sábado, fevereiro 25, 2023

Niilismo e ateísmo querem fazer acerto de contas com Religião e Filosofia em 'The Sunset Limited'


Dois homens sentados à mesa num pequeno apartamento em um bairro miserável de Nova York. Ele salvou um desconhecido que tentava se matar atirando-se de uma plataforma de metrô e o trouxe para sua casa. Como pastor, tentará salvá-lo também com as palavras da Bíblia. O desconhecido é um professor universitário desiludido e, aparentemente, ateu. “The Sunset Limited” (2011), adaptação da peça teatral homônima de Cormac McCarthy, lembra o velho confronto entre Fé e Razão. Mas vai muito mais além disso: aquele professor não é um ateu comum – sua firme posição suicida é o resultado de uma jornada de séculos da destruição do indivíduo na Filosofia ocidental. De repente, Deus é a parte do problema existencial ao lado de noções como “Logos”, “Ideia”, “Razão” – o niilismo desafiador daquele estranho que quer fazer um acerto de contas com toda a inutilidade da Filosofia e da Religião.

O mal começou quando o filósofo grego Heráclito disse a seus interlocutores: “Escutando não a mim, mas ao Logos acreditem que...”. Esse foi o início da longa e inevitável morte do indivíduo na cultura ocidental. Do Logos, princípio mediador entre o mundo sensível e inteligível, a suas diversas mutações ao longo da História (força divina ou criadora, Cristo ou o Verbo de Deus até chegar à Razão) até encontrar a sua própria desconstrução com a angústia pós-moderna, o que acompanhamos ao longo de mais de dois mil anos de Filosofia é a longa agonia e morte do indivíduo.

modus operandi de Heráclito tornou-se recorrente ao longo da História: o indivíduo perde sua voz para sempre falar em nome de alguma coisa mais transcendente, além dos sentidos humanos ou do mundo ordinário: o papa em nome de Deus; o filósofo em nome da Razão; o cientista em nome do cogito; o evangélico em nome de Jesus e assim por diante.

Até chegar os “Três Cavaleiros do Apocalipse” (Nietzsche, Marx e Freud) e desconstruir esses álibis atrás dos quais o indivíduo sempre se escondeu: respectivamente, a desconstrução da genealogia da moral, o indivíduo burguês como mero epifenômeno da superestrutura econômica e o inconsciente como a verdadeira pulsão que comanda a Razão. 

Depois, a angústia da desconstrução pós-moderna ao descobrir que signos e conhecimento são apenas formas intransitivas intercambiáveis, sem lastro com algo próximo à Verdade – que, aliás, se dilui diante da retórica, jogos de linguagem e performance argumentativa. A verdade dá lugar à credibilidade. Depois de séculos, o indivíduo se vê completamente órfão e só restando a angústia pela morte do Logos, Deus, Razão etc.

Baseado numa peça de teatro da peça de teatro do escritor Cormac McCarthy (Prêmio Pulitzer com o livro “The Road”, adaptado ao cinema em 2009), o filme The Sunset Limited (2011) coloca Tommy Lee-Jones (Sr. White) e Samuel Jackson (Sr. Black) contracenando sentados na mesa de um apartamento em um bairro decadente de Nova York, conversando sobre a vida e morte, arte e ciência, fé e cinismo.

A premissa é simples: Black acabou de salvar White de uma tentativa de suicídio em uma plataforma de uma estação do metrô – justamente o trem da companhia chamada “Sunset Limited “que administra a linha. Black o leva para o seu apartamento para entender os motivos que levaram White àquele gesto aparentemente desesperado.

Tem início uma espécie de partida de xadrez retórico-verbal. Não é por menos que seus nomes se referem às cores das peças de um jogo de xadrez. 

Naquele pequeno apartamento, em uma frenética discussão de 90 minutos, estão em confronto a Fé e a Razão (ou melhor dizendo, a sua própria destruição). Sr. White, um professor universitário desiludido que, segundo ele, leu dois livros por semana durante várias décadas; e o Sr. Black que leu apenas um livro: a Bíblia Sagrada – um ex-presidiário condenado por assassinato que encontrou a redenção nas palavras de Jesus na Bíblia.


"Felicidade é o contrário da condição humana" - White


Portanto, Sr. Black está determinado em levar a Salvação para todos os corações desesperançados. E ele terá que enfrentar o seu maior desafio: Sr. White não é simplesmente um “coração sem esperanças”. A condição suicida de White não é de depressão: aquilo em que ele acredita (arte, música, literatura e ciência) que poderia ser usado contra o pensamento religioso de Black é a própria razão do seu ato final suicida – ele tornou-se inteligente e consciente o suficiente para descobrir a futilidade da própria existência.

“A civilização acabou em Dachau”, diz a certa altura, ecoando o pensamento pessimista de Theodor Adorno questionando a possibilidade de haver arte, educação e sentido após Auschwitz.

Paradoxalmente, a Razão que deveria o levar para uma vida autêntica e feliz, autodestruiu-se para White: tornaram-se apenas “coisas”, formas vazias. Ele não é um simples ateu. Ateus apenas querem negar Deus, sem perceberem que no fundo estão negando a própria existência – a sua futilidade e inutilidade. White foi mais longe. Por isso, tornou-se o oponente mais difícil para a pregação de Black: seu oponente não perdeu simplesmente a fé em Deus.

White que fazê-lo entender isso: Deus faz parte desse jogo que perdeu o sentido. “Deus” é apenas uma palavra análoga a “Logos”, “Razão” etc.

O Filme

No primeiro ato de The Sunset Limited há uma ambiguidade em torno do apartamento e do Sr. Black. Será que o personagem de Samuel Jackson é apenas um ex-presidiário que encontrou a religião? Ou ele teria algum papel, por assim dizer, mais “celestial”? Logo de início, ele diz que Deus fala com ele. Isso pode ser literal ou figurado.



Há um filme dos anos 40 chamado Between Two Worlds sobre um grupo de pessoas que se encontram a bordo de um navio, mas não conseguem se lembrar de como chegaram lá.

Eventualmente, eles começam a perceber que a maioria deles foi morta em um ataque aéreo em Londres e o navio os está transportando para o céu ou para o inferno. Mas dois dos personagens podem estar condenados a permanecer a bordo do navio para sempre porque tentaram suicídio. Os dois recebem uma segunda chance, não apenas para viver, mas para ver o valor de estar vivo.

Essa ambiguidade transpassa o primeiro ato: será que Black é um agente celeste num limbo entre a vida e a morte tentando convencer White a merecer um destino pós-morte melhor?

Isso fica evidente na curiosidade de White em saber como foi salvo, já que ele se certificou que estava sozinho. Mas a realidade neste escuro e sombrio quarto dos sonhos do autor Mcarthy é que essa pode ser a última chance para White vir à luz.

Enquanto Black baseia a maior parte no valor da vida em coisas religiosas, White afirma acreditar em “coisas” que ele descreve como arte, música, literatura, qualquer elemento que ele veja como uma pedra angular vital no desenvolvimento da civilização. Esse é o tipo de coisa que se esperaria de um homem educado e não religioso. Porém, White diz que essas são coisas nas quais ele “acreditava” e deixaram de fazer sentido. À medida que a história se desenvolve, percebemos que White lentamente “perdeu a fé”, por assim dizer, na arte e na cultura.

A condição suicida de White não é de depressão, mas sim de um estado que ele acredita ser de maior compreensão. Ele não afirma que não ama mais a vida porque seja infeliz, mas porque, a seu ver, o homem se tornou cada vez mais sábio e inteligente até se tornar a primeira e única espécie a ter consciência o suficiente para perceber a futilidade da própria existência. “Expulse o medo da morte do coração dos homens e eles não viverão um dia!” ele diz.



E White expulsou esse medo. Portanto, deseja ardentemente a morte e nada espera depois dela, a não ser o vazio, a escuridão e a solidão.

É um desafio e tanto para Black, um convertido que se tornou pastor e especialista em salvar ovelhas desgarradas do rebanho de Deus. A primeira reação, é acreditar que White é apenas um viciado, mas um viciado não em drogas ou álcool, mas em coisas superficiais e terrenas como cultura ou arte – “trash culture”.

Depois de algum tempo ignorando as perguntas de Black, White começa a achá-lo genuinamente interessante. Como alguém com uma história criminal pesada e morando num bairro que é uma “lepra moral” pode conseguir ver coisas boas e positivas enterradas no fundo dele ou na própria vida de Black? Como um assassino sádico virou um pregador altruísta?

Durante toda a discussão, Black baseia seu argumento na suposição de que White está simplesmente perdido e quer ser resgatado como tantos outros. Mas White não é como os outros ateus, ao contrário, ele prefere pensar em vida nenhuma do que nenhuma vida – lembrando o aforismo de Nietzsche: “O homem preferirá ainda a vontade do nada ao nada de vontade”. 

White prefere esperar até a última cena para explicar a sua escolha “racional” pelo suicídio. Parece se deliciar com todos os argumentos religiosos, motivacionais e de fé ditos por Black. Ele espera que todos os lances possíveis (o “saco de truques”, como fala) sejam dados pelo oponente, até dar o xeque-mate final. 

Até então, White havia oferecido apenas os argumentos de um típico ateu, não de um verdadeiro niilista sentado à mesa de conversa.

Com isso, White quer mostrar que a religião e a fé fazem parte do mesmo cenário da morte do indivíduo ocidental. Em séculos e séculos o indivíduo se ocultou sob esses álibis metafísicos. Apostou neles como instrumentos de conhecimento verdadeiro. E tudo que encontrou foram formas vazias. 

O niilismo do Sr. White dá muito no que pensar...


 

Ficha Técnica

 

Título: The Sunset Limited

 

Direção: Tommy Lee-Jones

Roteiro: Cormac McCarthy (peça teatral)

Elenco:  Tommy Lee-Jones, Samuel L. Jackson

Produção: HBO Films, The Javelina Film Company

Distribuição: HBO Max

Ano: 2011

País: EUA

 

 

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