sexta-feira, janeiro 08, 2010

"Spiritual Cinema Circle": Espiritualidade como Auto-Ajuda

Reduzir a angústia à possibilidade da cura por meio de filmes “inspiradores” e “motivacionais” parece ser o destino da Teologia e da Metafísica na contemporaneidade.


Foi fundado nos Estados Unidos o Spiritual Cinema Circle (Círculo do Cinema Espiritual). Nos moldes do antigo "Círculo do Livro", os associados pagam uma taxa mensal para receber todos os meses em sua casa os melhores títulos espiritualistas, além de documentários e filmes de curta metragem.

O projeto nasceu da colaboração entre o produtor Stephen Simon e os psicólogos Kathlyn e Gay Hendricks. Stephen é o responsável por alguns dos títulos favoritos do gênero como Em Algum Lugar do Passado (Somewhere in Time, 1980) e Amor Além da Vida (What Dreams May Come, 1980); enquanto o casal Hendricks criou e administra o Hendricks Institute, uma entidade sem fins lucrativos que auxilia pessoas com problemas de relacionamento.


Esse gênero “cinema espiritual” é definido da seguinte maneira, segundo o site do Círculo: “São filmes que abordam temas espirituais, metafísicos e religiosos. Evocam uma experiência interior. Iluminam a condição humana, levando-nos numa jornada onde vivenciamos a vida como seres espirituais tendo uma experiência humana. O Cinema Espiritual engloba filmes, curtas, e documentários que evocam uma experiência espiritual, metafísica e religiosa. São filmes que inspiram e ao mesmo tempo entretem. Hoje, podemos assistir filmes como 'A Profecia Celestina', baseado no livro que faz parte do caminho de tantas pessoas."

A lista dos “filmes espirituais” engloba desde documentários como O Segredo até filmes como Amor Além da Vida, A Vida é Bela e Peter Pan. Percebe-se que sob esse rótulo abriga-se um amálgama de esoterismo, espiritualismo, auto-ajuda e auto-conhecimento. Por uma lado, demonstra o esgotamento da religião enquanto sistema simbólico que procura dar conta da experiência do Sagrado. Mas, por outro, é um sintoma de uma “teologia secularizada”. Temas como o “poder da mente”, o “triunfo do espírito humano sobra a adversidade” e “busca de outros mundos de beleza, verdade, amor, harmonia e felicidade” e a “conexão com o mundo ao nosso redor” denotam as características da metafísica moderna que seculariza a teologia ao inscreve-la na imanência das relações interpessoais e na comunicação. A conseqüência é o esvaziamento do aspecto crucial da discussão teológica: a angústia humana diante do infinito e do absoluto que, do ponto de vista do gnosticismo, é a próprio sintoma da condição do homem, exilado num universo, isto é, numa falsa totalidade.

Cristo, Fé e Angústia

Numa crítica à Martin Buber, Adorno nos oferece uma pista para compreendermos as origens dessa “teologia secularizada” que culmina, na atualidade, no discurso espiritualista e da auto-ajuda:



“Enquanto em tal relação (Eu-Tu) a comunicação se converte naquele suprapsicológico que ela apenas o seria através do momento da objetividade do comunicar mesmo; ao final, pois, a estupidez como fundadora da metafísica. Desde que Martin Buber desintegrou a cristologia de Kiekegaard no conceito de existencial e o distendeu até ressecá-lo, existe a tendência dominante de apresentar o conteúdo metafísico como vinculado a chamada relação Eu-Tu. Remete-se à imdeiatez da vida, fixa a teologia em determinações da imanência que, por sua vez e por lembrança da teologia querem ser mais(...)” (ADORNO, Theodor. La Ideologia como Lenguaje, Madrid: Taurus, p. 18).


Adorno aqui remete a Kiekegaard (objeto da sua tese de doutorado) para criticar o discurso existencialista do século XX (o “jargão”) que após seu auge em Heidegger e Sartre se pulverizará em fragmentos que se converterão na teologia secularizada do espiritualismo e auto-ajuda. Esta teologia baseia-se num modelo comunicacional que busca a autenticidade e a transcendência nas relações interpessoais (“Eu-Tu”) como uma utopia positiva.

Se Kiekegaard localizou a angústia humana na fé cristã, personificada na figura de Cristo (o Deus tornado homem, a mediação entre o homem e o infinito), esta metafísica vai esvaziar essa angústia radical com a possibilidade de uma utopia na imanência, isto é, a transcendência na imediatez da vida numa relação tão abstrata (o “Eu-Tu” destituído de qualquer história ou materialidade) quanto a da sociedade inautêntica que quer superar.

Em Kiekeegard, somente podemos existir diante de Deus, diante da inconpreensibilidade da infinitude divina. A Verdade não nos foi revelada por meio das pompas e dos conceitos sistêmicos, mas por meio do fato violento da crucificação de Cristo. Cristo a sua época foi um homem obscuro que morreu crucificado, assim como nós que não conseguimos vislumbrar a verdade do Todo, mas a fatalidade dos fatos cotidianos. Esse é o paradoxo da fé para ele: Verdade e ao mesmo tempo angústia na mediação entre o infinito e homem por meio da figura de Cristo. Portanto, não há outro caminho para a Verdade que não seja o da interioridade, o aprofundamento da subjetividade. O ateísmo místico de Martin Buber vai compreender isso como um mergulho na intersubjetividade esvaziando toda a tensão da cristologia de Keikegaard: busca-se uma terapêutica para a angústia, aqui traduzida como incomunicabilidade entre Eu e Tu.

Ora, embora subjetiva, essa angústia tem seus fundamentos numa situação bem material e histórica que transcende ou permeia as relações interpessoais: o mal inscrito em um mundo absolutamente sem sentido, corrompido nas suas origens.

De um ponto de vista gnóstico, a angústia na fé somente pode representar a condição do exilado, do estrangeiro dentro da sua própria morada.
Reduzir esta angústia à incomunicabilidade é negar o seu estatuto ontológico a
um mero sintoma que possa ser curado, tornando o homem ainda mais atrelado à própria cegueira da imediatez cotidiana. Esse parece ser o destino da teologia e
da metafísica na contemporaneidade: a cura da angústia por meio de filmes “motivacionais” e “inspiradores”, como quer o Spiritual Cinema Circle.

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