quarta-feira, agosto 24, 2011

Filmes que Escaneiam a Mente e a Nova Engenharia Social

Filmes e jogos controlados diretamente pelas ondas cerebrais do usuário através da nova plataforma de mídia interativa "Myndplay". A realidade supera a ficção: enquanto você se diverte um scanner realiza uma cartografia mental para que o usuário faça o controle das suas própria emoções. Forma de engenharia social onde comportamentos e atitudes desejáveis para Organizações e Indústria do entretenimento serão reforçados através da intervenção direta em determinadas regiões do cérebro .

O cientista político canadense Arthur Kroker conta uma irônica experiência em ciber-sexo de um jovem hacker americano em Berlin.  Ele e um colega francês criaram um traje especial para o corpo imergir numa experiência de sexo à distância. Uma perfeita máquina de ciber-sexo que possibilitaria uma relação sexual virtual entre Paris e Berlin. O experimento foi divulgado e atraiu uma multidão nas duas cidades. Pessoas vetorizando seus corpos, supostamente sentindo toques e penetrações de seus parceiros remotos como fossem experiências presenciais.

Mas algo curioso aconteceu. Ao final do segundo dia um ciber-parceiro de Paris mandou uma mensagem dizendo que estava tendo um problema com os códigos: uma falha na programação estava fazendo o programa funcionar em “loop”, em um feedback fechado. O que significava que em dado momento o usuário não estava mais fazendo sexo com algum parceiro remoto, mas com suas próprias sensações digitalizadas em “looping”. E os participantes estavam adorando! Em síntese, a experiência europeia de ciber-sexo converteu-se em um evento autístico, uma ciber-masturbação (Veja KROKER, Arthur. Hacking the Future. New York: St. Martin Press, 1996)

Essa experiência bizarra foi a primeira coisa que me veio à cabeça ao ler a notícia dos “filmes que escaneiam a mente” (clique aqui para ler a notícia). Na verdade, uma nova plataforma de mídia, a Myndplay, cuja tecnologia incorporara um scanner cerebral à experiência cinematográfica de forma que, de acordo com o estado emocional do espectador, narrativa do filme acaba sendo alterada. Dependendo de quão tenso ou relaxado o espectador estiver, através de sensores de eletroencefalograma o espectador instantaneamente interfere nos pontos interativos da narrativa.


Ao contrário das outras produções interativas, os filmes da Myndplay permitem ao espectador ser colocado diretamente no lugar do protagonista. Através de um “headset” os personagens falam com o espectador. Segundo a empresa fabricante da tecnologia, a NeuroSky, o Myndplay “põe abaixo as barreiras entre o participante e a arte”. Não há mais teclados, mouses, touchscreen. Como afirma entusiasticamente o release da NeuroSky: “usando um simples headset é possível imergir visceralmente na ação como um verdadeiro personagem na história. E só precisa das ondas cerebrais do usuário”.

“E só precisa” é a expressão síntese do discurso tecnológico atual baseado na lei do menor esforço e a superioridade moral da velocidade, rapidez e conveniência, como vimos em postagens anteriores (veja links abaixo). Na busca dessa verdadeira moralidade tecnológica baseada na indiscutível lei do menor esforço chegamos à última interface tecnológica: a conexão entre o biológico e o eletrônico, sistema nervoso e servomecanismos, cérebro e máquina. 

Não obstante as promoções midiáticas sensacionais onde essas pesquisas com base nas neurociências são apresentadas como a esperança para paraplégicos e portadores de mal de Parkinson, a verdade parece estar em outra “cena”.

Muitos pesquisadores críticos em cibercultura vêm na revolução eletrônica que pretende traduzir o fenômeno da consciência em dados para inserir em plataformas midiáticas como uma astúcia humana em escapar de si mesmo, da “responsabilidade monstruosa”, como defende o pensador francês Jean Baudrillard (veja BAUDRILLARD, Jean. Carnival and Cannibal. Seagull Books, 2010)

Narrativas e experiências estéticas diluídas em hipermídias e interatividade de tal maneira que o ego do participante possa intervir e moldar à sua vontade um produto de entretenimento. Você vê o que você quer ver. Não há surpresa, choque (a não ser dentro dos limites determinados pelas reações emocionais do participante), atrito ou confronto.

Em outras palavras, filosoficamente isso significa neutralizar e negar a alteridade e o Outro. Negar o atrito, a fricção com a realidade e relações humanas ao propor um novo Eu supostamente poderoso e sem limites, dotado não apenas com o dom da ubiquidade e onipresença, mas, inclusive, com a possibilidade de modelar o espaço circundante.

Possibilidade fascinante do Myndplay: não apenas uma pessoa, mas um grupo conectado com seus headsets ao filme podem, juntos, criar uma realidade consensual com vários personagens sob a influência de espectadores (aliás, a definição de ciberespaço dada pelo escritor William Gibson no clássico “Neuromancer”).

Na medida em que o espaço circundante potencialmente pode ser moldado pelo Eu temos o surgimento de um ego solipsista, uma mônada fechada em si mesma. A experiência de ciber-masturbação involuntária descrita por Artur Kroker não está muito distante dessa experiência solipsista. Na verdade, aquele acontecimento foi um ato falho que denuncia o verdadeiro prazer do entretenimento eletrônico: o Eu que se entretem consigo mesmo tentando se projetar em plataformas (espelhos) para moldar a realidade à sua imagem. A criação de uma espécie de Eu extenso onde não há mais a experiência da alteridade e do Outro com a diluição das âncoras existenciais com o mundo real: finitude, temporalidade e senso de fragilidade corporal.

O Problema da Ateridade e do Outro

Para o pensador francês Emmanuel Lévinas esse tema da alteridade e do Outro surge no Ocidente a partir da questão do Holocausto, quando se colocou em xeque a questão da indiferença em relação ao destino das outras pessoas. Para Lévinas a alteridade é um processo em que o ego abandona a autossuficiência. Ele concebe o desenvolvimento do ego em três estágios: o existir, a hipóstase e a alteridade. Quando o indivíduo passa a ter um nome ou identidade ele deixa de ser mera existência (hispóstase) e passa a procurar liberdade e conhecimento. Ao se abrir para o outro, o estranho, alteridade, a diversidade sexual ele rompe o “egoísmo” ao encontrar o “devir” e vivenciar a experiência do “choque” ou do “trauma” (veja LÉVINAS, Emmanuel, Emmanuel Lévinas – Ensaios e Entrevistas, São Paulo: Perspectiva, 2007).

Ao contrário, a interatividade eletrônica parece bloquear a alteridade ao incentivar uma experiência estética como uma projeção do Eu. Nesse sentido, não temos comunicação, mas mera sinalização e informação: uma experiência apenas aditiva onde o Eu seleciona por meios dos pontos de interatividade na narrativa em hipermídia o reforço dos seus valores, atitudes e  comportamentos pré-existentes.

Diferente disso, comunicação implica em transformação, onde o Eu deixa de ser autossuficiente e abre-se para experiência da alteridade no Outro. Aceita o risco da perda e da contrariedade. Aceita que a experiência da alteridade penetre no Eu, transformando-o.

O Eu permeável

Em seu release sobre a plataforma Myndplay, a NeuroSky afirma que a sua tecnologia baseada em biofeedback facilitará a vida de diretores e produtores cinematográficos pois terão em mãos relatórios científicos sobre os efeitos dos conteúdos visuais.

Explicitamente, a NeuroSky afirma que o objetivo da plataforma é “treinamento do cérebro por meio do entretenimento. O espectador não só tem controle sobre o conteúdo, mas também desenvolve o controle de suas próprias emoções que transferem para a vida cotidiana para, através do controle dos nervos, ter melhor desempenho no esporte, no trabalho etc.”

É a aplicação do modelo cibernético tal como idealizado por Nobert Wiener: o feedback como o momento do processo da informação onde se alcança o equilíbrio (a “homeostase”): os dois polos, emissor e receptor, acabam se integrando e mantendo a estabilidade do sistema. Se aparentemente o participante vê o seu Eu projetado e interativamente moldando a narrativa do filme, em retorno os pontos de interação elaborados pelos criadores vão induzir certos tipos de reações, sentimentos e emoções desejáveis.

Apesar da aparência de um Eu poderoso, narcísico e sem limites, paradoxalmente observamos um enfraquecimento da subjetividade na medida em que o participante ratifica o mesmo. Sob a aparência do lúdico e do entretenimento, na verdade atitudes e comportamentos desejáveis (para empresas, escolas, e indústria do entretenimento) serão reforçados como uma espécie de treinamento: somente serão gratificados (com um feliz “happy end”, por exemplo) reações “positivas”, “eficazes” ou “eficiente” para determinados objetivos alheios aos participantes.

É o “Eu permeável”, facilmente conformado e resignado: dentro da cartografia mental dos neurocientistas, certas regiões do cérebro deverão ser mais estimuladas do que outras.

O Myndplay pode representar o surgimento de uma nova enenharia social, onde não serão mais necessárias palestras motivacionais, livros de auto-ajuda ou caros e demorados cursos de treinamentos em empresas. Basta estimular, por meio do entretenimento, as regiões do cérebro correspondentes à “inteligência emocional” desejável para a Organização e para a indústria cultural!

Mais uma vez a realidade supera a ficção. Nem George Orwell poderia ter imaginado tal distopia.

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