O diretor José Padilha rebate às acusações de “Fake News” à série brasileira
Netflix “O Mecanismo” alegando que é uma obra de ficção: uma “dramatização” da
Operação Lava Jato. Porém, como obra de ficção, Padilha atirou no que viu e
acertou no que não viu: sem a prisão de Lula, planejada para a semana do
lançamento de “O Mecanismo”, a série foi deixada por si mesma. Sem o apoteótico
final que a impulsionaria, a série revelou ser feita do mesmo material de
propaganda indireta da atual guerra híbrida brasileira – o envenenamento
psíquico pela doença do ressentimento. Como narrativa ficcional, “O Mecanismo”
nada mais é do que uma tentativa de transformar ressentimento, ódio e
frustração dos protagonistas em valores estoicos, nobres e patrióticos. A
grande “virtude” de “O Mecanismo” é ser uma prova de como a “doença do
ressentimento”, a “condição mais perigosa do homem” para Nietzsche,
transformou-se em matéria-prima de propaganda política indireta.
A
concessão da liminar a Lula pelo Supremo Tribunal Federal nessa última quinta-feira
melou o que seria uma perfeita bomba semiótica dentro do quadro atual de guerra
híbrida que mal os brasileiros estão percebendo.
Na
semana em que a plataforma Netlix lançava a série de José Padilha O Mecanismo (baseado nos acontecimentos
da Operação Lava Jato), a presidente do STF Carmen Lúcia manipulava a pauta do
Supremo para que Lula fosse preso nesses próximos dias. E como planejado, tudo
se encerraria numa entrevista com o juiz
Sérgio Moro, no programa Roda Viva da TV Cultura de São Paulo, nessa segunda-feira.
E (por que não?) dando a ordem de prisão ao vivo em uma final apoteótica para o
distinto público.
Mas os
juízes do Supremo adiaram tudo para depois da Páscoa. E restou para a
série O Mecanismo tentar sustentar-se por si mesma, sem o bombástico
contexto que seria criado com a prisão do líder trabalhista.
E
deixada por si mesma, a obra de José Padilha não consegue se sustentar: a
necessidade insistente de voice over
para explicar buracos no roteiro e os sentimentos que motivam as ações dos
personagens, roteiro sem sutilezas (Rigo, o Juiz Sérgio Moro de Padilha, lê um
HQ chamado “Vigilante Sombrio”), protagonistas idealizados e pairando sobre o
bem e o mal e um roteiro que mal esconde o desequilíbrio – embora, a certa
altura, a narração em of reivindique
à Justiça brasileira equilíbrio e imparcialidade.
Sem a
razão, motivo e propósito de sua existência (a prisão de Lula), O Mecanismo no entanto revela
involuntariamente um segredo: a matéria-prima psíquica que foi mobilizada pelas
bombas semióticas, nos últimos anos, para produzir aquilo que o russo Andrew
Korybko chama de “caos sistêmico” ou “caos estruturado” na sua obra “Hybrid
Wars: The Indirect Adaptive Approach to Regime Change” (clique aqui, em inglês) – o envenenamento do
psiquismo nacional pelo mecanismo regressivo do ressentimento.
Imprecisões oportunas
Todas
as oportunas “imprecisões” na série (por exemplo, fala-se do esquema de
corrupção do “Banco do Estado” que teria começado em 2003 – na verdade, o caso
Banestado começou nos anos 1990 nos governos FHC) podem ser interpretadas como
“licença poética” como logo no início Padilha alerta aos espectadores: “essa é
uma obra de ficção livremente adaptada... etc.”.
Porém,
como obra de ficção é uma perfeita e didática bomba semiótica por expor, in natura, o esgoto psíquico de onde foi
retirado todo o ressentimento que alimentou mal estar, ódio, intolerância,
polarizações cuja propaganda indireta da guerra híbrida deu forma e sentido...
ou seja, o “caos estruturado” do qual se refere Korybko.
O tema
central da série é o ressentimento,
muito mais do que uma suposta dramatização da Lava Jato. O que comprova a
natureza da produção Netflix: é mais um veículo de propaganda, como muitos
outros desde 2013, a incutir o ódio e o ressentimento como doença psíquica
nacional que legitimou todo o golpe e a crise política.
Tirando
os vilões (doleiros, empreiteiros e as caricaturas de Lula e Dilma Rousseff),
todas as motivações dos “mocinhos” são originadas no ressentimento – o ódio e
desejo de vingança por descobrirem que “Deus não é brasileiro”, que a Justiça
não existe, por descobrir que depois 20 anos de trabalho na Polícia Federal o
protagonista vai apenas receber migalhas de auxílio-doença da Previdência.
Ou por
dó por ver “heróis anônimos” levando uma vida miserável enquanto doleiros
enriquecem e sustentam “as mais caras campanhas eleitorais à presidência”...
Logicamente, as campanhas das parodias de Lula e Dilma.
Por
isso, a obsessiva necessidade narrativa de voice
over para tentar explicar as motivações dos protagonistas. É a única
maneira dos criadores José Padilha e Elena Soarez tentar atribuir alguma
motivação nobre, patriótica ou estoica para os heróis. Mas o que as imagens nos
mostram mesmo é o mesmo envenenamento psíquico que a propaganda indireta da
Guerra Híbrida (as “bombas semióticas”) inoculou nos corações e mentes de uma
nação.
A série
A
dupla Padilha e Soarez também tenta nos vender a ideia de que o tal “mecanismo”
do título está por trás de tudo como “um câncer” como obsessivamente repete o
policial federal Marco Ruffo (Selton Mello): na esquerda, na direita, na
presidência, na empresa estatal, na “cervejinha” paga ao policial, na falsa
carteirinha de estudante.
Mas o
“câncer” mesmo está no clone de Lula: ele fala em “estacar a sangria” da Lava
Jato e em “grande acordo nacional”. Na verdade, quem usou essas frases foi
Romero Jucá no infame diálogo com Sérgio Machado... Mas, afinal, quem se
importa. Ele já estaria preso, não fosse a “tremedeira” do STF. O que daria um belo empurrão promocional à série.
Ruffo
fica obcecado pelo esquema corrupto do doleiro Roberto Ibrahim (Enrique Diaz).
Junto com a sua companheira de investigações e aprendiz Verena (Croline Abras),
Ruffo descobre um gigantesco mecanismo de corrupção envolvendo, logicamente,
todo o fornecimento de dinheiro para as campanhas eleitorais de uma alusão ao PT e
superfaturamento na “Petrobrasil”.
Padilha
e Soarez fazem questão de reforçar ao espectador o contraste entre a vida
contida financeiramente do herói (“levei 20 anos para dar um carro para minha esposa”, lamenta Ruffo),
numa casa humilde e com uma filha que necessita de cuidados especiais, e as
cifras milionárias manipuladas pelo doleiro Ibrahim.
Ruffo
não se conforma em olhar para sua esposa e filha como um perdedor e a precária
vida material que consegue dar a elas. Sua motivação profunda é a vingança, a
justiça custe o que custar. Ressentido, sofrendo derrotas atrás de derrotas,
sente-se paralisado pela Justiça (“às vezes tenho vontade de meter uma balas na
sua cabeça!”) e quase a dupla Ruffo/Ibrahim se transforma na dupla
atormentada Batman/Coringa do cinema e das HQs.
Ressentimento como arma política
Ressentimento
sempre foi uma arma da propaganda política. Para Nietzsche, o ressentimento se transforma em doença quando as forças
ativas perdem a capacidade de atuar e o indivíduo deixa-se contaminar. Então a sede de vingança começa a ganhar
forma e buscar por um sentido.
E a
propaganda política com seus bodes expiatórios e soluções finais está sempre
atenta: golpes, intervenções militares, sanha persecutória, linchamentos etc oferecem a tradução política para essa doença.
Para
Nietzsche, o ressentimento surge da oposição entre duas visões de mundo: a
ativa, aceitar o mundo como é e tentar adaptar-se a ele aplicando seus instintos;
e a reativa, que não aceita esse mundo e nega os instintos por pertencerem
a esse mundo.
Logo
cresce o sentimento de que alguma coisa é a culpada pela inércia, paralisia e o
mal-estar. De imediato vem a ideia de vingança, mas é necessário agir. O que
foge da capacidade do ressentido.
O ressentimento é introjetado, criando o ódio – a matéria-prima à espera de uma tradução em um slogan, uma campanha, um bode expiatório. Mas, principalmente, à espera de alguém que, por delegação, faça o trabalho de vingança: um herói, um vingador que esteja acima do bem e do mal. Acima da Lei, da Constituição, do Estado de Direito – na verdade, para o ressentido, instituições que só dificultam a justiça.
O ressentimento é introjetado, criando o ódio – a matéria-prima à espera de uma tradução em um slogan, uma campanha, um bode expiatório. Mas, principalmente, à espera de alguém que, por delegação, faça o trabalho de vingança: um herói, um vingador que esteja acima do bem e do mal. Acima da Lei, da Constituição, do Estado de Direito – na verdade, para o ressentido, instituições que só dificultam a justiça.
O Mecanismo gasta os primeiros episódios
para descrever esse cenário de impotência, esforço e sacrifício de destemidos
investigadores federais e do Ministério Público (destacando o caso de um
policial que veio da favela e graças ao esforço e mérito tornou-se um servidor
público), da tragédia pessoal e familiar de Ruffo até os esforços inúteis
daquele que lutaram toda uma vida para serem servidores concursados. Enquanto
doleiros e políticos corruptos se locupletam em dinheiro e poder.
Tudo
para criar esse quadro de frustração e ressentimento. Na verdade, O Mecanismo
tenta transformar em motivações nobres a doença do ressentimento que tanto
Nietzsche denunciava.
Doença que levou o País a ficar eletrizado pelo espetáculo de meganhamento da Justiça, com policiais federais encapuzados empunhando escopetas negras, ao vivo na TV.
A
dupla de criadores Padilha e Soarez atirou no que viu e acertou no que não viu.
Se a “dramatização” da Operação Lava Jato foi paródica e tosca, por outro lado,
O Mecanismo é um documento exemplar do espírito do seu tempo: o ressentimento em
estado bruto explorado como arma semiótica política.
A
Guerra Híbrida ainda está em curso até o seu objetivo final: ódio,
ressentimento e medo como atmosfera psíquica dominante que transformará, para
os cidadãos, até razoável o impedimento das eleições desse ano. Afinal, não foi
para isso que foi dado o golpe político?
Ficha
Técnica
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Título: O Mecanismo (série)
|
Criador: José Padilha
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Roteiro: Elena
Soarez
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Elenco: Selton Mello,
Caroline Abras, Enrique Diaz, Antonio Saboia, Otto Jr.
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Produção: Zazen
Produções
|
Distribuição: Netflix
|
Ano: 2018
|
País: Brasil
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