O gênero “reality show” já consegue rir de si mesmo? É o que parece quando descobrimos que a produtora holandesa Endemol, cujo maior produto é o “reality show”, produziu a série da TV inglesa chamada “Dead Set” (2008) onde uma epidemia transforma o mundo em zumbis... menos os participantes e a produção de um Big Brother que nada sabem o que está acontecendo fora dos muros da emissora. Combinando extrema violência, ironia e humor negro, a série faz referências às principais críticas e indignações contra o gênero. Se a Endemol consegue rir de si mesma é porque por trás há duas estratégias bem definidas: “Agenda Setting” e “tolerância repressiva”.
Não conhecia essa série de TV de 2008 chamada "Dead Set" exibida pelo Channel 4
da Inglaterra. Folheava as páginas do caderno Ilustrada do jornal "Folha de
São Paulo" quando me deparei com um texto da coluna “Vanessa vê TV”: “Agora,
sim: “Big Brother Zumbi”. Uau! Na semana da estreia do novo BBB, um texto sobre
uma série que faz uma sátira irônica e crítica ao gênero “Reality Show”! Em um
veículo da grande imprensa! Afinal, quando todas as páginas dos grandes portais
de notícias da Internet colocam o BBB como assunto principal e tratam o gênero
como um fato jornalístico, é realmente muito bom encontrar um texto crítico em
plena imprensa que dá suporte ao programa.
Porém, como veremos, as aparências enganam. Embora a série
de apenas cinco episódios “Dead Set” tenha interessantes analogias críticas
(zumbis como espectadores ou zumbis como participantes do reality show) e
sacadas irônicas com o típico humor negro inglês com a intenção de desconstruir
o gênero reality show, foi surpreendente descobrir que um dos produtores da
série foi a Endemol, produtora holandesa de TV dona do formato “Big Brother” de
reality show, com franquias em mais de 100 países.
As sequências foram gravadas na verdadeira casa do Big
Brother da TV inglesa com ex-BBs e a própria apresentadora fazendo pontas. Isso
significa o total apoio ao argumento, roteiro e produção da própria empresa
criadora do formato do programa. Como é possível a Endemol bancar uma narrativa
crítica ao próprio gênero? Como interpretar o apoio à produção de uma série que
pretende desmistificar, desconstruir e incorporar à narrativa a maioria das
críticas de acadêmicos e intelectuais? É o gênero “reality show” rindo de si
mesmo?
Apocalipse Zumbi e Reality Show
Fã dos filmes sobre zumbis do diretor George Romero ("A Noite
dos Mortos Vivos", 1968 e "Madrugada dos Mortos", 1978), o escritor Charlie
Brooker imaginou o argumento a partir de três variantes deliciosas para todos
aqueles que não gostam do gênero: e se o mundo tivesse acabado fora da casa do
BB; ou, se entre os participantes estivesse um serial killer como no filme
canadense “Slashers” (2001); ou, ainda, e se os participantes não imaginassem
terem sido selecionados por espectadores de snuff movies e todo o “reality
show” fosse um jogo mortal real como em “O Olho que tudo Vê” (My Little Eye,
2002).
Pois Charlie Brooker combinou tudo isso através de uma
misteriosa epidemia que teria transformado todos em mortos-vivos... menos os
participantes do BB e diretores, técnicos e produtores do programa que nada
sabem sobre o que está ocorrendo lá fora.
O realismo presente na série é impressionante: cenário,
boas atuações, ótima fotografia, cenas de extrema violência, linguagem pesada e
a câmera de ombro frenética que acompanha a correria de todos na luta pela
sobrevivência.
A série começa em dia de eliminação na casa do Big Brother.
Mascando chicletes de nicotina sem parar, um escroto e estressado diretor
seleciona as imagens na ilha de edição que irão para os “melhores momentos” do
dia (um autêntico making off de um “reality show”), enquanto observa as câmeras
ao vivo: “Quanto mais baixaria melhor! Quem você acha que sai: a peituda ou o
seu fiel escudeiro?”, diz debochando.
Nas primeiras cenas vemos um dos participantes da casa
fazendo reflexões para a típica personagem loura-burra: “O que é a TV? Uma
grande seta que nos aponta para longe do verdadeiro problema”. E ela, enquanto
faz pedicure, pergunta: “Os dedos têm ossos?”
Enquanto são mostrados os diálogos “non sense” dos
participantes do BB, lá fora todos os mortos-vivos, sem nenhum motivo aparente,
rumam para a emissora de TV onde está a casa do Big Brother. Um dos produtores
do programa conjectura: “provavelmente era a última coisa que estavam
assistindo ao se transformarem em zumbis: o Big Brother”.
Em um efeito de corte na transição de dois planos, os olhos
de um dos zumbis que tenta invadir a emissora são comparados ao olho estilizado
do logo da versão inglesa do Big Brother.
Em todas as ironias e analogias que surgem em cada sequência
podemos encontrar as habituais críticas de fundo social, psicológico ou
comportamental em relação ao gênero “reality show” e à própria TV. Mas, dessa
vez, uma produção sancionada pelo próprio objeto das críticas, ironias e
sátiras.
Entender esse paradoxo significa entender o destino e a
eficácia do discurso crítico atual em um sistema baseado na crescente oferta de
produtos culturais ao mercado, cuja variedade temática permite uma aparência
democrática ao incorporar tanto a crítica quanto a defesa do sistema. Isto é,
desde que os produtos culturais sejam oferecidos sob a forma de mercadoria. O
pensador alemão Hebert Marcuse chamava isso de “tolerância repressiva”.
A Crítica Impossível
Em 1965 no ensaio “Tolerância Repressiva”, Marcuse alertou de
que, contra as potencialidades críticas emergentes, a sociedade de consumo
desenvolvia uma contra-revolução baseada na “tolerância repressiva”, formas
cada vez menos violentas, e até democráticas, de absorção dos discursos de
oposição de maneira produtiva ao funcionamento do sistema. Dentro das regras
impostas pelo sistema (desde o jogo democrático parlamentar até as regras de
mercado) é impossível manter a virulência do discurso crítico a partir do
momento em que ele é reduzido a um “ponto de vista”, uma “opinião” ou um “outro
lado” a que é dado o direito de expressão assim como todos os outros discursos,
pontos de vista ou ideologias manifestados no “livre” debate de opiniões.
O que permite encontrarmos em uma livraria volumes da
coleção “O Capital” de Karl Marx ao lado de revistas sobre as últimas fofocas
do Big Brother sem entrar em combustão espontânea (o que é uma situação
retórica, já que cada exemplar seria colocado em prateleiras diferentes da
livraria, repeitando os “segmentos de mercado”).
Depois dessa ideia de um teórico crítico como Marcuse, nos
anos 1970 surge nas pesquisas em mídia a hipótese do “Agendamento” ou “Agenda
Setting”. Maxwell McCombs e Donald Shaw em 1972 retomam uma ideia de Walter
Lippman em 1922 da sua obra clássica “Public Opinion”, de que a mídia pode não
ter êxito em dizer ao seu público o que
pensar, mas é exitosa em dizer ao público sobre
o que pensar. É a hipótese segundo a qual a mídia, pela seleção,
disposição e incidência de suas notícias, vem determinar os temas sobre os
quais o público falará e discutirá.
O filme “Obrigado por Fumar” (Thank You For Smoking, 2005)
é um filme didático ao mostrar essa perversa tática de engenharia de opinião
pública: narra como a indústria tabagista incentiva a divulgação de pesquisas
tanto contra quanto a favor do cigarro. Para ela, não interessa um veredito final
sobre o problema, mas que o debate do tabagismo esteja sempre em pauta na mídia.
Todos os resultados divulgados, contra ou a favor, se equivalem na espiral de
informações. No final, apenas reforçam posições, mantendo praticamente inalterado
o mercado do tabaco.
"Dead Set": Engenharia de Opinião Pública
Usando essas duas
ferramentas conceituais ficam mais claras as intenções da Endemol em apoiar uma
série trash e crítica ao gênero reality show. Em um plano de engenharia de
opinião pública é evidente a estratégia de agendamento com “Dead Set”: falem
bem ou falem mal, mas falem de mim! Todas as críticas ideológicas ou
indignações éticas e morais ao principal produto da empresa holandesa apenas
ajudam a manter a polêmica, agendando a pauta nas mídias.
E no plano mais
amplo do próprio sistema social, mostrar os participantes e o público de
reality shows como seres tão perdidos e sanguinários como zumbis se equivale ao
suporte da grande mídia que encara o programa como um fato jornalístico e até
acadêmico, produzindo mais e mais dissertações e teses de pós-graduação.
Através da “tolerância repressiva” de uma democracia de livre mercado, todas as
posições chegam ao grau zero: tudo se reduz a “informação” ou “opinião”,
docilmente absorvidos pela liberdade de expressão.
E como furar esse
cerco ideológico da liberdade de expressão da “tolerância repressiva”? Quem
sabe se autênticos gestos de terrorismo midiático como a impagável iniciativa
de Silvio Santos com a Casa dos Artistas de 2001 a 2004 sejam estratégias
irônicas mais eficientes do que discursos críticos.
Para quem não se
lembra, Silvio Santos juntou vários artistas decadentes ou esquecidos em um
verdadeiro “freak show” de candidatos ao ostracismo. Enquanto Silvio Santos
alterava, ao vivo, as regras ao seu bel prazer enquanto dava sua gargalhada
marca registrada, o público ria não dos participantes, mas do próprio “non
sense” da concepção do formato do inusitado “reality show”.
Ficha Técnica
- Título: Dead Set
- Diretor: Yann Demange
- Roteiro: Charlie Brooker
- Elenco: Jaime Winstone, Andy Nyman, Riz Ahmed, Kevin Eldon
- Produção: Zeppotron, Endemol
- Distribuição: Channel 4
- País: Reino Unido
- Ano: 2008
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