domingo, outubro 21, 2012

O Mal pune desobedientes em "Um Olhar do Paraíso"

Centrada na estória de uma menina que foi assassinada e observa sua família e seu assassino do “céu” (não propriamente, mas de um limbo entre a terra e o céu), a adaptação do romance “Lovely Bones” de Alice Sebold esquece a inteligência e a intrincada estória do livro e confina a experiência do sagrado na célebre fantasia-clichê hollywoodiana da “quebra-da-ordem-e- retorno-a-ordem”: quem transgride a Ordem deve ser punido! Assim é Um Olhar do Paraíso” (Lovely Bones, 2009)
Como já abordamos em postagens anteriores (veja links abaixo), a chamada experiência do Sagrado tal qual compreendida pelo mainstream midiático da atualidade consiste numa espécie de teologia secularizada: uma experiência que seria originada na percepção ou descoberta intuitiva súbita que o indivíduo teria de uma conexão com uma “ordem maior”, com uma totalidade cósmica ou divina.
Descontínuo e marcado para morrer, para o homem a Verdade não estaria na experiência individual, mas na liquidação de qualquer perspectiva particular em nome de uma Totalidade (“Somos todos Um”, o totalitário slogan New Age).

Nessa perspectiva, esse Sagrado enquanto teologia secularizada, teria duas “funções”: adaptar de forma violenta o indivíduo às totalidades sociais (ordem corporativa, política, moral etc.) e trazer racionalização e conforto à dor e sofrimento individuais decorrentes dessa adaptação forçada (mostrar ao indivíduo que ele é insignificante diante dos desígnios maiores do Cosmos).
Como no filme Juventude Transviada (Rebel Without a Cause, 1955) onde o personagem de James Dean (Jim Stark) olha para as estrelas do Planetário e diz que vem sempre para lá para, ao contemplar a imensidão do universo, perceber como seus problemas são insignificantes.

Da mesma forma, Um Olhar do Paraíso confina a experiência do sagrado a sucessivas experiências de punições dos personagens por transgressões da Ordem. E o filme segue essa fantasia-clichê de forma surpreendentemente rígida e esquemática no melhor estilo dos filmes que envolvem adolescentes nos gêneros terror ou thriller. Se não, vejamos.

A construção dos personagens da mãe e da avó da protagonista que será assassinada (respectivamente Abigail Salmon – Rachel Weiz – e Lynn – Susan Sarandon) são exemplares: vemos Abigail lendo na cama livros de Camus e da literatura beatnik, enquanto a avó bebe e fuma compulsivamente e incentiva sua neta a ter suas primeiras experiências amorosas. Tais comportamentos transgressivos merecem a punição: o assassinato da filha/neta Susie Salmon e a desestruturação da felicidade da família.

A sequência que antecede o assassinato de Susie é exemplar. Ela sonha com o primeiro beijo que dará na vida. Está apaixonada (com o incentivo da sua avó liberal) por Ray (Reece Ritchie), rapaz “misterioso” (nos filmes norte-americanos basta ser estrangeiro – ele é inglês – para ter um ar de “misterioso”. A típica xenofobia americana). Quebra da ordem e punição imediata. Na próxima sequência ela será assassinada pelo serial Killer no milharal. Os sonhos individuais devem ser abatidos pela realidade: uma das variações da fantasia-clichê de “quebra-da-ordem-e-retorno-a-ordem”.

O milharal: transgressão e punição

Aliás, o milharal é o local emblemático da narrativa: para lá vão os casais apaixonados em busca das suas primeiras experiência sexuais. E lá está, também, o serial killer, o Mal à espreita, pronto para o seu papel punitivo, de executor da Ordem e da Totalidade.

Enquanto os personagens transgressores vão desaparecendo na trama (a esposa Abigail entra em depressão e sai de casa para se auto-exilar como trabalhadora rural em uma fazenda e a avó Lynn simplesmente desaparece na últimas sequências) os personagens mais “certinhos” ou “centrados” ganham espaço no confronto contra o Mal, o serial killer. O pai da vítima Susie, Jack Salmon (Mark Wahlberg) decide usar seu talento por detalhes (ele é contador) e investiga os possíveis suspeitos e a irmã de Susie, Lindsey, (na trama caracterizada como mais realista e pragmática do que Susie) tem a intuição correta de quem é o assassino e consegue encontrar as evidências para entregar à polícia. A racionalidade e o pragmatismo impõem-se diante da atitudes “porra-loucas” que apenas atraíram o Mal.

Surpreendentemente é o mesmo esquema dos roteiros dos filmes de terror adolescentes da chamada “espantomania” ("Sexta-Feira 13", Freedy Kruger em "Pesadelo em Elm Street" etc.) dos anos 80.

Enquanto isso, no “céu” ou no “limbo”, as atitudes transgressoras de Susie continuam sendo punidas (como, por exemplo, a agressão e quase morte sofrida pelo seu pai como causada pela insistência de Susie observar a vida na Terra e nutrir o ódio pelo seu assassino). Ao final será enquadrada pelas outras meninas vítimas do serial killer e adaptada aos desígnios divinos da uma Totalidade Cósmica perfeita e harmônica.

Para além da péssima adaptação do romance original e do esquematismo primário do roteiro (Bem e Mal sem matizações), há algo mais sério por trás: a suposta experiência do Sagrado vendida pelo mainstream midiático como a renúncia do indivíduo de todo ou qualquer sonho diante dos propósitos misteriosos da Totalidade. O filme Um Olhar do Paraíso nada mais é do que outro exemplo do implacável ritual da liquidação do indivíduo em nome do Universal.
A avó incentiva a neta a quebrar a ordem: a
punição por desejar a primeira
experiência amorosa

O clichê da “quebra-da-ordem-e-retorno-a-ordem”

Não importa um gênero ou tema, esse clichê está sempre presente como uma forma de elaborar a fantasia e as espectativas do espectador: ir ao cinema para quebrar a rotina e desprazer do cotidiano, ver de forma ritualizada a ordem (social, política etc.) ser quebrada no filme para, ao final, prepará-lo para retornar às suas obrigações diárias como se nada tivesse ocorrido.

Este clichê de "quebra‑da‑ordem‑e‑retomo‑a‑ordem" é a confirmação do desejo secreto do público de acabar com os sonhos livres demais e ao mesmo tempo liquidar com idéias provocativas que possam incomodar a necessidade por harmonia. Um exemplo pode ser visto no filme road‑movie Thelma e Louise (1991) com Susan Sarandon e Geena Davis onde duas mulheres submetidas à repressão masculina, (uma num emprego alienante de garçonete e a outra submetida à ordem doméstica machista) rompem com tudo e fogem num carro conversível. 

Esta fixação do desejo do público por liberdade através de imagens simbólicas (o carro conversível, cabelos soltos ao vento num carro veloz, etc) é desenvolvido até certo ponto para, no final, os sonhos serem abatidos dentro de um destino trágico. Pode parecer estranho, mas felicidade demais incomoda o público. As pessoas esperam que os sonhos sejam abatidos pela realidade dentro do clichê. Mas, por quê? Para que a volta à realidade, após sair do cinema ou desligar a TV, não seja tão traumática. Se Thelma e Louise não conseguiram ser livres, tampouco eu poderei. Antes que o sonho invada a consciência do público, tirando‑lhe a paz, o clichê abate e neutraliza.

Ficha Técnico

  • Título: Um Olhar do Paraíso (Lovely Bones)
  • Direção: Peter Jackson
  • Roteiro: Fran Walsh, Philippa Boyens e Peter Jackson, baseados em livro de Alice Sebold
  • Elenco: Saoirse Ronan , Mark Wahlberg , Rachel Weisz , Susan Sarandon , Stanley Tucci
  • Produção: WingNut Films / DreamWorks SKG / Film4 / Key Creatives
  • Distribuição: DreamWorks SKG / Paramount Pictures
  • Ano: 2009
  • País: EUA, Nova Zelândia e Reino Unido



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