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terça-feira, junho 19, 2012

Edgar Allan Poe, a tortura e a ditadura militar

Dando sequência às adaptações dos contos de Edgar Allan Poe realizadas pelos alunos da disciplina Estrutura de Roteiro da Escola de Comunicações da Universidade Anhembi Morumbi, temos o vídeo “Somos Todos Filhos de Deus”. Inspirado na música “Deus lhe Pague” de Chico Buarque, transpõe o terror e delírio do protagonista do conto “O Poço e o Pêndulo” para os porões da tortura durante os “anos de chumbo” da ditadura militar brasileira. O vídeo consegue captar dois elementos universais do conto de Allan Poe: a manipulação do tempo e espaço como técnica histórica nas torturas e inquisições e o simbolismo metafísico do poço, que o autor norte-americano apenas sugere no conto, mas o vídeo vai explorar até as últimas consequências.

O conto “O Poço e o Pêndulo” do escritor norte-americano Edgar Allan Poe é um típico exemplo clássico do estilo gótico e de terror psicológico no qual era mestre. Ao contrário dos demais autores que se concentrava no terror externo, Poe prestava atenção ao terror originado no interior do próprio protagonista. Como era do seu estilo, o conto inicia com uma descrição objetiva de tempo e espaço que vai, aos poucos, misturando-se com o delírio e terror da gradiente de sentidos do personagem (visual e auditivo no caso desse conto). Tempo e espaço objetivos misturam-se com tempo/espaço psicológicos.

“O Poço e o Pêndulo” narra o julgamento e a condenação de um rebelde que, após receber a sentença dos inquisidores, é atirado inconsciente em um calabouço onde sofrerá diversas torturas físicas e psicológicas. Ao tentar reconhecer o lugar onde estava se depara com um poço que lhe desperta os mais terríveis pressentimentos quanto ao seu destino naquela cela.

sábado, junho 09, 2012

Edgar Allan Poe Gnóstico: os vídeos

Vamos dar início a uma série de postagens com vídeos produzidos pelos meus alunos da Disciplina Estrutura de Roteiro da Escola de Comunicação na Universidade Anhembi Morumbi. Foi proposto para eles o seguinte desafio: fazer roteiros literários livremente adaptados de contos do escritor norte-americano Edgar Allan Poe. Porém, deveriam manter o núcleo do argumento, ou seja, as atmosferas góticas e reflexões metafísicas e gnósticas do autor. Esses são os primeiros vídeos resultantes desses roteiros.

Edgar Allan Poe (1809 - 1849) foi o primeiro escritor do continente americano a influenciar os rumos da literatura para além do seu país. Se Freud ao visitar os EUA e avistar a Estátua da Liberdade teria dito “não sabem que estamos lhes trazendo a peste”, um século antes Allan Poe já havia contaminado o mundo com o seu gótico “impulso pelo perverso” cuja psicanálise é um dos seus frutos.

Seus contos e poemas estão repletos de uma metafísica gnóstica: um dualismo radical que vê a alma como aprisionada na materialidade do mundo como uma prisão e a única forma de escapar é através de um supremo ato de autoconhecimento, a gnose. Daí o fascínio de Allan Poe por personalidades divididas, pela Queda, desamparo, saudades, latência, dormência, intoxicação.

Seus relatos sempre começam como relatos sóbrios e verídicos que logo mergulham em atmosferas de horror crescente até adquirir tons fantásticos e metafísicos. Allan Poe tinha o talento para descrever situações intoleráveis onde sua clareza analítica revelava o prazer mórbido do autor em se aprofundar nas origens dos impulsos da natureza humana e na sua condição de estrangeira ou de exilada em um mundo cujo Deus é o do Abismo.

quarta-feira, janeiro 11, 2012

O Mito do Vampiro Chega à Maturidade no filme "Deixe Ela Entrar"




Esqueça filmes como “Crepúsculo” onde vampiros com “sex appeal” seduzem adolescentes. Aclamadíssimo em Festivais de cinema Fantástico, o filme sueco “Deixe Ela Entrar” (Let The Right One In, 2008) igualmente narra uma estória de amor impossível entre adolescentes, mas rompe com os principais cânones do gênero ao apresentar o vampiro não mais como encarnação, mas como representação do Mal: o vampiro abandona a adolescência dos “shopping centers” para ingressar na rotina da adolescência repleta de ambiguidades, indecisões e desejos de vingança.

sexta-feira, dezembro 30, 2011

Os Fantasmas do Tempo no Filme "Christmas Carol"

O livro “Christmas Carol” (Um Cântico de Natal, 1843) de Charles Dickens é atemporal por apresentar dois grandes arquétipos que marcarão a vida moderna: Fantasmas e o Tempo. Ao fazerem uma adaptação usando animação digital (através da tecnologia de “captura de performance”), a Walt Disney Pictures e o diretor Robert Zemeckis ("De Volta para o Futuro" e "Forrest Gump") produzem um efeito paradoxal: esvaziam o olhar crítico de Dickens sobre o início da modernidade ao reduzir a narrativa à estética videogame por meio de uma tecnologia moderna. O Ocultismo e a problematização do Tempo, marcas da literatura do século XIX como formas de questionar a modernidade, são temas oportunos para uma reflexão nesses momentos que antecedem a celebração de Ano Novo onde todos querem reter um momento do tempo, que então será passado.

O livro clássico de Charles Dickens “Christmas Carol” já recebeu centenas de adaptações. É um dos livros mais lidos, lembrados e citados de todos os tempos. A narrativa conta a estória de Ebenezer Scrooge, velho ranzinza e sovina que passou a vida inteira juntando uma fortuna, desprezando qualquer contato com as pessoas. Ele odeia o Natal por achar que é uma época onde as pessoas gastam mais do que têm e ironiza como gente tão pobre pode ser feliz. Na noite de Natal recebe a visita de três fantasmas (que mostram para ele as visões do passado, do presente e do futuro) levando-o a uma transformação íntima e reavaliando o significado da vida.

Só para ficar no cinema (as adaptações do livro de Dickens abrangem teatro, televisão, ópera, história em quadrinhos etc.) existem adaptações desde 1901. Desde então praticamente toda década há alguma adaptação, referência ou revisitação da obra, passando pelos mais diversos gêneros.

De Walt Disney temos o personagem do Tio Patinhas (Uncle Scrooge) inspirado no protagonista avarento do livro de Dickens, um curta de 1983 “Mickey’s Christmas Carol” e o recente “Os Fantasmas de Scrooge” (Christmas Carol, 2009) dirigido por Robert Zemeckis (“De Volta para o Futuro”, “Forrest Gump” e “Contato”).

Essa produção repete a velha fórmula dos estúdios Disney: a capacidade de lidar com temas trágicos, pesados e adultos de uma forma divertida para crianças e jovens ao diluir simbolismos arquetípicos. No caso da adaptação de Zemeckis, a utilização da tecnologia chamada “captura de performance” onde a animação digital é feita a partir do escaneamento das expressões dos atores. O diretor já havia utilizado essa tecnologia em “A lenda de Bewulf” e “Expresso Polar”, mas em “Os Fantasmas de Scrooge” há um estranho efeito: se a maior qualidade do conto de Dickens é a sua atemporalidade, na produção Disney a tecnologia converte a narrativa, em muitos momentos, em um videogame com cenas de ação desnecessárias. Os grandes temas arquetípicos da obra de Dickens (que induzem à reflexão existencial e moral das ações humanas) são esvaziados pelo ritmo frenético e uma estética cujas opções que o protagonista sovina tem que tomar parecem alternativas de um game em computador.

sábado, novembro 19, 2011

O Western Espiritual "Dead Man"

De todos os subgêneros e revisionismos criados a partir do western clássico, o que mais chama a atenção é o “acid western” pelo seu caráter “underground” místico e messiânico: todos os personagens do gênero estão lá (caçadores de recompensas, prostitutas, cowboys errantes etc.), porém eles não lutam mais por vingança, conquista ou justiça: buscam a iluminação espiritual. “Dead Man” (1995) do diretor Jim Jarmuch se insere nesse subgênero ao rechear as linhas de diálogos com inúmeras referências ao poeta e pintor inglês místico e herético William Blake e construir uma narrativa hipnótica como um mantra ao som da guitarra de Neil Young.

O gênero western é um produto tipicamente norte-americano que passou por uma série de renovações, sempre com a preocupação da indústria do entretenimento universalizá-lo para torná-lo um produto com um mercado globalizado: do western clássico desde a era do cinema mudo que retrata a luta do homem para conquistar a natureza infestada por índios e animais selvagens, passando pelo diretor John Ford (culturalmente mais neutro onde os nativos passam a ter um melhor tratamento) que vai construir aprofundamentos psicológicos em toda a galeria dos personagens do gênero (caçadores de recompensas, cowboys errantes etc.) até chegar a autoconsciência paródica do chamado “spaghetti western”de Sérgio Leone e o revisionismo de Sam Peckinpah onde pretendia arrancar poesia da violência representada em câmera lenta.

Para além dessa trajetória “mainstream”, o crítico de cinema Jonathan Rosenbaun aponta para um subgênero underground: o “acid western”subgênero que se inicia com o filme “El Topo” (The Mole, 1970), um western místico Cult recheado de referências ao tarot, messianismo e referências bíblicas em linguagem lisérgica. “Dead Man” de Jim Jarmuch se insere claramente nessa linha ao criar um protagonista que não busca mais conquista, vingança ou justiça, mas iluminação espiritual através de uma “poesia escrita com sangue”.

É a estória de um jovem homem que realiza uma jornada espiritual em uma terra estranha para ele, nas fronteiras extremas do oeste americano, em algum momento da segunda metade do século XIX. William Blake (Johnny Deep) é um contador que recebe convite para trabalhar em uma metalúrgica em uma cidade chamada Machine. Em seus bolsos alguns dólares e a carta de promessa de emprego na metalúrgica. Chegando lá, descobre que outro homem já ocupava a vaga de contador e que ele, Blake, chegou com um mês de atraso.

Deprimido, vai para um saloon, onde encontra com uma mulher, ex-prostituta, Thel (Mili Avital). Defende-a da agressividade dos homens do local, sendo convidado por ela para ir até seu quarto. Lá, ambos são flagrados pelo noivo Charlie Dickinson (Gabriel Byrne) que dispara um revólver, atingindo os dois. Em legítima defesa, Blake o mata e foge, depois de constatar que Thel estava morta. A partir desse ponto, começa o purgatório de Blake: Charlie era, na verdade, filho do proprietário da metalúrgica, que contrata três pistoleiros para matá-lo em vingança.

quarta-feira, setembro 28, 2011

Reflexões sobre o Gótico, o Estranho e o Fantástico

O Gótico, o Estranho e o Fantástico são elementos presentes em diversos gêneros cinematográficos representando a erupção de medos arcaicos e inconscientes que paradoxalmente são instrumentalizados pela indústria do entretenimento. São a base da linha de continuidade entre a narrativa fílmica e a experiência religiosa do "Sagrado".


Conceitos recorrentes nas análises empreendidas por esse blog, vamos agora tentar precisar melhor essas ideias e estabelecer alguns contrastes.


Apesar das importantes diferenças entre os gêneros fílmicos ficção científica, filme noir, horror e fantasia, todos eles partilham dos mesmos elementos góticos: o obscurecimento das fronteiras entre mundos familiarmente realistas e estranhas terras de estranhos sonhos; a mistura ambígua entre percepção e projeção; o conflito entre razão e inconsciência.

Esses elementos góticos estão intimamente relacionados com o movimento do Romantismo no séculos XVIII-XIX. Samuel Taylor Coleridge, autor do conto The Rime of Ancient Mariner, parece sugerir isso ao afirmar que:
“Pessoas e personagens sobrenaturais, ou no mínimo românticas, ainda que se transfiram para dentro da nossa natureza íntima dando um interesse humano e um aspecto de verdade suficientes para suspender a descrença do momento, constituem a fé poética.”[1]
O que Coleridge chama de “sobrenatural” ou “romântico”, poderíamos definir como gótico: uma narrativa como The Rime na qual presenças invisíveis, locais exóticos e eventos extraordinários são dominantes. Esse tipo de trabalho paira entre a realidade e a fantasia de maneira que passamos a considerar seriamente eventos que, de outra forma, normalmente não aceitaríamos. Este nível de dissolução das fronteiras entre credulidade e incredulidade é a chamada “ironia romântica”. Leva o leitor a acreditar no inacreditável. Encoraja-o a questionar a realidade empírica.

sexta-feira, maio 27, 2011

Minissérie "Alice": O País das Maravilhas 150 Anos Depois

Como seriam o País das Maravilhas e Alice 150 anos depois? Certamente mais violentos:  ela faixa preta em karatê e a Wonderland um reino onde o castelo da Rainha é substituído por um cassino de onde comanda um esquema de rapto de seres humanos para que suas emoções sejam drenadas  e transformadas em matéria-prima para a produção de drogas. Essa é a versão atualizada do clássico de Lewis Carroll escrita e dirigida por Nick Willing, numa minissérie em dois episódios para o canal por assinatura Syfy. Uma surpreendente combinação da distopia pós-moderna com uma clássica narrativa a partir da mitologia gnóstica.

A minissérie para TV “Alice” (2009) é mais uma adaptação de clássicos feita por Willing como na produção anterior “Tin Man” de 2007 (“Homem de Lata”, baseado no “Mágico de Oz”) e atualmente, em fase de pós-produção, a minissérie para TV “Neverland”, uma adaptação de Peter Pan.

A protagonista Alice de Willing  (Caterina Scorsone) não é mais uma jovem garota inglesa, mas agora uma jovem na faixa dos 20 anos professora de karatê e que mora nos Estados Unidos. Tudo começa quando o seu namorado  Jack Chase (Philip Winchester) é estranhamente sequestrado. Alice persegue os sequestradores até o interior de um escuro galpão abandonado até dar de encontro com um espelho, através do qual cai numa espécie de “wormhole” que a conduz até o País das Maravilhas.

Wonderland continua dominado pela maldosa Rainha de Copas (Kathy Bates), mas o esquema de dominação é bem diferente do descrito no original de Carroll (ameaças constantes de cortar as cabeças e o dragão Jabberwocky). Diferente do regime de terror do passado, agora a Rainha domina através da estratégia da sedução.

Com a ajuda de uma organização secreta (a “Sociedade do Coelho Branco”, um mix de Gestapo e SS nazista) sequestram seres humanos (“ostras” como eles denominam) no mundo real trazendo-os através do espelho/portal. Na Wonderland são mantidos prisioneiros em um gigantesco cassino em estado de semi-inconsciência e euforia em jogos em que todos sempre ganham. Mantidos nesse estado de delírio e euforia pelos prazeres proporcionados pela gratificação instantânea artificialmente criada, sentimentos, emoções e paixões são drenados para que os “carpinteiros” (os cientistas e técnicos laboratoriais) destilem a essência em frascos que se tornam a droga e moeda de troca para os súditos da rainha.

sexta-feira, fevereiro 11, 2011

O Gótico Gnóstico “La Casa Muda”: é possível o horror em tempo real?

Exibido no Festival de Cannes e no Festival do Rio 2010, “La Casa Muda” (Uruguai, 2010) de Gustavo Hernandéz é um suspense/terror que promete “o medo em tempo real”. Filmado num único plano- sequência, Hernandez surpreende o espectador ao inserir no filme (supostamente sem os truques dos planos e montagens) o tempo psicológico e a confusão entre percepção e projeção psíquica da protagonista. Ou seja, o filme insere elementos góticos e gnósticos em uma narrativa supostamente objetiva, onde a verdade não está nas imagens em movimento, mas nas fotografias.

Webcams, “vídeo-cassetadas”, reality shows e a popularização das câmeras digitais sem dúvida alteraram nossa sensibilidade em relação àquilo que definimos como “realidade”. As transformações ocorridas no gênero Terror no cinema, assim como a experiência do horror, certamente refletem essa evolução das mediações tecnológicas. Desde filmes como “A Bruxa de Blair” (The Blair Witch Project, 1999) há uma busca da experiência do horror em tempo real: o registro visual de uma câmera hesitante, em plano-sequência, tudo aparentemente sem cortes, a imagem granulada e borrada. O horror diante de uma realidade documental.

Esse movimento já era perceptível no cinema dos anos 70 como os primeiro horror explícito em “O Exorcista” (vômitos verdes e violência explícita), as lendas dos “snuffs movies” (Filmes violentos de caráter mórbido e sexual em que depois de violada e humilhada a vítima era assassinada) e o sucesso da série de vídeos VHS “As Faces da Morte” nos anos 80 (vídeos documentais de mortes bizarras).

O filme uruguaio “La Casa Muda” do diretor Gustavo Hernandez aparentemente se inscreve nessa tendência ao ser promovido como “o medo em tempo real” onde vemos 74 minutos de plano-sequência narrando a tentativa desesperada da protagonista Laura (Florencia Colucci) em escapar de uma casa que oculta um sinistro segredo. Além disso, o filme também é oferecido como baseado em fatos reais que teriam ocorrido em 1944 em um vilarejo no Uruguai quando foram encontrados dois corpos mutilados em uma casa de campo.

segunda-feira, fevereiro 07, 2011

Sinais do nosso tempo no filme "Enterrado Vivo": a vítima de uma sociedade terceirizada




Todo produto cinematográfico é histórico na medida em que é produto do seu tempo. Por isso carrega consigo, de forma indireta, inconsciente e subreptícia, as mentalidades ou as sensibilidades de cada época. Em "Enterrado Vivo" (Buried, 2010) o medo ou a fobia de ser enterrado vivo (tão presentes em obras literárias e cinematográficas) transforma-se em uma metáfora da amoralidade pós-moderna em uma sociedade dominada pela terceirização de empresas e serviços.

Assistir ao filme “Enterrado Vivo” (Buried, 2010) fez-me lembrar de outras obras (literárias e cinematográfica) que abordam esse medo que, de tão recorrente na História, transformou-se numa fobia (tafofobia). Cada uma dessas obras ofereceu uma abordagem sobre o medo de ser enterrado vivo em sintonia com a sensibilidade do seu tempo.

O medo e a fobia podem ser os mesmos, mas a sensibilidade em relação a tais muda. O terror metafísico e mórbido de Edarg Allan Poe em “O Enterro Prematuro” (1850), a brilhante adaptação desse conto pelo diretor Roger Corman em 1962 (o terceiro de uma série de filmes baseados na obra de Poe) e o atual “Enterrado Vivo” de Rodrigo Cortês, são três momentos em que esse mórbido tema é abordado, marcando a mentalidade de cada época: o horror metafísico de Poe, o enterro vivo como produto da morbidez da natureza humana em Corman e como o resultado da amoralidade pós-moderna em Rodrigo Cortês.

sexta-feira, dezembro 03, 2010

A Jornada de Alice de Lewis Carroll: ritual de passagem?

A interpretação mais aceita sobre a jornada de "Alice no País das Maravilhas" de Lewis Carroll é a de que a obra representa o rito de passagem da adolescência para o mundo adulto. Porém, essa leitura enfraquece toda a dimensão ocultista (metafórica e alegórica) da obra de Carroll e, o que é pior, reduz obras literárias ao campo dos sintomas e até patologias clínicas.


No debate que se seguiu após a minha apresentação no VI Encontro Científico e de Iniciação Científica da Universidade Anhembi Morumbi, em São Paulo, foi colocada uma questão sobre a minha leitura da Wonderland de Tim Burton (como mais um exemplo da filmografia atual sintonizada com a agenda tecnognóstica) como uma jornada de auto-conhecimento de Alice para, mais tarde, após decepar literalmente a cabeça de seus temores e fantasmas, tornar-se senhora de si e assume os negócios do pai falecido. Afirmei que da viagem onírica de Carroll, Burton traduz a estória de Alice em exemplo de determinação de uma jovem que se tornará empresária empreendedora (estender os negócios até a China).

domingo, setembro 19, 2010

O Sabor Gnóstico no Filme "Um Sonho Dentro de Um Sonho"

Embora o filme não aborde explicitamente temas gnósticos, "Um Sonho Dentro de Um Sonho" tem um "sabor gnóstico" ao adotar uma consciência auto-reflexiva não só da realidade como da própria linguagem cinematográfica. Ao fazer uma referência direta a um poema de Edgar Allan Poe, o filme se associa à tradição da "ironia romântica" que tematiza a angústia humana em ser prisioneiro da linguagem que não consegue apreender uma realidade que se perde no cruel fluxo do tempo.

Eric Wilson, em seu seminal livro sobre o “cinema gnóstico” “Secret Cinema: Gnostic Vision in Film” (onde defende o surgimento de um novo gênero cinematográfico, o “filme gnóstico"), classifica a presença do gnosticismo nos filmes em quatro categorias: os filmes propriamente gnósticos (filmes onde a cosmologia e teologia gnósticas são explícitas como em "Matrix" (Matrix, 1999) e Show de Truman (Truman Show, 1998), filmes Cabalísticos (onde a aspiração gnóstica por transcendência passa por robôs, próteses e servo-mecanismos – o filme "RoboCop" (RoboCop, 1987) seria um exemplo, filmes alquímicos (que descrevem como a vida emerge da morte, o espírito cresce a partir do corpo e a verdade surge a partir do caos – "Beleza Americana" (American Beauty, 1999), e "Homem Morto" (Dead Man, 1995) seriam exemplos dessa categoria.

Wilson fala também de filmes com “sabor gnóstico”, filmes que não abordam propriamente temas do gnosticismo, mas contêm o espírito ou a atitude gnóstica frente à realidade. Um questionamento, por assim dizer, metalinguístico frente o real: pode ser o real um plot dentro de um plot? Uma narrativa dentro de outra narrativa?

O Filme “Um Sonho Dentro de Um Sonho” (Slipstream, 2007), estrelado, dirigido e escrito por Anthony Hopkins certamente se enquadra nessa categoria. O título em português não poderia ter sido mais feliz. Retirado de uma das linhas de diálogo do filme, é uma referência a um poema de Edgar Allan Poe "Dream Within a Dream", escrito quando ele tinha 18 anos, em 1827.

Tal como a literatura do Romantismo do século XIX, os principais temas desse filme são a consciência “meta” da vida e da própria arte e a angústia diante do fluxo do tempo. Assim como no poema de Poe onde protagonista não consegue segurar a areia dourada que se esvai entre os dedos (“Oh Deus como segurar/o que não posso agarrar?/Oh Deus não posso salvar/Um grão desse cruel mar?).

Hopkins é Felix Bonhoeffer, um roteirista que, próximo da terceira idade, é contratado para reescrever um filme de mistério. Na verdade, tentar solucionar problemas de enredo decorrentes de eventos inesperados na produção do filme. Felix começa a viver em dois mundos distintos que, ao longo do filme vão se confundindo: o real (a produção do filme e a elaboração do roteiro) e a sua mente (referências imagéticas da sua vida se mesclando com os personagens do roteiro que tenta escrever).

Com inspiração nitidamente Linchyana (como Cidade dos Sonhos de David Lynch que metalinguisticamente trata dos meandros de Hollywood), Felix se defronta com matadores de aluguel, candidatas a atriz e produtores de cinema, tipos suspeitos que, ao longo da narrativa, transitam entre a realidade e o mundo paralelo criado pelo roteiro que tenta redigir.

O filme é um quebra-cabeças. Com uma edição frenética, há trocas constante de coloração das imagens (preto e branco, sépia, colorido), troca-se a ordem das cenas, erros propositais de continuidade, troca-se o autor das falas etc. Na primeira metade do filme o espectador fica totalmente perdido diante de uma aparente colagem aleatória de cenas. Parece um filme que ainda não foi editado (esse parece ser o propósito, já que se trata da produção de um filme que não termina).

A Ironia Romântica

Certa vez, o escritor e pesquisador Stephan Hoeller afirmou que todo artista sério já era, sem saber, meio gnóstico. A sobrevivência e os constantes "revivals" do gnosticismo certamente se devem a esse caráter parasitário de uma certa consciência ou atitude gnóstica diante da existência. Uma espécie de consciência meta. No caso da arte, a intrusão da figura do autor na obra literária, isto é, o caráter auto-reflexivo, a consciência de jogo na obra e sobre a obra. Essa é a característica principal do Romantismo: a “ironia”:
... A ironia romântica (...) não se esgota na mera interrupção do fluxo narrativo com o narrador dirigindo-se ao leitor. É, muito além disso, um recurso que se destina a fomentar uma constante discussão e reflexão sobre literatura – um processo do qual o leitor forçosamente participa. Essa participação é alcançada na medida em que o escritor destrói a ilusão de verossimilhança e desnuda o caráter ficcional da narrativa, chamando a atenção do leitor para como o texto foi construído.( VOLOBUEF, K. Frestas e Arestas. A prosa de ficção do romantismo na Alemanha e no Brasil. São Paulo: Editora da UNESP, 1998, p.99.

Essa atitude ou consciência meta (auto-reflexiva) que vê tanto a realidade como a arte que tenta representar a realidade como "construct" (artificialismo), parece ser o tema dominante do filme “Um Sonho Dentro de Um Sonho”. Na medida em que o protagonista confunde o roteiro e todas as suas referência cinematográficas (como o clássico “Vampiro de Almas”) com a própria realidade (a produção de um filme), Felix, atônito, chega ao limite da auto-reflexão: será a vida um roteiro cinematográfico, onde, dentro dele, produzimos novos roteiro? Ou, ao contrário, produzimos roteiros para, artificialmente, representarmos uma realidade inatingível?

Essa é a angústia que perpassa não apenas o filme “Um Sonho Dentro de Um Sonho”, mas de todo o Romantismo do século XIX: a angústia de que perdemos uma relação plena com a realidade, uma desconfortável sensação de hiato entre homem/mundo, experiência/representação. O recurso da ironia literária (obras ficcionais com constantes auto-reflexões narrativas, trazendo incerteza tanto ao protagonista quanto ao leitor sobre qual o ponto de vista da estória que está sendo contada) é o reflexo de uma consciência gnóstica em relação à existência: a desconfiança de um artificialismo tanto da arte como da própria realidade que pretendemos representar.

O filme constantemente repete planos do protagonista atônito, olhos arregalados e boca aberta, impotente, vendo o fluxo dos acontecimentos, a edição frenética e a troca constante da voz narrativa. Felix tenta ao longo do filme, sem sucesso, entender ou capturar o fluxo do tempo. Angústia fundamental da arte: como uma representação estática pode apreender o fluxo do tempo? Tal como no poema de Poe, como segurar entre as mãos a areia dourada que cruelmente se esvai?

Das artes plásticas, passando pela fotografia e cinema, parece ser essa angústia fundamental que norteia as tecnologias das imagens. Porém, quando o cinema chega a sua maturidade artística e tecnológica, repete-se o mesmo fenômeno da literatura quando chegou ao seu ápice: a angústia da auto-reflexão, a consciência metalinguística das limitações da representação artística em apreender o fluxo do tempo e da realidade.

Mas essa consciência (ou INconsciência) gnóstica levanta uma suspeita mais profunda: e se esse próprio fluxo cruel do tempo for um artifício, um constructu no qual estamos aprisionados? Assim como Felix Bonhoeffer ou Edgar Allan Poe em seu poema, estaríamos presos nessa falha cósmica que é o fluxo do tempo?

Esse sabor gnóstico presente no filme “Um Sonho Dentro de Um Sonho”, esse encontro entre cinema e romantismo literário, faz-nos compreender o porquê da sobrevivência do questionamento gnóstico ao longo da história: para além dos questionamentos cosmológicos e teológicos feitos pelos seus pensadores, o Gnosticismo não consegue se limitar à bidimensionalidade do papel. Vai mais além, numa atitude constantemente renovada de ironia e auto-reflexão em relação à vida e à arte.

Abaixo, uma tradução livre do poema de Edgar Allan Poe:
"Um Sonho Dentro de Um Sonho"
Edgar Allan Poe

Receba este beijo na testa
E agora estou lhe deixando
Confessar-me é o desejo
Você não está errado
Meus dias foram um sonho
Contudo se a esperança fosse embora
Numa noite ou em um dia
Numa visão ou em nenhuma
Restaria algo?
Tudo que nós vemos
Tudo que parecemos
Não é mais que um sonho dentro de um sonho, sonho...

Eu estou entre o rugido de uma costa
De ondas atormentadas ao mar
E eu seguro entre as minhas mãos
Grãos da areia dourada
Oh, como elas rastejam
Dos meus dedos ao profundo
Quando eu soluço, quando eu soluço
Oh Deus, como segurar
o que não posso agarrar ?
Oh, Deus não posso salvar
um grão desse cruel mar ?
Isso é tudo que vemos
Tudo que parecemos
Não é mais que um sonho dentro de um sonho, sonho...
Sonho, Sonho, Sonho...
Trailer de "Um Sonho Dentro de Um Sonho (Slipstream, 2007)


Ficha Técnica:
  • Filme: Um Sonho Dentro de Um Sonho (Slipstream)
  • Direção: Anthony Hopkins
  • Roteiro: Anthony Hopkins
  • Elenco: Anthony Hopkins, Christian Slater, Jeffrey Tambor, John Turturro, Kevin McCarthy, Stella Arroyave
  • Produção/Distribuição: Strand Releasing
  • Ano: 2007
  • País: EUA
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quarta-feira, abril 21, 2010

Por que o Filme Gnóstico é uma Tendência Norte-Americana?

O fato de o filme gnóstico ser uma tendência eminentemente norte-americana pode ser explicado pelo fato de ser o resultado de um peculiar mix de religião e misticismo com origens nas formas literárias populares naquele país desde o puritanismo do século XVIII passando pelos períódicos renascimentos de religiosidade e misticismo como Mórmons e Pentencostais na virada do século XIX até o tecno-misticismo originado nos anos 60.

Em qualquer discussão sobre cinema, quando exponho a existência do filme gnóstico (a existência de uma tendência de filmes cuja característica é a recorrência de temas inspirados nas narrativas míticas do gnosticismo clássico e suas variantes e ecletismos – alquimia, esoterismo etc.) surge uma questão: por que a esmagadora maioria dos filmes gnósticos tem origem na produção cinematográfica norte-americana e hollywoodiana? Na verdade, nesta pergunta estão contidas duas interrogações: primeiro, por que Estados Unidos e, segundo, como essas narrativas gnósticas, que possuem mensagens de rebelião e desconfiança em relação ao status quo, podem chegar ao mainstream hollywoodiano? Sintetizando: por que só nos Estados Unidos encontramos esse fenômeno de “gnosticismo para massas”?

Responder a essas perguntas requer compreender a história do amplo gênero da literatura fantástica e os divergentes destinos na Europa e Estados Unidos e toda uma complexa série de migrações entre um continente e outro.

Podemos compreender que o primeiro florescimento do gnosticismo na modernidade (dentro da literatura fantástica que incorpora elementos do sobrenatural, grotesco e do inominável) foi na era romântica entre os séculos XVII e XVIII na Europa. Este renascimento surge numa combinação entre a especulação esotérica gnóstica e o pragmatismo esotérico no Romantismo. Figuras como William Blake e Percy Shelley beberam em fontes gnósticas, cabalistas e alquímicas, desafiando o status quo. Podemos compreender o modo narrativo do Romantismo como uma revolta contra a ascensão do racionalismo no século XVIII.

Nesse período encontramos na Europa a segunda variante da literatura fantástica: o Gótico. Suas vitorianas estórias de fantasmas talvez tenham sido a primeira forma de literatura ficcional a penetrar na cultura popular.

Na Europa, esta literatura romântica e Fantástica, especialmente na França e Alemanha, vai servir de veículo para o avanço das vanguardas artísticas tais como o Surrealismo e o Expressionismo. Em termos cinematográficos corresponderia ao período Cult e europeu dos filmes gnósticos, tal como descrita por Erik Wilson ("Secret Cinema: gnostic visions in film"). Para ele, o gnosticismo cinematográfico europeu passou por dois períodos bem distintos: no promeiro período temos os filmes que constituem “reacionários avisos” contra o gnóstico desejo de transcender a matéria (The Revenge of the Homunculus - Otto Rippert’s, 1916 - sobre as trágicas conseqüências de um experimento alquímico mal sucedido; The Golem - de Paul Wegener’s, 1920 - mostrando os trágicos resultados da magia cabalística).

Os temas gnósticos retornam mais tarde, desta vez através de filmes não-comerciais ou rotulados como cults que endossam valores heterodoxos que os antigos filmes condenavam. Blow Up (Antonioni, 1966) é uma exploração gnóstica de como a cultura consumida pelas aparências suplanta a realidade. Confundindo forma e conteúdo através de uma narrativa altamente ambígua e alucinante que incomoda tanto os personagens do filme quanto o público, 8½ (Fellini, 1963) explora a cabalística crença de que um ideal humano pode ser alcançado através do artifício, a criação de um Adão cinemático; Zardoz (John Boorman, 1974) uma verdadeira fábula gnóstica onde, em um futuro pós-apocalipse, o protagonista alcança a iluminação ao descobrir que o deus em que acreditava (Zardoz) era, na verdade, uma criação artificial de uma elite imperfeita e decadente; e The Man Who Fell to Earth (Nicholas Roeg, 1976) apresenta um extraterrestre que vem para a Terra em busca de água para o seu planeta que está morrendo. Incapaz de cumprir sua missão acaba prisioneiro de uma rede de corrupção em uma América corporativa. Diferentes dos antigos filmes, estes filmes gnósticos cults criticam o status quo, sugerindo que a cultura pós-moderna é um desolado mundo de ilusões que produz conformismo.


A Religião Americana


Enquanto isso, nos Estados Unidos, o fantástico e o sobrenatural pode ser encontrado quase que inteiramente nas formas culturais populares. Tem suas origens nas chamadas “Providências” (formas narrativas anedóticas puritanas que descreviam milagres que ilustravam como a vontade divina se manifesta na vida cotidiana), estórias sobre magias africanas e fatos bizarros e escândalos presentes em jornais sensacionalistas, magazines e livros de bolso. Em um breve momento na alta literatura norte-americana (no período literário chamado de “Renascimento Americano” no início do século XIX) esse amálgama do fantástico e grotesco da cultura popular vai fornecer inspiração para grandes autores como Poe, Dickson, Emerson e Hawthorne.

Victoria Nelson, ao descrever a “estranha história do Fantástico norte-americano”, observa que o fervor religioso e místico sofre constantes renascimentos:

“O Grande Despertar em meados do século XVIII tem sido acompanhado por no mínimo três outros renascimentos de acordo com Robert Fogel: o segundo, na virada do século XIX, com as repercussões religiosas e filosóficas do Transcendentalismo na alta literatura como também nas inúmeras manifestações da literatura popular, incluindo o movimento Espiritualista, Teosofia e novas religiões e cultos como os Mórmons e os gnósticos “Christian Scientists” e “Shakers”. O terceiro Grande Despertar, diz Fogel, ocorreu entre 1890 e 1930 e nós ainda estamos no meio do quarto que se iniciou nos anos 1960” (NELSON, Victoria. The Secret Life of Puppets. Havard University Press, 2001, PP. 76-7).

Todo esse amálgama religioso e místico resultou naquilo que Harold Bloom chamou de “Religião Americana”: uma gnóstica tensão originada na combinação entre sulismo Batista, Pentencostalismo e Mormismo que preconiza uma espécie de “auto-divinização” através de um encontro pessoal com o Sagrado.

“Joseph Smith descreve essas aventuras sagradas novelisticamente no Livro dos Mormons, para produzir, como John Brooke já observou, uma particular americanização da teologia Renascentista ao juntar aspectos do Hermeticismo, Gnosticismo, Alquimia e magia popular para produzir uma ‘totalmente plena’ alternativa para o Cristianismo” (NELSON, Victoria. IDEM).


Como bem observou Robert Fogel, estamos em meio ao quarto despertar místico e religioso norte-americano originado nas utopias primitivas e tribais do acid rock e psicodelismo dos anos 60. Uma peculiar leitura Zen-Taoísta de um misticismo da natureza, um renascimento dos mitos da Terra e do elogio dos seus ciclos naturais, combinados com um socialismo cristão, mitos comunais e, paradoxalmente, combinado com o impulso transcendentalista das viagens alucinógenas e estados alterados de consciência.

Associado ao discreto movimento do Gnosticismo no meio científico a partir das universidades de Pinceton e Pasadena durante a II Guerra Mundial, a princípio entre físicos, cosmólogos e biólogos para, em seguida, alastrar-se por outras áreas, principalmente através da Cibernética e Teoria da Informação, temos o surgimento de um típico fenômeno norte-americano: o Tecnognosticismo. Isto é, a convicção mística e tecnófila da possibilidade da experiência transcendência e da experiência do Sagrado por meio do desenvolvimento das tecnologias da comunicação e da informação. Como afirmou ironicamente Theodore Roszak, é a tecnologia como o “atalho para Satori” a tecnologia como quintessência da superação da condição humana (finitude, contingência, mortalidade, corporalidade e limitação existencial) sem a necessidade de disciplina, meditação ou ascese.

Neste quarto Grande Despertar temos, finalmente, o encontro de toda a tradição da “Religião Americana”, no sentido dado por Harold Bloom, com a pujança tecnocientífica do complexo industrial-militar norte-americano.


Gnosticismo para as Massas


A partir da popularização das tecnologias tecnognósticas e da alteração radical de todo o ambiente sensorial e perceptivo cotidiano com dispositivos como Internet, interfaces gráficas, realidade virtual etc. temos uma nova sensibilidade em relação ao religioso e místico. Por um lado, temos a autodivinização da busca pessoal pelo sagrado substituída pelas tecnologias espirituais da auto-ajuda (representada por diversas produções fílmicas e audiovisuais) e, por outro, a popularização dos mitos do gnosticismo clássico não só para fazer uma reflexão crítica sobre o destino do homem diante da tecnognose (Show de Truman e Matrix como exemplos) como abordar formas particulares de gnose que se distinguem da auto-ajuda (A passagem, A Fonte da Vida etc.).

Como já vimos em uma postagem anterior (clique aqui para ler), este quarto Grande Despertar produziu uma cisão no ressurgimento do Gnosticismo no século XX: de um lado o Gnosticismo Cabalístico (representado pela busca fáustica da tecnologia como forma mais rápida de busca do pós-humano e da transcendência absoluta e rápida do espírito em relação à prisão do corpo) e, do outro, o Gnosticismo Alquímico (a crença que a matéria deve ser redimida e não simplesmente superada e a necessidade de denúnciar esse imaginário tecnológico fáustico como sendo mais uma forma do Demiurgo aprisionar o ser humano nas ilusões do mundo material).

Surpreendentemente, o lócus dessa tematização vem sendo a produção recente cinematográfica hollywoodiana. Essa constatação nos leva a uma última questão: o que faz diretores e produtores da indústria cinematográfica ter esse súbito interesse no universo temático gnóstico, particularmente o alquímico? Por que estas narrativas míticas da antiguidade foram parar nas sinopses, roteiros e nas mesas de produtores de filmes mainstream hollywoodianos? Por que Hollywood abraçaria esta particular visão gnóstica que questiona o gnosticismo tecnocientífico?

Uma pista para começar a responder a essa questão talvez esteja nas considerações de Boris Groys sobre uma “guinada metafísica” da produção hollywoodiana recente: deuses, demônios, alienígenas e máquinas pensantes defrontando-se com heróis movidos, sobretudo, pela questão do que possa estar oculto por trás da realidade sensível. Nesta temática metafísica se esconderia uma pretensão auto-referencial. Filmes como Show de Truman ou Matrix tematizam a própria produção midiática. Podemos considerar os heróis desses filmes como verdadeiros críticos da mídia.

“Hollywood, pois, reage à suspeita de manipulação estética que lhe é dirigida reativando uma suspeita metafísica ainda mais antiga e profunda - a suspeita de que todo o mundo perceptível poderia ser um filme rodado numa metahollywood remota. Nesse caso, os filmes hollywoodianos seriam "mais verdadeiros" que a realidade, pois ela não nos mostra geralmente nem o caráter artificial que lhe é próprio nem o que lhe está além. O novo filme hollywoodiano, ao contrário, elabora, ao refletir sobre seus procedimentos próprios, uma nova metafísica que
interpreta o ato de criação como uma produção de estúdio.” (GROYS, Boris. “Deuses Escravizados – a guinada metafísica de Hollywood”, In: Mais! Folha de São Paulo, 03/06/2001, p. 5.)

Enquanto o filme europeu preocupa-se, como de hábito, com o “demasiado humano”, Hollywood ingressa na atual fase metafísica ou auto-referencial. Com a proximidade de a tecnologia digital intervir no tradicional ramo cinematográfico extinguindo o seu próprio suporte (a película), ou seja, eliminando sua própria especificidade que a distingue diante dos outros veículos de comunicação, talvez nesse momento Hollywood esteja dando uma resposta à tecnociência que a ataca. Talvez seja este o sentido da tendência metafísica do cinema comercial atual: ao trazer para as telas a antiga suspeita gnóstica de que o mundo perceptível possa ser uma ilusão e de que uma “metahollywood” high tech seja o novo Demiurgo, denunciar os escrúpulos da tecnociência cabalística – o secreto projeto de aliar a indústria cinematográfica com as novas tecnologias.

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domingo, março 28, 2010

"Alice no País das Maravilhas" e Sophia: a Viagem do Herói Gnóstico

"Talvez Alice e Sophia sejam simplesmente as principais personagens da história arquetípica da viagem do herói que parte da segurança do lar em direção de terras estrangeiras que fazem pouco sentido, mas eventualmente oferecem grandes lições. A diferença é que Carroll e os gnósticos se atreveram a usar mulheres como protagonistas."

Reproduzimos e traduzimos abaixo o post de Miguel Conner para o blog Aeon Byte Gnostic Radio onde o autor (apressentador do programa radiofônico semanal em Chicago "Radioshow on Gnosticism") faz não apenas uma leitura gnóstica do clássico "Alice no País das Maravilhas" como, também, as conexões do autor Lewis Carroll com o Ocultismo e com todo o fluxo esotérico que invadiu as sociedades conservadoras vitorianas no século XIX. Essas conexões explicariam os profundos simbolismos míticos de Alice associado ao arquétipo de Sophia, a recorrente jornada do herói gnóstico que da Plenitude e Queda alcança,ao final, a Ressurreição e Renovação.


"Alice no País das Maravilhas" e o Ocultismo
Miguel Conner


O sucesso da adaptação de Tim Burton de “Alice no País das Maravilhas” não deve surpreender ninguém. "Alice no País das Maravilhas" (e sua sequência "Através do Espelho”) tem fascinado crianças e adultos há mais de um século e meio, merecendo sucessivas edições impressas e remakes em diferentes formas de mídias.

Muito tem sido escrito sobre as peripécias da Alice, mas muito pouco sobre as inspirações ocultistas da estória e do seu criador, Lewis Carroll (nome real de Charles Dodgson). Isto é surpreedente, considerando que “Alice no País das Maravilhas” é uma das obras mais mística e surreais de toda a literatura. Para além do seu impacto na cultura e arte contemporânea, o livro influenciou o ocultismo (Aleister Crowley exigia que seus discípulos lessem tanto "Alice no País das Maravilhas" como "Através do Espelho").

Além da estória se constituir numa vibrante metáfora sobre uma criança no mundo estranho e, muitas vezes ilógico, dos adultos, Carroll poderia ter escondido idéias ocultas em seu clássico?

É documentado que Carroll era um membro da Sociedade de Pesquisas Psíquicas, uma organização fundada por um pastor anglicano para o estudo do Espiritismo, Percepção Extra-Sensorial (PES), clarividência e todo o tipo de atividade paranormal (entre os membros da sua filial americana estavam William e Henry James).

Martin Gardner afirma em "The Annotated Alice ' que Carroll era um forte defensor da PES e psicocinese. O próprio Carroll escreveu que a mente poderia romper os reinos sobrenaturais:

"Tudo parece apontar a existência de uma força natural, aliada à eletricidade e à força nervosa, através do cérebro, e que pode atuar sobre o cérebro. Acho que vai chegar o dia em classificaremos isso entre as forças naturais conhecidas, e as suas leis tabuladas e, quanto aos cientistas céticos que sempre fecham os olhos até o último momento para todas as provas que aponta para além do materialismo, terão de aceitá-la como um fato comprovado na natureza" (p.53).
Isto claramente ecoou em 'Alice no País das Maravilhas ", onde a lagarta possui o poder de ler a mente de Alice.

Em "Através do Espelho", de repente, Alice pega uma caneta e começa a escrever palavras ininteligíveis em um livro antes do rei branco. Gardner afirma que essa cena foi incluída porque Carroll acreditava na “Escrita Automática” (quando um espírito desencarnado utiliza-se da mão de um médium) (p. 147).

Este poderia ser o segredo do enigma esotérico famoso de Carroll: "Por que um corvo é como uma escrivaninha?" Afinal, os corvos são mensageiros simbólicos dos mortos, enquanto a Escrita Automática (realizada em uma mesa) é também uma forma de comunicação com os mortos.

Por último, relata-se que Carroll era possuidor de uma grande coleção de livros sobre o ocultismo (pág. 53).

É surpreendente a quantidade de provas sobre o seu interesse místico e como isso influenciou seus escritos. Carroll era diácono da Igreja Anglicana, assim como um homem muito privado, que não concedia entrevistas. E aí está o mistério sobre o desaparecimento dos seus extensos diários.
Aparentemente nada parece ser abertamente gnóstico em “Alice no País das Maravilhas” até reconhecermos alguns dos principais temas em torno da heroína.

A saga do Alice tem impressionantes paralelos ao mito da queda de Sophia, tal como descrito em alguns contos gnósticos:

. Ambas, de tédio, curiosidade e desobediência, são jogados em uma dimensão existencial (Alice - Sophia – O Chaos).
. Ambas, frequentemente, perdem a sua direção e os seus sentidos, e até ao auxiliadas por seres maliciosos (Alice - O Gato de Cheshire / Sophia - O Cristo Cósmico).
. Ambas parecem criar bizarras criaturas que elas têm de superar (Alice entidades diferentes, mas o dragão Jabberwocky-como é o exemplo mais famoso / Sophia-Jehovah, que aparece para ela sob a forma de um dragão)
. Ambas devem passar por testes emocionais para que possam retornar ao seu lar primordial (Alice-Inglaterra; Sophia-O Pleroma).
. Ambas representam a busca gnóstica da alma caída em busca do autoconhecimento, que trará restauração e liberação da matéria corrompida (Alice deve resolver diversas adivinhações e, muitas vezes, refletir sobre sua própria natureza / Sophia deve descobrir e pronunciar as preces corretas para compreender a si mesma e seu lugar dentro do reino eterno que ajudou a criar).
. Ambas percebem que eles são parte do sonho vívido de um Ultra-Ser Supremo (Alice - O Rei Vermelho / Sophia - O Espírito Virgem/Bythos).
. Ambas têm nomes que representam grandes virtudes humano (“Alice” significa Verdade/ “Sophia” significa Sabedoria).

Mesmo o maior evangelho gnóstico dos últimos tempos, o filme Matrix, faz alusão a “Alice no País das Maravilhas”. Isso acontece quando Morpheus (o deus dos sonhos) ensina Neo (Jesus gnóstico) que ele deve despertar não só acima de todas as realidades falsas, mas também confrontá-las:

"Imagino que agora você está se sentindo um pouco como a Alice. Hein!? Caindo no buraco do coelho!?

'Esta é a sua última chance. Depois disso, não há como voltar atrás. Você toma a pílula azul - A história acaba, e você acorda em seu quarto e acreditar no que quiser acreditar. Se tomar a pílula vermelha vai permanecer no País das Maravilhas e eu te mostrarei o quão profundo é buraco do coelho. "

Talvez Alice e Sophia sejam simplesmente os principais personagens da história arquetípica da viagem do herói que parte da segurança do lar em direção de terras estrangeiras que fazem pouco sentido, mas eventualmente oferecem grandes lições. A diferença é que Carroll e os gnósticos se atreveram a usar mulheres como protagonistas.

Em que medida Carroll usou seu conhecimento sobre ocultismo, isso nunca será plenamente conhecido. É simplesmente aceito que o diácono anglicano e matemático escreveu histórias para impressionar uma garota que o inspirou.

O que se sabe é que Carroll se junta a uma lista de artistas de prestígio que, a despeito de viver em sociedades conservadoras, mergulhou no fluxo do esoterismo e tirou das águas intemporais a criatividade mística. Pouco importa se 'Alice no País das Maravilhas' foi conscientemente influenciada pelo Gnosticismo. Como o Bispo Stephan Hoeller disse certa vez: "Qualquer artista sério já é um meio Gnóstico”.

Essas idéias podem realmente adicionar novas interpretações de leitura sobre os textos gnósticos, que nunca Lewis Carroll viveu para ver. É uma pena, porque tanto Carroll como os gnósticos apreciam trocadilhos, as interpretações selvagens, paisagens fantasiosas ricas em significados que não têm sentido a menos que possua a Sabedoria (Sophia) de uma criança ou a sagacidade de um filósofo-poeta. E aí é que reside a eterna ligação entre aqueles que mergulham no fluxo de esoterismo e as águas intemporais da criatividade mística.

Um exemplo divertido que Carroll pôde apreciar pode ser encontrada no Evangelho de Filipe, onde afirma que “a Verdade (Alice) não veio ao mundo (País das Maravilhas / A Matrix) nua, mas ele (ela) veio por meio de letras e imagens. O mundo (País das Maravilhas / A Matrix) não receberá a verdade (Alice) de qualquer outra maneira.”

Ou poderia seria Carroll acreditar, tal como Alice e Sophia, que os gnósticos tenham simplesmente despencado num buraco de coelho?

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quinta-feira, janeiro 21, 2010

Paradoxo, Contradição e Ironia: a Teologia Negativa no Filme Gnóstico

Como expressar o indizível por meio da linguagem? Através do caráter paradoxal da linguagem mística que fere as regras da lógica e do entendimento, os textos místicos tentam exprimir a sublimidade da experiência. Na arte moderna (da literatura romântica até o cinema) a Ironia será a estratégia que dá continuidade à Teologia Negativa.

A linguagem mística com o caráter de negatividade (a Teologia Negativa) tem em Dionísio Aeropagita (entre os anos 484 e 532) o seu principal introdutor. Considerado por muitos o pai da mística ocidental, seus textos são especulações teológicas onde procura comprovar a existência de Deus pela via negativa, ou seja, por meio de paradoxais negativas infindáveis. Veja este trecho do livro chamado De Mystica Theologia:


“Elevando-nos mais alto, dizemos agora que esta causa não nem alma nem inteligência; não tem imaginação, nem expressão, nem razão nem inteligência; que ela não pode se exprimir nem conceber; que ela não tem nome, nem ordem, nem grandeza, nem pequenez, nem igualdade, nem semelhança, nem dessemelhança (...) Não é móvel nem imóvel, nem descansa. Não é luz, nem vive, nem é vida (...) Quando negamos ou afirmamos algo de coisas inferiores ‘a Causa suprema, dela mesma não afirmamos nem negamos nada, porque toda afirmação permanece mais aquém da causa única e perfeita de todas as coisas, pois toda negação permanece mais aquém da transcendência daquilo que está simplesmente despojado de tudo e se situa mais além de tudo” (AEROPAGITA, Dionysius. Ouevrea completes Du Pseudo-Denys/Aeropagite Apud: LOSSO, Eduardo Guerreiro. Teologia Negativa e Theodor Adorno-a secularização da mística na arte moderna, Tese de Doutorado, Faculdade de Letras da UFRJ, 2007.
Esta linguagem paradoxal quer comprovar que há uma experiência além da inteligência, da linguagem, dos sentidos e das emoções. Tenta-se comprovar o indizível e o inconcebível por meio do esvaziamento da sensação e do conhecimento. Dionísio introduz na tradição ocidental essa retórica de negação incondicional de todo ente ou ser somentepara afirmar que o inconcebível é a causa suprema:


“Logo, Deus não é negado, não é posto em dúvida. O que ocorre é o contrário: é a existência indubitável e inconcebível de Deus que nega todos os atributos, pois Deus é, em terminologia medieval, o ens realissimum, o que há de mais real” (LOSSO, Eduardo Guerreiro, IDEM)

Portanto, o caminho para se tentar expressar a experiência metafísica não há outro caminho senão usar e abandonar a linguagem na ânsia pelo absoluto através do paradoxo e da contradição.

Esta teologia negativa aproxima-se de uma “teologia herética”, muito próxima do gnosticismo, ao criar dissensão com a doutrina católica: enquanto Dionísio coloca que a revelação não pode ser compreendida por qualquer um (somente por meio de uma disciplina esotérica) para católicos o amor e vida moralmente correta dão condições para qualquer um encontrar Deus.

Na arte moderna, o romantismo literário do século XIX vai dar continuidade a esta tradição mística por meio da “ironia transcedental”. É através do Romantismo, nos séculos XVIII e XIX que o Gnosticismo deixa o submundo para ascender à literatura e à cultura através de nomes como William Blake, Percy Shelley, Gerard de Nerval, Baudelaire, Rimbaud. Em todos eles encontramos a redescoberta da atitude e das imagens do pensamento gnóstico. A abordagem do gnosticismo pelo Romantismo é nitidamente sincrética, associando o gnosticismo cristão com o hermético (alquimia e cabala). Figuras como Nerval e Goethe, por exemplo, beberam em fontes gnósticas, cabalistas e alquímicas. Enquanto Goethe trabalhava com complexos simbolismos iniciáticos derivados da alquimia, Nerval estudou profundamente livros de esoterismo, magia e metafísica.

A ironia surge na lacuna entre aparência e realidade, representação e presença. Pensadores do fim do século XVIII, principalmente Friedrich Schlegel, acreditavam que essa lacuna era constitutiva da natureza humana proveniente do antagonismo entre o desejo de representar o mundo e a impossibilidade de fazê-lo. O grupo de Iena (formado pelos irmãos August e Friedrich Schlegel, Novalis, entre outros) começa a teorizar sobre a ironia como um procedimento auto-reflexivo a partir da leitura de Cervantes, Shakespeare e Diderot. A moderna concepção da ironia tematiza o intervalo entre a linguagem e a experiência empírica. A ambição pela imediatez dos modernos parece ser uma procura sempre renovada de uma linguagem absoluta, pela busca de uma palavra definitiva que dê nome às coisas.

As dimensões estéticas desse tipo de ironia são muitas: a fragmentação como forma preferida de representação, isto é, como um consciente elemento de uma completude jamais alcançável; o narrador autoconsciente que expõe as próprias construções da realidade para, dessa forma, explicitar suas limitações; a mistura entre texto primário e comentário em uma mesma página; a descrição não-conclusiva de pontos de vista inconciliáveis que deixa o leitor em um limbo interpretativo; o poema que se consome em dois significados contraditórios que se co-habitam e se anulam.

O romantismo cria um anseio pelo absoluto, uma espécie de busca religiosa que, de um lado, toma seriamente as percepções fragmentárias do mundo material como forma de revelação do espírito e, do outro, toma essas mesmas percepções como formas inferioras que encobrem como um véu o invisível. A ironia transcendental do romantismo exemplifica este irônico questionamento religioso próximo da tradição gnóstica.

Ironia e Negatividade no Filme Gnóstico

Ao explorar o tema da transcendência onde os protagonistas lutam para ascender de um mundo ilusório e corrompido (por ser uma construção artificial, obra de um demiurgo) o filme gnóstico vai explorar a ironia como caminho para evitar cair na dualidade falso/verdadeiro, espírito/matéria, ilusão/realidade etc. o caminho é o da negatividade: nem uma coisa nem outra, mas a busca de um tertium quid, uma outra via posta em suspensão pelo vazio cognitivo que a ambigüidade da narrativa fílmica procura criar.
A utilização dos instrumentos da ironia como a fragmentação, auto-referência, narrativas com pontos de vista inconciliáveis, confusão entre o ponto de vista da câmera e o ponto de vista da visão do personagem, desfechos narrativos que se anulam, narrativas em abismo etc.

Dois Exemplos da Ironia no Filme Gnóstico


Podemos apresentar dois exemplos de filmes gnósticos que partilham desse caminho da negatividade do sentido por meio de narrativas cujos desfechos são paradoxais por apresentarem interpretações que se anulam. O primeiro é o filme O Décimo Terceiro Andar (The Thirteenth Floor, 1999) com um autêntico happy end (casa em frente a uma praia, grupos de gaivotas voando, um cachorro brincando na areia, um lindo pôr do Sol). O protagonista parece ter descoberto o último nível das simulações que é, finalmente, a realidade, o ponto de partida de tudo. Mas, repentinamente, a imagem do enquadramento encolhe-se até transformar-se numa linha, reduzindo-se a um ponto de luz de um monitor de TV (veja essa sequência final abaixo). Uma pista da irrealidade: será que alguém puxou o fio da tomada? Este ambíguo e irônico final sugere que o própria realidade última, também, uma simulação como os demais níveis. Uma possível interpretação que cai na suspensão, no vazio.
Outro exemplo é o do filme Brilho Eterno de Uma mente Sem Lembrança (Eternal Sunshine of the Spotless Mind, 2004) onde elemento irônico está presente. Na seqüência final com Joel e Clementine correndo pela gelada praia de Montauk em fevereiro é ambígua, podendo ser interpretada como dois finais excludentes: ou assistimos a um típico happy end romântico em um final clichê com casais enamorados correndo felizes à beira do mar ou um final trágico: as seqüências de Joel e Clementine após o apagamento de memória ter sido finalizado, retornando ao primeiro plano que inicia o filme (Joel despertando em sua cama pela manhã), poderiam ser mais uma instância narrativa interna das memórias de Joel. A partir daí até o final poderíamos estar vendo mais narrativas das memórias de Joel. Na seqüência de desfecho na praia de Montauk as imagens do casal vão dissolvendo-se em fade out para o branco. Isso acontece também em algumas seqüências anteriores aonde objetos vão tornando-se brancos até desaparecerem (como na seqüência do desaparecimento dos livros na Bernes e Noble) como metáfora de apagamento das memórias. Além disso, há uma descontinuidade na corrida do casal, em loop: a corrida repete-se até o fade out. Novamente, este loop aparece como metáfora de apagamento ou degeneração da memória como na seqüência em que Joel persegue Clementine pela rua após uma discussão: o tempo e a perspectiva parecem estar em loop, impossibilitando Joel de chegar ao final da rua e alcançar Clementine


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