversa pedófila reprimida entre Frank e Roxy que acaba sendo sublimada através das armas e munições.

 

Arma é um fenômeno estético


Stephen March (MARCH, E. Guns Are Beautiful.To stop gun violence, we need to stop fetishizing guns)  defende a tese de que as armas não produzem violência: elas são antes, de mais nada, uma estranha forma de expressão de beleza para a cultura americana, uma forma clara de fetiche e simbolismo fálico. Valendo-se de um largo estudo feito pela Universidade de Berkeley em 2007 que concluiu não existir uma causalidade clara entre filmes violentos com a extensiva presença de armas de fogo na tela e a violência nas ruas, March argumenta que a questão das armas é de outra natureza. Para começar, o autor demonstra que todo o discurso que justifica as armas não tem nenhuma aplicação prática: casas com armas são mais seguras? Estatisticamente casas com armas são menos seguras do que casas sem armas. Defesa contra um governo tirânico? Quanto tempo a melhor milícia armada resistiria contra um simples destacamento de Mariners?
Para March, armas são um fenômeno estético. Para começar um óbvio símbolo fálico no sentido atribuído por Freud como uma reação do indivíduo à ameaça da castração. A possibilidade da privação fálica conduz à sedução por esse simbolismo. Por isso, March argumenta que a simples legislação que proíba ou restrinja a propriedade de armas, somente alimenta esse imaginário da castração. A presença massiva e exibicionista de armas nas telas de cinema é a expressão direta dessa ameaça da privação de um simbolismo fálico tido como um dos direitos constitucionais do cidadão norte-americano.
É curioso que muitos desses filmes apresentem homens “veteranos” como Bruce Willis, Stallone, Schwarzenegger etc., atores que surgiram nos anos 1980 (a grande década dos filmes de ação da era conservadora do presidente republicano Ronald Reagan). Eles envelheceram, perderam a relevância e os cabelos, estão enrugados e com uns quilos a mais, mas ainda tentam provar que ainda têm munição: com as armas a impotência se foi! Quanto mais velhos, maiores as armas e o arsenal bélico.
Talvez involuntariamente, por trás das pretensões de fazer uma crítica social, Bobcat Goldthwait faz em “God Bless America” a apologia de todos os elementos simbólicos desse imaginário fetichista que a cultura americana investe nas armas: um protagonista loser, socialmente impotente, ao lado de uma bela ninfeta e armados até os dentes, vingam-se de uma América castradora. Se a arma é um instrumento de justiça, o acerto de contas de “God Bless America” cai vítima da própria patologia que tenta curar: será que o fetiche das armas, mais do que violência, no fundo produz aquela forma de pensamento e estilo de vida medíocre e fascistoide que o filme tenta combater?

Ficha Técnica

  • Título: God Bless America
  • Diretor: Bobcat Goldthwait
  • Roteiro: Bobcat Goldthwait
  • Elenco: Joel Murray, Tara Lynne Barr, Melinda Page Hamilton
  • Produção: Darko Entertainment
  • Distribuição: Magnet Releasing
  • Ano: 2011
  • País: EUA

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