quinta-feira, fevereiro 14, 2013

A Semiótica das fotografias corporativas


As chamadas fotografias corporativas acabaram se tornando um subgênero fotográfico, onipresentes em banco de imagens, templates de blogs e sites, slides de apresentações de qualquer natureza e, claro, no endomarketing de empresas. Fotos onde são mostradas pessoas em situações positivas, motivadas, otimistas e de boa fé. De “tecnologia de poder” que busca criar a autoimagem e justificativa de instituições totais como empresas, hoje esse estilo de composição fotográfica invade outros campos como educação, saúde, internet e publicidade. São tidas como fotos “inspiradoras” e “motivacionais” em apresentações e treinamentos de Recursos Humanos. Porém, não resistem a uma análise semiótica, capaz de explicitar toda a carga de mitologia, estereótipo e retórica a partir da qual são estruturadas.

Ambientes corporativos me fazem lembrar o conceito do sociólogo Erving Goffman (1922-1982) de “instituições totais”: estabelecimentos fechados, funcionando sobre regime de internação, onde um vasto grupo de pessoas internadas fica subordinado a um grupo menor que dirige autoritariamente a instituição. Sua principal característica é que elas quebram barreiras e unificam as três esferas da vida: dormir, brincar e trabalhar.

Essas instituições são capazes de criar “tecnologias de poder” altamente criativas para propósitos de vigilância, repressão, punição, legitimação e justificação. Dessas tecnologias de poder, certamente uma das mais cruciais é como a instituição se mostra aos seus integrantes legitimando-se e justificando para seus subordinados a natureza do seu trabalho e a sua própria existência. A comunicação interna (house organs, endomarketing, folders, intranets, slides em reuniões etc.) passa a ser de importância estratégica ao criar uma autoimagem da corporação para seus “colaboradores”.

O que mais chama a atenção nessas tecnologias de poder são as chamadas “fotografias corporativas” porque elas perpassam todas as mídias voltadas à comunicação interna: estão presentes em slides de apresentação, nos folders do mundo dos negócios, nos sites de intranets, nos materiais de treinamento, nas comunicações do RH etc.

As fotografias corporativas criaram um subgênero
fotográfico presente em diversas mídias e instituições
Mais do que isso, esse estilo de foto parece criar um paradigma copiado por outras “instituições totais” como escolas, universidades, hospitais etc. A linguagem visual dessa tecnologia de poder corporativa acabou criando uma espécie de subgênero fotográfico presente em banco de imagens na Internet, galeria de imagens de softwares processadores de texto ou de edição de slides de apresentação, templates de blogs e de sites etc. Qualquer seminário de grupo de alunos exibidos em uma aula universitária ou reunião de qualquer natureza, pronto! Lá estão slides com fotos em estilo corporativo de banco de imagens: situações de atitudes positivas, imagens de pessoas motivadas e com boa fé, personagens sorridentes confiantes e altruístas.

Uma semiótica da mitologia corporativa


A ideologia das imagens é o objeto mais difícil de ser desmontado pela análise semiótica porque toda imagem é afirmativa, natural e evidente por si mesma. A imagem parece ser um simples decalque da realidade. Essa ingenuidade em relação às imagens foi desmistificada principalmente pelo semiólogo francês Roland Barthes em dois livros fundamentais: “Mitologias” (onde revela o mecanismo de funcionamento dos mitos da mídia francesa na década de 1950) e “O Sistema da Moda” (desmontagem dos clichês das revistas de moda francesas, revelando o arbitrário e a ideologia linguística no campo da moda e estilismo).

Barthes era um intolerante perante a mistura de má fé com boa consciência que os mitos e estereótipos produzem na sociedade e que depois as pessoas consomem como sentidos inatos. As fotografias corporativas seriam o típico objeto de análise barthesiano: um sistema de significação cercado por um ar de razão, boa fé e harmonia que pode ser desmontado, evidenciando o arbitrário do discurso visual.

Inspirado principalmente no método de análise semiológica (uma vertente europeia da semiótica, ciência geral dos signos) proposto por Barthes no “Sistema da Moda” vamos fazer uma análise de natureza ensaística e introdutória. Como “corpus” de análise vamos nos basear em uma amostragem dos resultados do mecanismo de busca do “Google Imagem” para a expressão “fotografia corporativa”.

Em um primeiro olhar, o sistema da fotografia corporativa parece possuir uma linguagem pobre, binária: exterior/interior da empresa; trabalhando em equipe/trabalhando sozinho; situações positivas/situações negativas; concentrada no trabalho/desconcentrada; fotografias simbólicas/fotografias realistas; pessoas olhando para a câmera/sem olhar para câmera. Isso é compreensível em instituições totais que exigem adesão imediata por meio de uma linguagem simples e sem matizações.

Percebendo essas dicotomias das situações no conjunto de fotografias, segundo passo é dividi-las em grupos de significações ou “classes de equivalência”, ou seja, a equivalência entre as situações particulares mostradas pelas fotos com uma ideia abstrata, imaterial e universal. O que podemos perceber na significação recorrente do corpus de análise, as classes formadas seriam essas:
[Exterior da empresa ≡ competição]; [Interior da empresa ≡ colaboração]; [olhando para a câmera ≡ pessoa exemplar]; [sem olhar para a câmera ≡ equipe]; [pessoas concentradas ≡ precisão]; [pessoas sorridentes ≡ vitoriosas]; [pessoas sérias ≡ luta pela vitória]; [fotos simbólicas ≡ positividade]; [fotos simbólicas ≡ negatividade]. Temos, portanto, nove classes de equivalência no pequeno universo desse ensaio (veja fotos abaixo).


[Exterior da empresa ≡ competição]

[Interior da empresa ≡ colaboração]

[olhando para a câmera ≡ pessoa exemplar]

[sem olhar para a câmera ≡ equipe]

[pessoas concentradas ≡ precisão]
[pessoas sérias ≡ luta pela vitória]

[pessoas sorridentes ≡ vitoriosas]
[fotos simbólicas ≡ negatividade]




Se percebermos bem, essas classes de equivalência podem ser agrupadas em dois grandes “filo” ou divisões: [situações positivas] e [situações negativas].

Classes das situações positivas para a empresa


Percebemos que fora da empresa reina a competição: pessoas correndo com pastas e celulares, situações individualistas, fotos simbólicas de homens de terno correndo para romper fitas de chegada etc. Ao contrário, no interior da empresa reina colaboração, trabalho em equipe e “colaboradores” que posam sorridentes, lado a lado, para as câmeras. Nessas fotos há uma divisão entre os sorridentes (em posição destacada, à frente dos outros) como aquele que parece ser o vencedor, o exemplar; e aqueles concentrados diante de laptops e celulares que parecem ainda lutar pela vitória.

Nessa classe há uma dupla mensagem contraditória: se no interior da empresa reina a colaboração e fora dela a competição, essa oposição operada entre sorridentes e não sorridentes demonstra o contrário – há também competição em um ambiente de aparente solidariedade e harmonia. Mesmo nas fotos de reuniões, a câmera procura concentrar o foco sempre em alguém mais destacado (em pé, diante do laptop, com uma caneta na mão a dizer algo etc.) desfocando os demais personagens da mesma cena.

As fotos dessa classe parecem conter um “ato falho” ou um sintoma do jogo corporativo: todos devem ser colaboradores imbuídos de espírito de equipe, mas em seu conjunto as fotos falam o contrário: a câmera privilegia aquele que se destacou, o exemplar, o vitorioso.

Classe de situações negativas para a empresa


Aqui também existe uma dupla mensagem contraditória: são fotos simbólicas que representam três tipos de situações “negativas” para a atmosfera de colaboração no interior da empresa: stress, fofoca e boato. Embora as fotos representem situações não desejáveis para o ambiente de trabalho, estranhamente as fotos mantém a mesma linguagem das fotos “positivas” – matiz azul, tons pastéis, pouquíssimo contraste, dando uma aspecto de “cotidianidade” ou “normalidade”. Estranhamente não há uma retórica “dramática” (contraste mais forte, sombras ou alteração de matiz) que dê um aspecto de exceção ou disfuncionalidade às situações.

Seria mais um ato falho do jogo corporativo? Afinal, sabemos que muitas vezes o jogo corporativo torna-se maquiavélico onde stress, fofocas e boatos podem ser instrumentalizados por chefias para produzir competições internas, dinamismo para, segundo essa filosofia, arrancar os “colaboradores” da passividade e conformismo. Filmes como “Cisne Negro” (Black Swan, 2010) mostra bem isso na situação de uma Companhia de Balé cujo diretor artístico manipula a competição entre duas bailarinas alimentando fofocas e intrigas para arrancar delas o máximo de desempenho.

O sistema Retórico: os estereótipos


Vimos acima que as classes de equivalências formam os signos, ou seja, as menores unidades de significação do sistema das fotografias corporativas. Essa equivalência é sempre arbitrária (por exemplo, [exterior ≡ competição]), isto é, atribuem-se valores abstratos a coisas materiais. Mas o sistema necessita que essas relações semióticas sejam naturais e imperativas para que sejam consumidas como imagens evidentes por si mesmas. Entra em ação o sistema retórico com a finalidade de criar estereótipos e clichês de cores, vestuários etc.

Um longo inventário dos elementos retóricos desse sistema iria além do espaço dessa postagem, mas vamos analisar os principais:

(a) Na maior parte das fotografias encontramos personagens femininos com cabelos longos e lisos e os homens lisos e curtos. Há raras exceções de personagens masculinos com cabelos encaracolados ou ondulados. Os cabelos lisos são onipresentes. Símbolo do conformismo ou de marca étnica?

(b) O uso de óculos é verificado principalmente em mulheres e quase sempre em situações de concentração em laptops, celulares ou atentas em reuniões. Isso não é verificado nos personagens masculinos. Parece que os óculos são necessários para caracterizar “seriedade” e “profissionalismo” nos personagens femininos. Em algumas fotos as mulheres seguram canetas. Nas fotos, às mulheres é mais exigido o uso de ícones da seriedade (canetas, óculos, dedos segurando o queixo etc.) do que aos homens.

(c) Nas fotos simbólicas onde se mostram cumprimentos com as mãos como um ícone dos fechamentos de negócios, a esmagadora maioria é com personagens masculinos.

(d) A cor azul é onipresente, como fundo ou como a matiz da fotografia. Eva Heller em seu livro “Psicologia Del Color” demonstra, a partir de entrevistas realizadas com um universo de 2.000 pessoas, que a cor azul combinada com o verde transmite os valores mais caros ao mundo corporativo: harmonia, confiança e amizade. Não é à toa que no papel de parede do Windows XP dominava o verde e o azul e essa combinação está presente em muitos materiais impressos corporativos. Porém, a cor azul como dominante é a cor masculina por excelência.

(e) Também há uma onipresente tonalidade pastel nas cores, com poucos contrastes, criando uma atmosfera de harmonia e serenidade – mesmo nas cenas “negativas” de stress, boatos e fofocas.

(f) Massiva utilização do plano de câmera contra-plongeé (debaixo para cima) para incutir nos personagens (quase sempre masculinos) idealismo, visão de futuro, poder e sucesso profissional.

Para a nossa surpresa, o sistema retórico demonstrou ser extremamente machista, colocando uma diferença hierárquica principalmente de sexo, ao contrário do sistema de classes de equivalência onde tanto homens como mulheres são mostrados como personagens vitoriosos, exemplares ou de destaque. Mais uma vez parece encontrarmos um ato falho: embora o discurso corporativo mantenha os valores de equipe, colaboração e igualdade, o sistema retórico demonstra uma implícita discriminação sexual no dia-a-dia de trabalho.

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