segunda-feira, janeiro 11, 2021

Nietzsche, Gnosticismo e Teocídio no filme 'Matando Deus'


O que você faria se Deus aparecesse? E se Ele não fosse como Morgan Freeman em “O Todo Poderoso” (2003), uma divindade bondosa que pacientemente dá lições morais para Jim Carrey. Não, e se Deus aparecesse como um anão sem-teto, alcoólatra, desbocado e de saco cheio da própria Criação? Pior, com um plano de exterminar a humanidade. Essa é a comédia de humor negro “Matando Deus” (“Matar a Dios”, 2017): o Todo-Poderoso invade a noite de Ano Novo de uma família disfuncional que é o microcosmo de todas as mazelas do demasiado humano. Depois de muitos dilemas morais, o grupo chega a uma conclusão: eles precisam matar Deus. Uma narrativa que combina humor negro com o melhor do slasher dos filmes B. E suscitando leituras tanto nietzschianas como gnósticas.


O “Teocídio” (o assassinato de Deus) é uma das grandes consequências da Modernidade. E a morte é atribuída a Nietzsche pela sua famosa frase: “Deus está morto! Deus continua morto! E nós o matamos!”. 

O filósofo alemão, ao lado de Karl Marx e Sigmund Freud, pode ser considerado desses “cavaleiros do Apocalipse” os quais, cada um dentro do seu campo do conhecimento, contribuíram para esse Teocídio: Marx via Deus como a essência alienada e exteriorizada do próprio homem por meio da qual, através de uma inversão fetichista, era dominado e a ela prestava culto; Freud via Deus e a religião como sintomas de uma neurose obsessiva e, socialmente, como um reflexo do mal-estar da civilização.

Porém, a frase “Deus está morto!” de Nietzsche e as desconstruções operadas por Marx e Freud não significam que eles foram os assassinos de Deus e os grandes vilões da fé e da religião. Na verdade, eles estavam mais interessados em criticar os sistemas religiosos do que provar a existência ou inexistência de uma divindade.

Na Antiguidade a religiosidade sempre esteve interligada com as narrativas mitológicas, que fundamentavam questões sociais e políticas – Deus ou deuses faziam parte do cotidiano da sociedade e das relações humanas.

Com o passar do tempo, a fé passou a ser institucionalizada como sistema religioso assumido pelo Estado. É a religião dos clérigos, Deus como entidade inacessível dependendo da mediação dos guardiões da fé que se expressavam numa linguagem cifrada e misteriosa – Deus ficou não só prisioneiro a sistemas, mas virou um instrumento de poder. E a sua face foi convertida em um Demiurgo, arbitrário, vingativo, punidor.

A Modernidade separou a Igreja das questões de Estado. A religião tornou-se protocolar e uma esfera não mais necessária para o funcionamento da sociedade, já que dispunha da Ciência, da tecnologia, da indústria e da impessoalidade burocrática das organizações. Os Cavaleiros do Apocalipse não mataram Deus, mas demonstraram como não era mais uma ideia necessária.



Nietzsche decretou a morte da narrativa de Deus, porém, acompanhando o raciocínio de Marx, Deus continua existindo muito mais do que uma exteriorização. Mas como um espelho humano: Ele é um reflexo, à nossa imagem e semelhança. Sua cólera, raiva, rancor ou perdão e compaixão somos nós, sozinhos nesse Universo. O que tornaria a discussão da existência ou não de Deus, totalmente inócua.

A comédia de humor negro espanhola Matando Deus (Matar a Dios, 2017), estreia dos diretores e roteiristas Caye Casas e Albert Pintó, vai diretamente a esse ponto ao trazer o Todo-Poderoso entre humanos como um anão sem-teto alcoólatra, desbocado e sem um pingo de sentimentos nobres como empatia ou compaixão – sem falar da mais bizarra entrada de uma Deidade entre os humanos, desde a divindade demoníaca Gozer The Gozerian no filme Ghostbusters (1984). 



Um Todo-Poderoso tão demasiado humano só poderia encontrar um grupo familiar bem disfuncional quem tenta celebrar a última noite do ano em uma distante casa no campo. Mas tudo que vem à tona são diálogos e discussões carregadas de desconfiança, ressentimento, rancor e arrependimentos. Filho, avô, o marido e a esposa que representam uma boa amostragem de muitas dos pecados da humanidade: covardia, ganância, adultério, mentiras, traições etc. – e inexplicavelmente, como ainda em meio a tudo isso emerge algum tipo de amor que ainda mantém os aços familiares.

E parece que Deus já está cansado de todo esse teatro humano!

O Filme

Matando Deus abre com um breve prólogo em que o misterioso anão surge numa estrada, no meio da noite, interrompendo a viagem de carro de uma família que carrega um bebê no banco traseiro. A sombria entidade com o rosto escondido com um capuz diz que eles estão seguindo para a morte. “Você é louco?”, pergunta o motorista. “Sim, mas não da forma como você imagina!”, responde enigmático. Para depois o carro explodir em um acidente mais adiante.



Ele só poderia ser um ser demoníaco. Mas logo se revelará como o Deus Criador bem diferente de tido que imaginamos.

Corta para uma noite de Ano Novo sombria e tempestuosa em um casarão no topo de uma colina, onde uma família se reúne para comemorar. Encontramos o casal Carlos (Eduardo Antuña) e Ana (Itziar Castro) que não param de discutir depois dele descobrir que a esposa passou a noite com o seu chefe em um hotel depois da festa de encerramento de ano da empresa.

Logo mais chegam o irmão de Carlos, Santi (David Pareja), envolto em planos de suicídio depois de ser abandonado por uma namorada de longa data, acompanhado do pai cardíaco Eduardo (Francesc Orella), cuja condição de saúde não o impede de ser alcoólatra e assíduo frequentador de prostíbulos.

Em meio a linhas de diálogos cínicas, amargas e sombriamente engraçadas, o grupo começa a desconfiar que há mais alguém naquele casarão. Um barulho que vem do andar superior, mais precisamente do banheiro... bem, não vou descrever a forma como chega o Todo-Poderoso.



Ele logo se revela, senta a mesa e começa a entornar cálices cheios de vinho. Claro que ninguém acredita que um anão sem-teto (Emilio Gavira) é Deus. Mas logo Ele não só dará uma prova impactante como anuncia a sua missão naquele lugarejo remoto.

Um evento catastrófico exterminará a espécie humana da face da Terra. Exceto duas pessoas serão poupadas. E aquelas quatro pessoas ali reunidas terão que escolher quais serão.

Com o passar do tempo, a tensão só aumenta à medida que o quarteto discute os prós e contras das suas próprias vidas – e em nenhum momento sequer lembram de outros nomes possíveis fora daquele grupo. Até decidirem que podem agir de forma mais violenta com o dilema moral.

Ao abrir uma garrafa de vinho, Deus corta a mão, sangra, sente dor e tenta estancar o sangue na pia do banheiro. Carlos, Ana, Santi e Eduardo vendo isso têm uma brilhante ideia: a maneira mais fácil de resolver a situação é... matando Deus! 

Depois do enigma metafísico representado por um anão sem-teto desbocado e impaciente como Deus, muitos dilemas morais e arrependimentos pessoais que se escondem por trás de muita misoginia e preconceitos, Matando Deus deriva do humor negro para o slasher – tentativas exageradas de execução de Deus por um grupo ao mesmo tempo desajeitado e apavorado.



Decorações e luzes natalinas piscando, além da mesa farta, serão um cenário irônico para o caos e cenas sangrentas. É a mais pura alegria de um filme B: uma engenhosa trilha sonora, gritos assustadores, risos ao mesmo tempo em que Deus torna-se cada vez mais maligno e raivoso.

A questão é se o assassinato de Deus reverterá o destino da humanidade.

Desde o prólogo da abertura do filme, o anão Todo-Poderoso parece ser um Demiurgo arbitrário que já se encheu da sua própria Criação. Por que ele vai dar um fim na Humanidade? Ora, porque Ele pode! Assim como a própria Criação foi um evento igualmente arbitrário – de um ponto de vista gnóstico, um acidente de proporções cósmicas que nos deixou aqui agarrados em destroços depois do naufrágio universal.

Essa é apenas uma leitura de Matando Deus. Outra é aquela com a qual abrimos essa postagem: não importa se matamos Deus ou ele se tornou irrelevante para as nossas vidas. O fato é que as representações de Deus (Demiúrgico do Velho Testamento ou cheio de amor e compaixão do Novo Testamento) são espelhos do demasiado humano nietzschiano.

Como revela a cena final do filme, Deus é uma ilusão criada por nós para não nos confrontarmos com a realidade de que estamos sós em um universo indiferente.


 

 

Ficha Técnica 

Título: Matando Deus

Diretor: Caye Casas, Albert Pintó

Roteiro: Caye Casas, Albert Pintó

Elenco: Eduardo Antuña, Emilio Gavira, Itziar Castro, David Pareja, Boris Ruiz

Produção: Alhena Production, New Morning Films

Distribuição:  Netflix

Ano: 2017

País: Espanha

 

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