terça-feira, maio 11, 2021

Filme 'Titã': a patafísica tecnológica como sintoma do nosso tempo


“Titã” (“The Titan”, 2018) é um dos piores filmes que este humilde blogueiro já assistiu, com sérios problemas com o princípio básico de qualquer roteiro: verossimilhança e suspensão da incredulidade. E com um ator protagonista tão inexpressivo que os diretores insistem em transformá-lo em híbrido ou alienígena. Um filme destinado a ficar aninhado naquela lista do Netflix “Por que você assistiu...”. E por que este Cinegnose se interessou pela produção? “Titã” revela um sintoma do espírito do nosso tempo: o momento em que a tecnologia se torna tão hipertrofiada e invasiva que acaba inviabilizando as próprias finalidades para as quais surgiu para cumprir, cruzando um “vanish point”. É a patafísica dos sistemas, quando a tecnologia se torna non sense: a “hipertelia”. O nosso planeta está acabando. Temos que fugir para uma das luas de Saturno chamada Titã. Como salvar a humanidade? Resposta patafísica: deixando de ser humanos!

A principal ferramenta do roteirista é a suspensão da incredulidade, o pressuposto de toda narrativa ficcional: o espectador sabe que o que ele virá nas próximas duas horas será mera ficção, nada é real. Mas, para acontecer entretenimento, o roteirista deve fazer um acordo com o espectador da seguinte maneira: vou lhe contar uma história de mentira, mas, por um par de horas, você vai fazer de conta de que é tudo verdade.

Como? Através da verossimilhança: o roteiro tem que ter atributos de que a estória pareça intuitivamente verdadeira, isto é, deve ser portadora de uma aparência de verdade. O acontecer da narrativa deve ser coerente, para que o conjunto de acontecimentos incríveis e fantasias tenha uma costura que convença a plateia de que tudo aquilo que assiste faz sentido.

Quando isso não ocorre, temos um filme dentro espectro que vai da catástrofe à insipidez. Tornando-se um daqueles filmes que se aninham na lista do Netflix: “Porque você assistiu...”.

Esse é o caso do filme Titã (The Titan, 2018) capaz de atingir os dois polos desse espectro: de um lado, a conhecida insipidez do ator Sam Worthing (de uma beleza tão inexpressiva que os diretores costumam transformá-lo em alienígena, híbrido ou exterminador, desde o filme Avatar, 2009); e do outro, a catastrófica ausência de verossimilhança. 

Para começar, o pressuposto do filme: em 2060, o nosso mundo tornou-se uma armadilha de fome e guerras produzidas por um cataclismo climático de grandes proporções. Está na hora da humanidade abandonar o planeta e procurar um novo mundo habitável. E o único candidato é um satélite de Saturno chamado Titã, “o único corpo do sistema solar que tem uma atmosfera” – o que já enfraquece a premissa do filme, quando sabemos que isso não é verdade.



O problema é que o “único candidato” para a humanidade possui uma atmosfera densa de nitrogênio, chuvas de metano e etano, além lagos e oceanos de hidrocarbonetos e metano líquido. 

Cientistas de uma parceria NASA/OTAN chegam à conclusão que construir cúpulas com atmosfera artificial é economicamente inviável. Então todos que viverão lá terão que ter o DNA modificado para se tornarem alguma coisa entre os sherpas do Himalaia e frankensteins: ter um corpo adaptado para respirar o ar de nitrogênio e mergulhar em mares de metano. Certamente no meio desse experimento, poderão começar a nascer guelras e membranas nos corpos das cobaias. Criando uma estranha mensagem de esperança: para que a humanidade prevaleça, teremos que mudar e evoluir para que passemos a ter vidas de anfíbios na paisagem infernal de Titã.

Os candidatos ao experimento (o “Titan Project”) são conduzidos com suas famílias a um luxuoso complexo, com residências inteligentes de grandes janelas de vidros e churrasqueiras nos quintais. Militares com esposas e filhos vão tomar injeções que alteram o DNA, voltar para casa no final do dia, fazer churrascos com os amigos, enquanto seus corpos estão se transformando. Um até mata barbaramente sua esposa numa espécie de explosão de raiva esteroide. Enquanto isso, em pleno cotidiano de uma vida de classe média suburbana, esposas e filhos sofrem ao verem seus pais se transformando em híbridos alienígenas. É tudo tão inverossímil que esquecemos que estamos assistindo a uma ficção científica!




Parece que o mais importante na narrativa ficou de fora do filme: que tipo de conversa os candidatos tiveram antes de ir para lá antes de tomar a difícil decisão de deixar de serem humanos? Como o protagonista Rick (Sam Worthington), que ama tanto sua esposa e filho, decide virar cobaia num experimento que sabe que o tornará num alienígena humanoide que talvez nem reconhecerá mais seus entes queridos?

A partir daí, todo o drama do fardo emocional da esposa Abigail (Taylor Schilling) se torna inverossímil quando fica evidente que todos os envolvidos sabiam o que poderiam esperar naquele complexo NASA/OTAN. Ou seja, identificação e empatia (fatores da suspensão da incredulidade) literalmente vão para o espaço!

Então, por que o Cinegnose se interessou em analisar por um filme tão ruim? Por pior que seja um filme, ele sempre será uma importante fonte histórica primária: “o cinema, especialmente o cinema de ficção, abre um excelente caminho em direção aos campos da história psicossocial nunca atingidos pela análise dos documentos" (FERRO, Marc, Cinema e História, Paz e Terra, 1992, p.12). 

Não importa se o filme se refere a um passado remoto ou imediato, pois sempre vai além do seu conteúdo. Ele sempre expressará o espírito do seu tempo. Portanto, há uma conexão entre cinema e sociedade, ou seja, o filme pode ser considerado um repositório do imaginário social de uma determinada época. 

No meio de toda a sua ruindade e inverossimilhança, Titã revela de maneira explícita o espírito do nosso tempo: o momento em que a tecnologia, de tão obesa, hipertrofiada e invasiva, volta-se contra si mesma, destruindo todos os pressupostos humanistas ou racionais que, um dia, nortearam a Ciência e a Razão. É a patafísica dos sistemas: a hipertelia.

O Filme

Worthington e Schilling são Rick e Abigail Janssen, marido e mulher com um filho pequeno. Devido à superpopulação e a um evento nuclear (fruto dos conflitos geopolíticos resultantes da catástrofe climática global) que torna Los Angeles inabitável, a família é transferida para uma grande base da OTAN à beira-mar, onde Rick e outros militares se tornam ratos de laboratório em uma elaborado projeto de 300 milhões de dólares experimento da pesquisa liderado por um cientista com suspeitíssimas ideias eugenistas chamado Dr. Collingwood - Tom Wilkinson.




O plano é administrar várias injeções que permitirão aos indivíduos povoar Titã, uma lua com uma pesada atmosfera de nitrogênio. Em vez de “tentar moldar o clima à nossa imagem”, diz o cientista,  “estamos transformando a humanidade em seres das estrelas”. Esses experimentos, que incluem treinamento de estilo militar supervisionado pelo Departamento de Defesa, logo farão brotar guelras, membranas, ficar ocasionalmente cego e, em alguns casos, tornar-se violento ao não conseguir reconhecer os próprios familiares.

Abigail desempenha o papel de esposa preocupada e suspeita, enquanto observa aterrorizada a mutação de seu marido. “Há algo vivo dentro dele”, diz ela. “Ele está mudando.” 

Como se não soubesse o que iria ocorrer ao aceitar os termos do Dr.Collingwood - eles estão se transformando numa nova espécie chamada Homo titaniansA narrativa é extremamente ambígua. Tenta de forma canhestra mostrar que ela não sabia sobre esse propósito final do Projeto Titan, embora conhecesse a pesquisa do Dr Collingwood (Abigail é médica também). Até que Abigail invada o laboratório e descubra por si mesma. O DNA de Rick está sendo combinado com o de morcego, para se tornar mais tarde um híbrido de anfíbio alienígena.

A certa altura, um opositor às experiências de manipulação genética questiona: “as últimas pessoas que tentaram isso foram os nazistas!”. Enquanto o inexpressivo Rick parece um militar tão patriota e resiliente (sobreviveu a um acidente aéreo na Síria) que é capaz de mandar mulher e filho às favas, transformando-se num ser irreconhecível, para supostamente salvar a humanidade por meio de um projeto científico-militar.




Esse é a estranha mensagem otimista que o filme Titã quer passar: a tecnologia está destruindo a Terra. Mas não se preocupe! Esta mesma tecnologia poderá salvar a humanidade. Desde que... percamos a própria a humanidade! Todos viraremos alienígenas,  negando a própria humanidade que a tecnologia pretendia salvar. Para morarmos num planeta com uma paisagem tão devastada quanto a da Terra. Deixaríamos as chuvas ácidas aqui da Terra e partiríamos para uma lua distante para vivermos sob chuvas de metano...

A patafísica tecnológica – alerta de spoilers à frente

Essa estranha lógica “patafísica” (a lógica non sense para explicar o absurdo da existência) é conhecida como hipertelia tecnológica

O pensador Jean Baudrillard acreditava que todos os sistemas tecnológicos estavam caminhando para um vanish point, um ponto de inversão e entropia, ou seja, a um estágio de inversão da finalidade inicial (a do valor de uso da tecnologia, sua utilidade e funcionalidade), tendendo a um ponto de inércia, a um ponto zero. Todos os processos desenvolvam-se até um certo ponto e que, sendo este ultrapassado, perdem sua eficácia e se tornam absolutamente disfuncionais. Os sistemas tecnológicos tenderiam a um estado de obesidade, de excesso generalizado, até inviabilizar a finalidade original que os fez surgir.




Hipertelia: Do grego hypér “além”, “excesso” e do grego telos “fim”, “realização”. Em biologia significa um crescimento desmedido, normalmente não-harmônico, de parte de um ser vivo ou de um grupo, até o ponto de tornar-se prejudicial ou contrária aos interesses da espécie conservando mais nenhum valor de adaptação.

O propósito do Dr. Collingwood é acelerar a evolução da espécie humana para aumentar a eficácia da essência da teoria de Darwin: a capacidade de adaptação. Só que é tamanha a obesidade tecnológica (invasiva e totalitária) que acaba inviabilizando a própria finalidade inicial, cruzando o vanish point: já não é mais questão de adaptação, mas de deixar de ser seres humanos. Uma espécie de pós-eugenia que sequer os nazistas poderiam imaginar: não se trata mais de criar uma elite de super-humanos, mas de transformar o humano em outra coisa, anulando sua própria natureza.

 A última cena do filme é emblemática: vemos o protagonista Rick numa cena épica e triunfante, finalmente transformado em “homo titanians”, observando do alto de uma montanha, a desolada paisagem pós-apocalíptica da lua Titã. Tão desoladora quanta a devastada paisagem do planeta Terra que ele abandonou.  


 

Ficha Técnica 

Título: Titã

Diretor: Lennart Ruff

Roteiro: Max Hurwitz

Elenco: Sam Worthington, Taylor Schilling, Tom Wilkinson

Produção: Motion Picture Capital

Distribuição:  Netflix

Ano: 2018

País: EUA

 

Postagens Relacionadas


O bug da Microsoft e o Mal



Em “Black Mirror” a tecnologia é espelho sombrio de nós mesmos



O Top 10 do bestiário neoconservador para o século XXI



Série “Upload”: quando as corporações irão monetizar a imortalidade?


 

Tecnologia do Blogger.

 
Design by Free WordPress Themes | Bloggerized by Lasantha - Premium Blogger Themes | Bluehost Review