quinta-feira, fevereiro 23, 2023

Por que as pessoas erradas são sempre atraídas pelo poder? É a estupidez... estúpido!


Para defender os “patriotas” presos pelas depredações em Brasília, o médium kardecista Divaldo Franco chegou a lançar mão da célebre frase do ativista Martin Luther King sobre “os gritos dos maus” e o “silêncio dos bons” diante das “coisas feitas pelos poderosos”. Mas quem são os “bons” e os “maus”? Essas noções tornaram-se ambíguas e reversíveis porque ainda são pensadas no campo do julgamento moral. A ponto de um “espírita reaça” se apropriar do pensamento de um ativista dos direitos civis. Como desambiguar essas noções e transformá-las em categorias sócio-psicológicas objetivas? Um caminho é através da Teoria da Estupidez do teólogo Dietrich Bonhoeffer e da teoria do “viés da auto-seleção” do cientista político Brian Klass: por que as pessoas erradas são sempre atraídas pelo poder, assim como as mariposas pela luz?

“O que me preocupa não é o grito dos maus, mas o silêncio dos bons”, disse certa vez o grande ativista Martin Luther King. Uma frase de valor inquestionável, porém ambígua: quem são os bons e que são os maus? 

Tão ambígua que um notório “médium reaça” e bolsonarista, Divaldo Franco, foi capaz de lançar mão dessa famosa frase para justificar a defesa dos “patriotas” que depredaram os prédios dos três poderes em Brasília, e presos “arbitrariamente”. Afinal, para o emérito espírita kardecista, ninguém estava armado, mesmo assim “foram pegas na rua e levadas para a cadeia” e alertou para “a desfaçatez como encaramos as coisas feitas pelos poderosos e silenciamos”. 

O que permite uma frase proferida por um ativista da luta pelos direitos civis ser ressignificada em um discurso que apoia atos de ataque da extrema-direita ao sistema democrático?

“Maus” e “bons” são conceitos que podem ser intercambiáveis, de acordo com as intenções do emissor: os maus são sempre os outros, os inimigos; enquanto nós somos os bons.



A cientista política Hannah Arendt foi uma das primeiras tentar desambiguar o conceito do “mal”, indo além do campo da acusação moral. Arendt referiu-se à “banalidade do mal”: o momento em que a racionalidade converge para o mal. Como no caso dos oficiais nazistas que “apenas cumpriam ordens” - eram obcecados por poder e ascensão social, fariam qualquer coisa para serem reconhecidos e terem sucesso, mas esse desejo de sucesso é o que levaria a praticar o mal. Arendt via nesse argumento para justificar a ascensão de sistemas totalitários, a banalização da razão e coerência do pensamento humano. Ou melhor, o momento em que a racionalidade de um sistema é a própria encarnação do mal.

Teoria da Estupidez

Mas antes de Arendt, o teólogo, pastor e membro da resistência anti-nazista na Alemanha, Dietrich Bonhoeffer, aprofundou na questão do mal não como falha do caráter ou um súbita suspensão da racionalidade. É a “Teoria da Estupidez” – para Bonhoeffer a estupidez seria considerada uma categoria psico-sociológica, portanto, objetiva e cientificamente compreensível. Para ele, a natureza da estupidez tem raízes profundas no psiquismo. E depois impulsionada pela mecânica fundamental da experiência humana: o fato de os humanos serem animais sociais. É essa mesma sociabilidade é que está na base da estupidez – sobre isso clique aqui.


Divaldo recebe de Bolsonaro a medalha do Rio Branco


A estupidez como fenômeno de grupo estaria na base do apoio ao mal banal como sistema totalitário: Um indivíduo pode agir estupidamente, mas isso não tem efeito no todo. No entanto, quando um grupo age de forma estúpida, isso causa um grande impacto no indivíduo, agravando todo o efeito. Bonhoeffer dizia que “o poder de um, precisa da estupidez do outro”. 

Para Bonhoeffer, o mal convencional (dos vilões das HQs e filmes hollywoodianos aos ditadores que violam direitos humanos ou assassinos em série e criminosos violentos) é muito mais fácil para ser confrontado: “pode-se protestar contra o mal; pode ser exposto e, se necessário, impedido pelo uso da força. O mal sempre carrega dentro de si o germe da sua própria destruição”, afirmava o teólogo alemão. Ao contrário da estupidez, um problema de natureza muito diversa.

A estupidez, porém, é um problema completamente diferente. Não podemos lutar tão facilmente contra a estupidez por duas razões. Primeiro, somos coletivamente muito mais tolerantes com isso. Ao contrário do mal, a estupidez não é um vício que a maioria de nós leva a sério. Não criticamos os outros por ignorância. Não gritamos com as pessoas por não saberem das coisas. 

Principalmene porque grande mídia naturaliza o problema: elege a estupidez como entretenimento (tornando-nos tolerantes com o fenômeno), ao criar protagonistas orgulhosos da própria ignorância em tipos engraçados e simpáticos, como Homer Simpson, Debi & Loide, Beavis e Butthead, Ricardo da série animada Incrível Mundo de Gumball e todos os inúmeros personagens patetas-mas-com-bom-coração dos dramas e comédias hollywoodianas.

Em segundo lugar, a pessoa estúpida é um oponente escorregadio.

Um ditado bem conhecido na Internet ilustra bem esse problema: “Debater com um idiota é como tentar jogar xadrez com um pombo - ele derruba as peças, cai no tabuleiro e voa de volta para seu bando para reivindicar a vitória”. É engraçado, mas ao mesmo tempo guarda um ardil perigoso: a tolerância para essa situação ridiculamente engraçada pode abrir espaço para estúpidos chegarem a posições cada vez mais elevadas, até o Poder.


Auto-seleção, estupidez e Poder

Essa é a preocupação do cientista político da University College London Brian Klass, autor do livro “Corruptible who Gets Power and How Changes Us” (Scribner, 2021).

Para Klaas, há uma visão comum de que o poder absoluto corrompe – de um bilionário a um líder totalitário. Isso talvez seja apenas uma consolação para os dominados: “eles são corruptos, mas nós pelo menos temos bom coração...”. 

Lembrando a célebre frase de Luther King, dessa maneira os bons são mantidos em silêncio. Pelo conformismo de imaginar que “a política não é para mim”, depreciando a política como algo em si mesmo sujo e corrupto.

O problema para Klass é que culpamos apenas indivíduos ou o lugar do poder como intrinsecamente corruptível. Mas ignoramos que há um tipo de sistema que permite o fenômeno da “auto-seleção” – um fenômeno no qual pessoas famintas por poder, psicopatas e sociopatas, tendam a se auto-selecionar para posições de poder, muito mais do que as pessoas “boas”.




Um dos problemas do poder é que muitas vezes tem pessoas que são atraídas por ele como as mariposas pela luz.

O viés de auto-seleção refere-se a um fenômeno em que pessoas famintas por poder tendem a se auto-selecionar em posições de poder mais do que o resto de nós. E, como resultado, temos essa distorção, esse viés nas posições de poder, que atrai os tipos errados de pessoas. Elas têm maior probabilidade de se apresentar para governar o resto de nós. Eles não são medianos e não são normais. 

Então os “bons” seriam os culpados? Por que somos atraídos por essas pessoas estúpidas? Para Klass, a resposta tem a ver, em parte, com a psicologia evolutiva. Em tempos de crise no passado muito distante, esse viés nos ajudou a sobreviver ao apoiarmos homens grandes e fisicamente fortes. E isso porque os desafios que as sociedades pré-históricas enfrentavam eram muitas vezes uma ameaça de uma tribo guerreira ou algo em que a proeza física e a força realmente importavam. Quando você olha para a sociedade moderna em que vivemos, isso não é mais verdade. 

Por exemplo, se pedir às pessoas para selecionar um líder e se disser a elas que estamos enfrentando algum tipo de crise, fome, uma guerra, algum tipo de catástrofe, então o que as pessoas tendem a fazer é se voltar para o homem fisicamente mais forte ou que adote gestos simbólicos de força – violência, intolerância, ódio etc. Os líderes modernos sabem disso.

E se essas pessoas que se auto-selecionam chegam ao poder, serão apoiadas pelos estúpidos com esse viés-cognitivo que pode ser posto a toda prova de argumentos racionais ou evidências empíricas. Como Bonhoeffer aponta, elas são orgulhosas da própria ignorância, assim como o pombo do jogo de xadrez.

Brian Klass conclui que sempre teremos pessoas com fome de poder aparecendo e tentando tomá-lo. O que precisamos fazer é diluí-los e bloqueá-los. E é aí que o design do sistema se torna crucial. Isso parece ser ignorado na descrição de uma série de papéis de poder na vida moderna. Presumimos que basta anunciar uma vaga em um sistema político ou empresa ou anunciar uma promoção para esperar que as pessoas certas aparecerão para ocupar o cargo. 

A meritocracia não funciona assim. Temos que neutralizar ativamente esse impulso de pessoas sedentas de poder e que se auto-selecionam na busca e abuso do poder. 

Porém, Klass lida com essa questão do sistema político como uma espécie de disfunção sistêmica. Como se tudo se tratasse apenas de efetuar um novo “design” em um sistema que não funciona. 

O problema é que ele FUNCIONA. Como coloca o pesquisador Richard Sennett em seus livros como “A Corrosão do Caráter” e “A Cultura do Novo Capitalismo”: narcisistas ou psicóticos são atraídos por cargos ou funções por ser essa a exigência implícita ou subliminar nas descrições dos cargos. São “funcionais” a um novo tipo de capitalismo que relativiza tanto a moral quanto a ética. Seja na política ou na empresa – Leia SENNETT, Richard. A Corrosão do Caráter. São Paulo: Record, 2009 e A Cultura do Novo Capitalismo. R. de Janeiro: Record, 2006.

Concluindo: a partir da Teoria da Estupidez de Bonhoeffer e as discussões sobre Poder, corrupção e auto-seleção de Klass, a questão se torna ainda mais complexa, tirando a discussão política do campo do julgamento moral entre “bons” e “maus”. 

Não mais se trata apenas de uma questão da “defesa da Democracia” ou de enfrentamento contra a extrema-direita, fascistas e totalitários. O “design” do sistema deve ser alterado para torná-lo menos atraente à estupidez e sociopatia. O que implica em um sério desafio político, porque para o Capitalismo esse sistema FUNCIONA. 

 

 

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