quinta-feira, junho 13, 2024

Amor, família e catástrofe do tempo na Era Reagan em 'Peggy Sue - Seu Passado a Espera'


Depois de vários anos de experimentos estilísticos com novos processos cinematográficos e resultados desiguais, em 1986 Francis Ford Coppola decidiu fazer apenas um filme: “Peggy Sue – O Seu Passado a Espera” (Peggy Sue Got Married). Seguindo a receita narrativa de Spielberg e Zemeckis (histórias contadas para “crianças de qualquer idade”), Coppola embarca num enredo semelhante a “De Volta para o Futuro”, mas em um tom de conto de fadas adulto: uma mulher participa do baile comemorativo dos 25 anos da turma de formatura do ensino médio e desmaia. Quando acorda, descobre que voltou a 1960 e habita seu próprio corpo adolescente, mas com a consciência adulta. É a oportunidade da segunda chance para dirimir os arrependimentos do presente. Como produto da neoconservadora Era Reagan, “Peggy Sue” quer mostrar que o amor e a família estão além da catástrofe do tempo.

 

Era uma vez o cinema hollywoodiano dos anos 1980, sob o impacto da TV e do videocassete. O advento do “video cassete recording” assustou a indústria do cinema, colocando seus lobistas no Congresso em alerta para pressionar os políticos em defesa de projetos de garantias dos direitos autorais – afinal, com o dispositivo, o espectador não só poderia gravar filmes, como também distribuir ou até vender cópias.

Mas logo Hollywood entendeu como poderia lucrar com o novo mercado das locadoras de vídeo VHS. Também compreendeu as mudanças sociológicas que estavam ocorrendo: a TV e o videocassete fixaram o público adulto da conveniência de assistir filmes em casa. Enquanto o cinema tornou-se o centro de gravidade do público infanto-juvenil, menos sedentário e mais mobilizável. 

De repente, o cinema sentiu a necessidade de buscar uma nova linguagem, aquela que buscasse “as crianças de todas as idades”. Isto é, filmes que funcionassem tanto na telona quanto na telinha da TV/videocassete. E quem deu essa resposta foram Steven Spielberg e seu discípulo Robert Zemeckis.

As trilogias Indiana Jones de Spilberg e De Volta para o Futuro de Zemeckis serviram de paradigma para essa nova linguagem generalista, baseada na estrutura dos contos de fadas, mas numa abordagem polissêmica para agradar tanto jovens quanto adultos.

Peggy Sue – Seu Passado a Espera (Peggy Sue Got Married, 1986) foi um bom exemplo de como o cinema daquela década não só aprendeu a lição como também passou a sofisticá-la. O filme é uma variante adulta do contos de fadas: uma mulher participa da festa de comemoração dos 25 anos da turma de formandodo ensino médio de 1960. No ápica do evento, quando é coroada como a rainha da festa, ela desmaia. Para acordar em 1960 e habitar o seu corpo adolescente.

 Esses poucos detalhes fazem o filme soar como De Volta para o Futuro, mas pense um pouco e você verá que a protagonista chamada Peggy Sue não é um clone, mas uma imagem espelhada. Em De Volta para o Futuro, o herói viajou para trás no tempo para conhecer seus próprios pais quando eles eram adolescentes. Em Peggy Sue, a heroína viaja para trás para entrar em seu próprio corpo quando adolescente - e ela entra nele com sua mente de 42 anos ainda intacta.

Peggy Sue combina a estrutura do velho conto de fadas (o tempo diferente passa a vigorar quando a princesa espeta o dedo na roca e desmaia – “A Bela Adormecida”; a vertigem quando Alice cai no buraco que a leva ao País das Maravilhas; ou quando Dorothy é levada pelo tornado ao mundo de Oz, a perda de sentidos como passaporte para outro mundo) com o conto adulto: o mito da segunda chance, isto é, o fascínio pela viagem no tempo pelo desejo de fazer outras escolhas no passado para consertar os problemas do presente.



   Por isso, Peggy Sue oferece momentos paradoxais. O que você diria, sabendo o que sabe agora, para as pessoas que amava quando tinha 17 anos? Como você se sentiria se atendesse o telefone e fosse a voz da sua avó? O que você diria, sabendo que ela morrerá daqui a dois anos? Seu coração não saltaria na sua garganta? Peggy Sue – Seu Passado a Espera fornece momento após momentos assim. 

E ainda assim é uma comédia. O diretor Frank Capra fez comédias como essas, nas quais o humor saia de um drama profundo, até mesmo sentimental, de emoções humanas. 

Há uma cena no filme em que a garota de 17 anos (com a mente da mulher de 42 anos) se senta no banco da frente de um carro e fica com o adolescente que (ela sabe) vai ser no futuro seu marido e irão se divorciar. Imagine beijar alguém pela primeira vez depois de já tê-lo beijado pela última vez.

Assistir quase 40 depois a esse filme nos faz lembrar do feminismo ciborg do premiado Pobres Criaturas(Poor Things, 2023) de Yorgos Lanthimos: se neste filme acompanhamos as consequências da mente de um bebê sendo transplantado para o corpo de uma mulher adulta, em Peggy Sue temos o inverso  - a consciência de uma mulher adulta do futuro retornando ao seu próprio corpo adolescente de 25 anos atrás.

Mas lembre-se: Peggy Sue é uma produção dos tempos neoconservadores da Era Reagan. Portanto, não espera nenhum manifesto feminista como em Pobres Criaturas.  Afinal, “Peggy Sue se casou”. 



O Filme

Peggy Sue abre com a protagonista feita por Kathleen Turner acopanhada da sua filha Beth (Helen Hunt) preparando-se para a celebração dos 25 anos da turma de formandos do ensino médio de 1960. Ela está tensa. Afinal, está em processo de divórcio com Charlie Bodell (Nicolas Cage), agora conhecido como “Crazy Eddie” pelos seus comerciais malucos da sua loja local de eletrodomésticos.

A tensão é ainda maior porque, em 1960, o casal foi eleito como rei e rainha do baile de formatura.

O enredo de Peggy Sue é semelhante ao de De Volta para o Futuro, mas suas preocupações são essencialmente diferentes. Peggy Sue, a ex-rainha do baile, vê apenas a bagunça que sua vida se tornou -- seu marido Charlie está tendo um caso, e seu casamento está se desintegrando. Mas através de algum tipo de dobra do tempo, ela viajará de volta para seus dias de adolescência, onde as decisões que a levaram a essa crise em sua vida foram tomadas.

Como em De Volta para o Futuro, o presente é feito de arrependimentos e frustrações: ela engravidou e foi obrigada a ser casar com Charlie. E ele teve que renunciar ao sonho de ser cantor/compositor para assumir a loja de eletromésticos do pai e sustentar o casal de gêmeos que estava vindo.



Em meio ao bombardeio sensorial do baile (as pareedes decoradas com posters das fotos de 1960, as mesmas músicas, os arrependimentos,os sonhos frustrados etc.), no ápice da coroação de rainha da festa, Peggy Sue perde os sentidos.

Acorda em pleno ensino médio em 1960, também desfalecida ao doar sangue em uma campanha escolar.

Peggy Sue acorda num corpo adolescente, mas com a consciência de 42 anos. Ela,portanto, tenta evitar os avanços de seu namorado Charlie. Ela sabe que pouco antes da formatura do ensino médio, ela dormiu com Charlie, engravidou e teve que se casar. Mas em 1985, seu casamento com Charlie se desfez pelas infidelidades,arrependimentos, e está indo para o divórcio. 

Peggy Sue faz tudo o que pode em 1960 para mudar o curso de seu futuro - ela dorme com o atleta da escola, ajuda o nerd matemático da escola ao apontar para ele as grandes invenções do futuro (por isso, no futuro, se tornará um milionário da Big Tech) e tenta dar a letra de uma famosa música dos Beatles para Charlie para que ele possa gravá-la primeiro e se tornar famoso. E esqueça do seu amor por ela.

Aqui, a performance de Kathleen Turner impressiona. Além da descoberta do seu tom para a comédia, ela tem pleno domínio da linguagem corporal. Na época, com 32 anos, interpreta uma adolescente fazendo certas mudanças em seu discurso e movimento: ela fala mais impetuamente, não esperando que outras pessoas respondam, e ela caminha naquele jeito adolescente descuidado. Daqueles que ainda tropeçam com frequência suficiente para pisar com cuidado.

A atriz sabe que um dos sintomas do passar dos anos é organizar os movimentos corporais, com mais cuidado em repouso.  Ao contrário do adolescente.



Família e a catástrofe do tempo – Alerta de Spoilers à frente

Mas, espere! Essa é uma produção típica da era neoconservadora da presidência republicana de Ronald Reagan, nostálgica pelos supostos anos dourados dos EUA na década de 1950 – uma proto-versão do “Make America Great Again” de Donald Trump.

Peggy Sue repete um tropos presentes em quase todos os filmes-catástrofes de Hollywood: a reunião e sobrevivência da família em um mundo que cai em pedaços. Mas aqui é a salvação da família diante da catástrofe da passagem do tempo.

O título original diz tudo: “Peggy Sue se Casou”... e nada poderá mudar isso, nem uma involuntária volta ao passado pelo peso dos arrependimentos.

Eventualmente, Peggy Sue vai passar um tempo com seus avós, quando ela e seu avô vão à reunião de uma irmandade secreta que cultua a vigem no tempo por algum tipo de filosofia esotérica. Tentam ajudá-la a "transportar" de volta a 1985. Mas é Charlie que sequestra Peggy Sue durante a cerimônia,para confessar seu amor por ela. Irresistivelmente os dois acabam fazendo amor - basicamente não mudando sua história. 

O filme volta a 1985, onde Peggy Sue está no hospital. Ela teve um evento cardíaco durante a reunião e parece ter apenas sonhado sobre voltar a 1960. Charlie está esperando no quarto do hospital quando ela acorda, e os dois se reconciliam. 

Para voltar aos anos dourados do sonho americano, nada melhor do que proteger a família da catástrofe do tempo. Todo o sonho americano, dos bairros suburbanos de classe média com suas gramas verdejantes, depende no núcleo de consumo familiar.

Oprojeto “Peggy Sue” de Francis Ford Coppola veio depois de vários anos em que ele tentou fazer avanços técnicos e de produção em seus filmes, experimentando novos processos cinematográficos e novas abordagens estilísticas com resultados honrosos, mas desiguais.

Dessa vez Coppola queria apenas fazer um filme, colocar alguns personagens e contar uma história. Dentro da principal fantasia-clichê hollywoodiana: a “quebra-da-ordem-e-retorno-a-ordem”.


 

 

Ficha Técnica

 

Título: Peggy Sue – Seu Passado a Espera

Diretor:  Francis Ford Coppola

Roteiro:  Jerry Leichtling, Arlene Sarner

Elenco: Katheleen Turner, Nicolas Cage, Barry Miller

Produção: TriStar Pictures, Zoetrope Studios

Distribuição: TriStar Pictures

Ano: 1986

País: EUA

 

 

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