quinta-feira, maio 30, 2013

"Argo" e "Ghost Army": a simulação uniu Guerra e Cinema


Os inimigos dos EUA sempre os atacaram ou com o fundamentalismo religioso-ideológico (islamismo, comunismo etc.) ou com a tática da guerra total (os nazis na Segunda Guerra Mundial). E os americanos responderam com sua principal arma: a simulação. Diferente das táticas ideológico-militares de dissimulação, os EUA encontraram uma arma ainda mais insidiosa no interior da sua própria cultura: do “Studio System” de Hollywood às mesas de pôquer de Las Vegas a arma da simulação e do blefe. Os casos históricos de “Argo” em 1979 no Irã e a inusitada tática de uma unidade militar chamada “Ghost Army” na Segunda Guerra Mundial ilustram bem essa complexa conexão entre Guerra e Cinema que explica porque a simulação conquistou o mundo.

Estamos acostumados a pensar o cinema hollywoodiano como instrumento ideológico do complexo governo-militar-diplomático dos EUA. Exemplos não faltam das evidências disso: desde os filmes patrióticos, a promoção dos novos heróis pós-depressão econômica de um país revitalizado pela vitória na Segunda Guerra Mundial e a “política de Boa Vizinhança” com Carmem Miranda e Zé Carioca para agradar e cooptar os países da América do Sul na época da Guerra Fria e a ameaça comunista; até os filmes e minisséries dos anos 1960-70 que tornaram o american way of life desejáveis para nós e os filmes de ação de Rambo e Braddock da era Reagan para levantar a imagem militar de um país derrotado no Vietnã.

Nesses casos temos a submissão da produção cinematográfica às estratégias de dissimulação dos interesses do Estado. É importante entender esse conceito de dissimulação: é a situação onde alguém afirma não possuir algo que, na verdade, está escondendo. É o campo da mentira, da manipulação e da ideologia.

Mas ao longo da história das complexas conexões entre Cinema e Estado podemos encontrar uma situação inversa onde o complexo governo-militar-diplomático se submete à lógica do sistema cinematográfico, procurando imitá-lo em uma estratégia de simulação.

Desde a Política de
Boa Vizinhança dos EUA
com o Brasil
dos anos 1930-40, as conexões
entre Cinema e Guerra

Para entendermos essa relação inversa temos que compreender esse novo conceito. Por simulação entende-se o inverso da dissimulação: significa quando alguém afirma possuir algo que na verdade não tem. Finge uma presença ausente. Não estamos mais no campo do segredo e da mentira, mas do blefe. A simulação é uma característica dominante na sintaxe cinematográfica: temos o “real” externo ao sistema cinematográfico que é traduzido através de efeitos de realidade na narrativa clássica hollywoodiana (edição e montagem simulando a continuidade do olhar humano).

Esse conjunto de signos indiciais tenta recriar a realidade dentro do espaço semiótico fílmico para depois ser “gramaticizado” através das convenções cinematográficas de gênero, de linguagem de câmera e de todas as convenções da linguagem fílmica, determinados pelas exigências de uma produção industrial. O cinema simula existir na edição, montagem, cenografia e efeitos especiais uma realidade que não existe.

Em dois momentos da história o sistema governo-militar-diplomático procurou imitar essa estratégia de simulação cinematográfica: o caso “Argo” e o episódio da Segunda Guerra Mundial conhecido como “Ghost Army”.

O caso “Argo”: metalinguagem e auto-referência


Historicamente o caso “Argo” foi sobre uma crise diplomática envolvendo os EUA e o Irã em 1979 onde 52 norte-americanos foram mantidos reféns após um grupo de militantes islâmicos invadirem a embaixada americana em Teerã. No meio dessa crise, um grupo de seis funcionários consegue fugir da embaixada e se esconde na casa do embaixador canadense. Como retirá-los em meio à crise da Revolução Iraniana e ameaçados de execução pública se fossem localizados pelas milícias revolucionárias?

A CIA cria um ardiloso plano: a criação de um falso filme (uma ficção científica chamada “Argo”) a partir de uma produtora fake criada pela CIA em Hollywood dirigida por veteranos produtores do meio cinematográfico que aceitaram participar da simulação. Como equipes de produção cinematográfica viajam pelo mundo em busca de locações, o grupo de diplomatas foragidos simularia ser técnicos da equipe de filmagem, conseguindo dessa forma sair do país.

Temos aqui uma referência à simulação, característica dominante da sintaxe do sistema cinematográfico. Se historicamente o sistema cinematográfico esteve em uma posição hierárquica inferior ao sistema militar-diplomático (Hollywood como instrumento de propaganda ideológica externa dos EUA), nesse caso temos uma inversão. O que permitiria essa semiose entre esses sistemas diferentes é uma qualidade isomórfica – ambos lidam com aparências e imagens, o primeiro ocultando existência de realidades e o segundo simulando a existência.

CIA no Irã: inspirando-se em Hollywood
Temos uma decodificação pela CIA de todo o código cinematográfico (fases da produção de um filme, elaboração de roteiros, storyboard etc.) para uma posterior recodificação a partir dos estereótipos que os iranianos teriam sobre um filme norte-americano para dar verossimilhança à estratégia de simulação. Temos aqui uma metalinguagem sobre o próprio sistema cinematográfico.

No ano passado o próprio sistema cinematográfico vai construir uma narrativa fílmica dessa metalinguagem feita dela mesma pelo sistema militar-diplomático em 1979: o filme “Argo” (2012), premiado com o Oscar de melhor filme esse ano. Temos novamente um movimento de decodificação e recodificação, um movimento de retorno onde o sistema cinematográfico fará uma recodificação de outra recodificação feita dela mesma por outro sistema.

Pois o filme “Argo” curiosamente fará, nessa recodificação de outra recodificação, uma auto-referência ao próprio sistema cinematográfico em uma passagem da narrativa bem significativa. Isso é ironicamente demonstrado no filme quando o agente Tony Mendez (Ben Affleck), travestido de produtor canadense com storyboards e o roteiro do filme “Argo” debaixo do braço, se apresenta a um funcionário do Ministério da Cultura iraniano e explica a necessidade de busca por locações históricas para rodar o filme: “lugares históricos, entendo! O oriente exótico... cobras encantadas, tapetes voadores... a função do nosso escritório é a purificação, mas também a promoção da arte. Vou levar isso ao ministro”.

Nessa passagem a narrativa remete à sua própria gramática fílmica que transcodifica a realidade exterior ao sistema semiótico cinematográfico norte-americano (características culturais, étnicas e sociais de outros países) em um sistema indexical que estereotipa e transforma em clichês de rápida identificação, cujas origens estão no Studio System da primeira fase industrial hollywoodiana onde mundos exóticos eram representados cenograficamente em gigantescos estúdios.

“Ghost Army”: a cultura da simulação norte-americana


Tanques infláveis: a simulação no
campo de batalha
Como são possíveis essas correspondências entre sistemas aparentemente tão distantes, o Cinema e a guerra? Talvez somente seja possível pela existência de um texto único ou moeda de troca que parece unificar toda a semiosfera cultural norte-americana: a categoria de simulação.

O caso histórico do “Ghost Army” parece ilustrar bem isso. Algumas semanas após o “Dia D”, uma unidade do exército norte-americano com pouco mais de mil homens desembarcou na França para por em movimento um verdadeiro road show em plena Segunda Guerra mundial usando tanques e caminhões infláveis, amplificadores com sons pré-gravados de movimentação de tropas e caminhões e diversas ações cênico-teatrais, incluindo efeitos especiais cenográficos. Munidos de compressores de ar e alguns soldados-atores eram capazes de criar em uma hora falsos comboios militares que aparentavam ter 30.000 homens. O objetivo era criar impacto psicológico nas tropas nazistas (veja abaixo trailer do documentário The Ghost Army dirigido por Rick Beyer e exibido pela TV Public Broadcasting Service (PBS), EUA, 2013).

Essa unidade de táticas de camuflagem do Exército norte-americano ficou conhecida como “Ghost Army” – oficialmente “23rd Headquarters Special Troops”.

Se os nazistas apresentaram a novidade da chamada “guerra total” (moderno conceito de conflito de alcance ilimitado com mobilização total tanto de civis como militares), os norte-americanos impuseram a novidade da estratégia da simulação.

Pôquer, Las Vegas e blefe: a simulação
é o núcleo da cultura americana
Mais uma vez temos aqui a transposição do código do Studio System hollywoodiano no sistema militar-diplomático. Toda a indexicalidade explorada pelo “Ghost Army” fez uma curiosa metalinguagem dos índices que compõem o efeito de realidade e verossimilhança da cenografia e efeitos especiais cinematográficos.

Mas por que essa categoria de simulação foi recodificada no interior de um sistema aparentemente tão distante como o militar-diplomático? Para o pesquisador canadense McLuhan a eletricidade é a informação no seu estado puro que trouxe uma mensagem totalmente radical, difusa e descentralizada eliminando os fatores de tempo e espaço da associação humana. Assim como fizeram mídias como o telégrafo, rádio, telefone e televisão. Principalmente essa última mídia, onde a imagem formada a partir de raios catódicos que bombardeiam pixels cria uma imagem mais real que a própria realidade, mais limpa, vívida e brilhante: a simulação.

Esse processo modelizante cria uma operação cognitiva, o “diagrama de relações”: a simulação como “estesia”, isto é, uma dimensão sensível e sensorial dos objetos da percepção e da cognição. Autores distantes dessa discussão sobre semiótica da cultura como o crítico da cultura Neal Gabler (A Vida, O Filme – Como o entretenimento conquistou a realidade, São Paulo: Companhia das Letras, 1999) ou o historiador Daniel Boorstin (The Image: A Guide to Pseudo-Events in America. Vintage Books, 1992) reconhecem que a categoria da simulação tornou-se uma categoria dominante em diferentes fenômenos sociais.

Diferentes sistemas semióticos como a Economia (a perda do lastro semiótico do valor com a financeirização), a Política (a crise da representação com a dominância da sintaxe midiática) e o Técnico-científico (a crise de representação com os sistemas recursivos e auto-referenciais das tecnologias computacionais, de informação e das ciências cognitivas) passam a ter a simulação como uma “moeda” ou “texto unitário” para as trocas de informações.

Do crescimento de Hollywood como indústria cinematográfica no início do século, passando pelo crescimento de Las Vegas e toda a indústria de jogo e entretenimento nas décadas de 1930-40, a categoria de simulação se interpõe como metáfora, alegoria ou a própria “imagicidade” que dá sentido ou inteligibilidade ao extra-semiótico da semiosfera da cultura norte-americana.

Por isso é sintomática a estratégia do “Ghost Army” como arma de simulação. Enquanto os nazis davam sentido à realidade através da categoria de guerra total (talvez a “gestalt” de uma cultura onde o impresso, o fotográfico e o artístico ainda eram dominantes) os norte-americanos já figuravam uma estratégia militar baseada na simulação, texto unitário de trocas de uma semiosfera cuja ordem sensorial dominante já era marcada pela eletricidade e eletrônica.



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