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domingo, março 18, 2012

A controvérsia sobre a definição do termo "Gnosticismo"

Mestrando pela Universidade de Lisboa, o nosso leitor Douglas Remonatto nos envia uma contribuição para a discussão em torno de termos tão fugidios como Gnosticismo e Gnose. De heresia cristã, hoje reconhece-se o Gnosticismo como um sistema autônomo e paralelo às grandes religiões, embora  composto por diversas correntes. Portanto, é necessário compreender como cada corrente interpreta concepções associadas ao Gnosticismo como dualismo, centelha divina presente no homem, entre outros.


ATUALIDADES DO GNOSTICISMO
Por Douglas A. Remonatto

Hoje, mais que nunca, sabe-se que muitos problemas circundam uma possível definição do termo “Gnosticismo”. É necessário, para bem compreender a complexidade conferida a esse termo, possuir uma visão ampla do fenómeno, observando-o em cada momento de sua especificidade histórica.

A tentativa de uma análise mais profunda, no campo filosófico, do fenómeno que hoje denominamos “gnosticismo” é algo relativamente novo. No entanto, mesmo em meio a sua contemporaneidade, muitas das abordagens académicas disseminadas já encontram-se ultrapassadas. Isso por que os critérios metodológicos utilizados por alguns pesquisadores[1] há três décadas atrás, já não se enquadram dentro da perspectiva critica histórico-filosófica actual.

Nos primeiros séculos cristãos era possível encontrar um número muito grande de correntes ditas gnósticas (Ásia Menor, Síria, Palestina, Egito…). Esta diversidade esteve presente de tal maneira ao longo da história que hoje, os pesquisadores, já não se propõem a encontrar uma única definição para o termo “gnosticismo” e passaram a assumir a sua pluralidade. Logo, o mais correto seria falar de gnosticismos.

segunda-feira, janeiro 16, 2012

Uma Semiótica do Poder das Imagens

Uma imagem vale mais que mil palavras. Essa frase atribuída a Confúcio resume a natureza do mais potente aparato de transmissão: a imagem. Se Confúcio referia-se ao poder dos ideogramas , forma de comunicação simbólica onde duas ou mais imagens são fundidas em um conceito, no Ocidente a imagem viveu uma verdadeira saga a partir das origens rituais até ser convertida em feitiço ou fetiche - da religião à moderna Publicidade e Propaganda.

A genesis das imagens está nos rituais de morte e fertilidade, vida e renascimento. A imagem como manifestação do invisível, a representação de quem morreu para imortalizá-lo. Uma constelação de palavras gravita em torno do conceito de imagem, todas elas derivadas dessas origens: simulacrum (o espectro, fantasma), Imago (a máscara de cera, reprodução do rosto do defunto), eidolon (ídolo, a alma do defunto que sai do cadáver, de natureza tênue e, por isso, ainda corpórea, espectro). Todas essas ideias vão se aglutinar depois no conceito de retrato, imagem.

Sendo ela simultaneamente uma vitória sobre a morte e perpetuação pública de um ser ativo e radiante, a imagem abre as portas para a divinização: para o homem do Ocidente é a sua melhor parte, seu eu imunizado e posto em lugar seguro. A glória do herói grego, a apoteose do imperador romano e a santidade do papa cristão representados por imagens (estátuas, moedas e vitrais) ao longo da História atestam esse poder de transmissão não só da divindade ou imortalidade, mas, também, da crença e do Poder.

Se pretendemos fazer uma semiótica não da imagem em si (já farta na bibliografia da área), mas do seu poder na transmissão de crenças, temos que analisá-la em um duplo aspecto: o religioso e o semiótico, isto é, entender como a exploração religiosa vai fazer o ícone regredir para as formas mais míticas e mágicas da imagem ao explorá-la como propaganda. Indo além, entender como as modernas formas de Propaganda como a Publicidade são novas versões do princípio religioso da exploração das imagens.

quarta-feira, janeiro 04, 2012

Há Semelhanças entre Jesus Cristo e Harry Potter?


O que há em comum entre a figura bíblica de Jesus Cristo e o blockbuster literário e cinematográfico Harry Potter? Segundo Derek Murphy no livro “Jesus Potter, Harry Christ”, mais coisas do que imaginamos. Para ele são “modelos literários” ou “composições de mitológicos e filosóficos símbolos de salvação". Se Henry Potter é a recorrência da narrativa mítica da agonia-morte-ressurreição do herói, Jesus Cristo estaria conectado com toda uma tradição antiquíssima de deuses encarnados destinados à morte e ressurreição.

sábado, dezembro 31, 2011

Você Sabe que é Gnóstico quando...

Miguel Conner, escritor norte-americano de sci fi e editor/apresentador do programa radiofônico "Aeon Bytes Gnostic Radio" (programa de debates e entrevistas semanais sobre temas do Gnosticismo, literatura e cultura pop), elaborou uma lista de itens que caracterizam se você é gnóstico. Apesar do tom irônico e, às vezes, engraçado, dá para perceber a seriedade das teses do gnosticismo em cada item. Mais do que isso, demonstram que o Gnosticismo não é uma religião, doutrina ou filosofia plenamente sistematizada como afirma Stephen Holler: "O Gnosticismo é uma certa atitude da mente, uma ambiência psicológica (...) um certo tipo de alma é, por sua própria natureza, gnóstica".  Se pelo menos o leitor se enquadrar em um desses itens abaixo, pode se considerar com uma séria inclinação à visão de mundo gnóstica.

sábado, novembro 26, 2011

Alquimia e Morte em "Perfume: a História de um Assassino"

Considerado inadaptável à linguagem cinematográfica, o livro “Das Parfum” de Patrick Süskind foi finalmente roteirizado para o cinema em 2006. O resultado  foi o filme “Perfume: a História de um Assassino” (Das Parfum) pelo diretor Tom Tykwer de “Corra, Lola, Corra” (1998). O filme narra como a busca alquímica da quintessência dos perfumes (a soma das flagrâncias das mais belas mulheres do mundo) pode resultar em uma série de assassinatos. O anseio pela experiência do sublime e do espiritual pode se converter no seu oposto: a morte e o horror.

“Perfume: a história de um assassino” é um filme baseado no livro "Perfume" de Patrick Süskind de 1985. Vendeu mais de 15 milhões de cópias e foi traduzido para quarenta línguas. Süskind acreditava que somente dois diretores de cinema poderiam fazer justiça ao seu livro: Stanley Kubrick e Milos Forman. Mas o livro foi considerado inadaptável para a linguagem cinematográfica. No depoimento do roteirista do filme Bernd Eichinger: “o protagonista da estória não se expressa. Um escritor pode usar a narrativa para compensar isso; mas não é possível em um filme. O espectador só pode ter algum sentimento por um personagem se ele fala.”


Isso porque o protagonista (Jean-Baptiste Grenouille) é a própria encarnação do Absoluto no sentido metafísico.



Jean-Baptiste nasceu com um poder espacial: o sentido do olfato apuradíssimo, capaz de distinguir flagrâncias as mais refinadas e etérias em meio ao caos de percepções do cotidiano. Ele tinha um olfato extremamente desenvolvido, o que lhe permitia reconhecer os odores mais imperceptíveis. Conseguia cheirá–los por mais longe que estivessem e armazenava–os todos em sua memória, também excepcional para relembrar aromas. Nascido em um fétido mercado de peixes de Paris e jogado pela mãe, ainda recém-nascido, no meio de vísceras e escamas apodrecidas, o poder do protagonista é dotado de um simbolismo: a necessidade da transcendência do humano em meio ao caos disforme da matéria bruta.

quarta-feira, setembro 21, 2011

Um Fantasma Ronda a Europa no profético “Songs from the Second Floor”

Embora ambientado na ansiedade coletiva frente à proximidade do “bug do milênio” do ano 2000, "Songs From The Second Floor" do sueco Roy Andersson não perdeu nada da sua atualidade e relevância. No filme, o colapso financeiro e a crise espiritual são os dois lados de um mesmo movimento marcado ao mesmo tempo pela fé e angústia diante de instituições econômicas e religiosas que não funcionam. Tudo narrado com muito humor negro e "non sense".


Quando pensamos na Suécia ou nos países escandinavos lembramos “daquele lugar com chocolate” ou de uma sociedade economicamente justa e com um louvável senso de igualdade. Mas desde os atentados terroristas impetrados por um jovem noruegues direitista, passamos a prestar a atenção para o “dark side” da cultura nórdica tal como o forte movimento Death e Black Metal, o latente espírito Viking rodeando a cultura jovem, e o existencialismo cristão do filósofo dinamarquês Kierkegaard que mescla a fé com a angústia (muito presente nos filmes do sueco Ingmar Bergman, por exemplo).

"Songs from the Second Floor" (Prêmio do Juri no Festival de Cannes de 2000) é uma comédia com forte humor negro e “non sense” que aponta para esse lado sombrio. Dirigido e escrito pelo sueco Roy Andersson, o filme é uma surpreendente colagem de referências estéticas tais como “Fargo” dos irmãos Coen, “Playtime” de Jacques Tati, os ambientes sombriamente cleans de Kubrick, as pinturas de Edward Hooper (incluindo a versão ao inverso da sua obra-prima “Notívagos”, como se fosse vista de dentro para fora) e o humor “non sense” do grupo inglês Monty Phyton.

Com esse filme Andersson iniciou uma trilogia, cuja continuação foi “Vocês, os Vivos” (2007) e uma terceira continuidade esperada para 2013.

A narrativa é composta por uma série de “sketches” onde a câmera numa se movimenta. Andersson pretende que o espectador mantenha uma relação intensiva com os planos, assim como quando observamos um quadro em um museu (daí as constantes alusões a telas do pintor norte-americano Edward Hooper). As vinhetas são a princípio fragilmente interligadas, mas, aos poucos, começamos a perceber certas recorrências como um enorme engarrafamento sem fim (várias vezes os personagens perguntam “como sair daqui?” ou “onde estou?”) onde ninguém consegue chegar a lugar algum e a referência constante à ideia de que a vida se resume “a comprar algo que possa ser vendido com um zero extra.”

As estórias são compostas por “perdedores”, em sua maioria corretores de bolsa e empresários que testemunham assombrados a ruína da sociedade, quadro a quadro. Ah!... e também um mágico incompetente que tenta serrar um voluntário ao meio e acaba quase partindo-o!

sábado, setembro 10, 2011

Filme "2012": Uma Odisséia New Age

A reccorrência atual de filmes-catástrofes aponta para uma necessidade ideológica que Hollywood tenta dar conta: com a perda da legitimidade espiritual das principais religiões monoteístas, surge a necessidade de uma nova teologia, dessa vez ecumênica: a New Age. Só falta criar uma nova Escatologia: o apocalipse, seja ele ecológico ou galático.


Perguntado sobre a sua relação recorrente com o tema do fim do mundo, o diretor Roland Emmerich respondeu: “é um caso de amor”.

Diretor do filme “2012” e de outros filmes catástrofes como “Independence Day” (1996) e “O Dia Depois de Amanhã” (2004), Emmerich afirmou que o projeto do filme “2012” começou com uma ideia do dilúvio global ao fazer uma releitura do drama bíblico da Arca de Noé. Conta que assim como em “Independence Day” onde o mito da Área 51 foi amarrado à trama para dar “mais credibilidade”, da mesma forma foi com a suposta profecia do final do mundo em 2012 previsto pelo calendário Maia, para dar mais verossimilhança ao apocalipse do filme.

“Quando você vai ao site da Amazon encontra uma centena de livros sobre as profecias de 2012. É incrível. Encomendei os primeiros seis ou sete livros. Todo mundo conta uma história diferente!”, falou Emmerich entre gargalhadas (“Roland Emmerich interview”, 2012 in Movies OnLine).

De fato, graças ao sucesso comercial e de público do filme “2012” (arrecadou 225 milhões de dólares nos primeiros cinco dias), finalmente a chamada New Age desse século (“Nova Era” - movimento espiritual buscando a fusão Oriente/Ocidente ao mesclar auto-ajuda, psicologia motivacional, parapsicologia, esoterismo e física quântica) obteve o seu cenário apocalíptico. Ou, em termos teológicos, a sua Escatologia. Agora a New Age pode se colocar orgulhosamente ao lado de cristãos, muçulmanos, judeus e até mesmo dos secularistas, pois, finalmente, possui a sua própria versão do Apocalipse.

Diversas seitas cristãs têm o seu apocalipse fundamentado nas profecias do apóstolo João em torno dos Quatro Cavaleiros (Conquista, Guerra, Fome e Morte); radicais islâmicos ainda estão à espera do décimo segundo Imam; secularistas fracassaram com a bomba do Y2K (o chamado “bug” do milênio) que não explodiu em 2000, mas, agora, têm a bomba das alterações climáticas de Al Gore (o “aquecimento global”).

sexta-feira, maio 06, 2011

Os Pontos-chave do Gnosticismo para iniciantes

Um universo criado por poderes inferiores que confina os seres humanos através do sono e da ignorância. Tais poderes têm um propósito principal: aprisionar as partículas de luz presentes nos seres humanos para, dessa maneira, perpetuar o esquecimento da nossa verdadeira origem e morada. Conheça alguns pontos-chave da filosofia gnóstica.
Transcrevemos abaixo texto postado no blog Aeon Byte Gnostic Radio Show (veja o link para esse blog na nossa lista de blogs recomendados) que, de forma feliz e suscinta, resume os pontos-chave do Gnosticismo. Um ótimo texto introdutório para aqueles que desejam dar os primeiros passos para as discussões contidas nesse blog "Cinema Secreto: Cinegnose"

segunda-feira, janeiro 24, 2011

Cristo Salva? Não, Cristo Funciona! A Fé Pragmática no filme "O Paraíso é Logo Ali"

Quem assiste ao filme “O Paraíso é Logo Ali” (Henry Poole is Here, 2008) pensa estar diante de um filme com tema espiritual ou religioso. Nem uma coisa nem outra. Embora estejam presentes elementos como a imagem de Cristo, fé, milagres e um padre, o filme é uma abordagem tragicômica sobre o tema da esperança. Dessa forma, esse filme é um flagrante exemplo de como roteiristas de Hollywood trabalham com elementos religiosos e espirituais: os convertem em cenários ou signos que evocam a vida espiritual, quando na verdade o filme trata da vida interior – a fé convertida em pensamento positivo. É a influência da filosofia do Pragmatismo americano ao converter o espiritual e o religioso ao “inspirador” e “motivacional”. A fé em Cristo não salva. Ela apenas funciona.

Henry Poole (Luke Wilson) é o protagonista do filme. Ele é um homem desiludido que tenta se isolar em uma casa no subúrbio degradado na periferia de Los Angeles. Desenganado por um médico, Poole acredita que morrerá em breve. Tudo o que ele quer é se isolar, acumulando várias garrafas de vodka e muitos sacos de salgadinhos, melancolicamente à espera da morte. Mas, para o seu incômodo, os vizinhos se recusam a deixá-lo sozinho.

segunda-feira, dezembro 13, 2010

"Poder Além da Vida": Quando a Gnose se transforma em Auto-Ajuda


"Poder Além da Vida" (Peaceful Warrior, 2006), baseado num best-seller da área de Auto-Ajuda, é uma oportunidade didática para estabelecer as diferenças entre Gnose e Auto-Conhecimento. Se toda ideologia tem o seu momento de verdade, a atitude gnóstica presente em alguns conceitos da Auto-Ajuda (como, por exemplo, a certeza de que tudo que precisamos já está dentro de nós) demonstra o momento de verdade desse ideário, que depois se perde no esforço de adaptar à força o indivíduo à realidade das instituições e corporações.

“Poder Além da Vida” passaria despercebido por este blog se o filme não fosse uma ótima e didática oportunidade de estabelecer uma distinção entre Gnose e Auto-conhecimento. Dos filmes sobre estórias de desafios superados e lições de vida, este filme está acima da média por apresentar, na primeira metade da narrativa, sérios elementos sobre Gnose e Gnosticismo. Porém, da metade até o final a narrativa desmorona para o

domingo, outubro 17, 2010

Uma "teologização" do Espiritismo no filme "Nosso Lar"

Se aspectos da divisão do trabalho na produção e o meio de distribuição e produção influenciam a estética e conteúdo do filme, então "Nosso Lar" é um bom exemplo. Para adequar o livro original às exigências internacionalizadas de produção e distribuição, "Nosso Lar" teologiza o Espiritismo e o enquadra dentro de um "ecumenismo pós-moderno" da ideologia da nova ordem mundial globalizada.

Muito se discute nos estudos acadêmicos sobre cinema como o meio produtor dos filmes (grupo de autores, técnicos, colaboradores da criação) ou os aspectos socioeconômicos (filme de produção independente ou não, aspectos de distribuição etc.) influenciam ou condicionam os conteúdos das produções.

O que mais vem chamando a atenção na área das pesquisas cinematográficas nas últimas décadas são as consequências da crescente internacionalização e globalização da divisão do trabalho da produção cinematográfica.

quinta-feira, julho 22, 2010

"Bezerra de Menezes" surpreende ao romper com o Ciclo Vicioso do Sagrado e do Religioso na Mídia


"Bezerra de Menezes - Diário de um Espírito" (2008), produção cearense de Glauber Filho e Joe Pimentel, surpreende por ter sido um sucesso de público, mesmo distoando do chamado "padrão Globo Filmes". Em consequência o filme conseguiu romper com o ciclo vicioso onde, em nome do chamado "grande público", traduz-se temas do espiritismo e da religiosidade dentro dos clichês do ecumenismo da Auto-ajuda.  

Depois de assistir ao filme “Bezerra de Menezes – Diário de um Espírito” é impossível não ser tentado a fazer uma comparação com o filme “Chico Xavier” (2010). Primeiro vejamos as semelhanças: ambos os filmes tratam o tema Espiritismo e acabaram de tornando sucesso de público. E as semelhanças param por aí.

São dois filmes com o tema Espiritismo, mas com estéticas, condições de produção e, acima de tudo, diferenças brutais no tratamento do tema da religiosidade, sagrado e transcendência.


Para começar, o filme “Bezerra de Menezes” foi muito mal recebido pela crítica. A produção cearense de Glauber Filho e José Pimentel foi criticada por ter um “roteiro tosco”, narrativa “verborrágica”, de possuir uma estética que lembrava “as novelas da TV Bandeirantes nos anos 80”, de não “cativar” ou produzir “identificação” com o espectador e de simplesmente ignorar as recentes técnicas cinematográficas de edição, decupagem e montagem dos últimos 40 anos etc.

Ao contrário, "Chico Xavier" se vale plenamente desse apuro técnico, com uma narrativa “esperta”, clipada, com movimentos de grua, travellings e narrativa de criar suspense e identificação. Como discutimos em postagem anterior, a opção estética por um “padrão Globo de qualidade” (produção, atores e estética) determinou uma abordagem do fenômeno espírita de forma genérica e abstrata para atingir um grande público (fossem espíritas, ateus ou católicos). O resultado foi a redução da religiosidade e do sagrado ao mínimo denominador comum da religiosidade midiática: o ecumenismo pós-moderno, ou seja, uma religiosidade traçada pelo ideário da auto-ajuda e do autoconhecimento, aplicável a qualquer credo ou público.

Muito diferente disso, “Bezerra de Menezes” mantém a dignidade da doutrina espírita. Aborda os temas da reforma íntima e do afinco de Bezerra de Menezes na luta interior pela conversão ao Espiritismo sem despencar nos clichês do otimismo empreendedor da auto-ajuda. Pelo contrário, aborda conceitos mais especializados à doutrina como Lei de Ação e Reação, Animismo, concepção teológica do Kardecismo etc., particularizando a religiosidade Espírita, evitando cair no ecumenismo pós-moderno e generalizante de “Chico Xavier”. E, apesar dessa particularização, marcando as diferenças teológicas e doutrinárias do Espiritismo diante de outras formas de religiosidade, mesmo assim o filme foi um sucesso de público (Sim, há salvação fora do “padrão Globo de qualidade”!).

segunda-feira, julho 19, 2010

Iconolatria e Ecumenismo Pós-Moderno em "Chico Xavier"


Mais do que um filme que evita tratar o tema Espiritismo para um nicho de público especializado, "Chico Xavier" de Daniel Filho apresenta um sintoma do destino da religisiosidade e do sagrado na atualidade. Ao tratar o tema de forma comercial, para o grande público (ateus, católicos ou espíritas), reduz o Espiritismo ao mínimo denominador comum de toda religiosidade na indústria do entretenimento: iconolatria e um, por assim dizer, ecumenismo pós-moderno.

Depois da comédia de costumes, os olhos do cinema de massa do chamado período de “retomada” do cinema brasileiro volta-se para o Espiritismo e religiosidade. Depois do sucesso de “Bezerra de Menezes – Diário de um Espírito” de Glauber Filho e José Pimentel, Daniel Filho (no esteio de sucessos de bilheterias como “Se Eu Fosse Você”) explora esse recente filão temático do cinema brasileiro.

A primeira coisa que chama a atenção no filme “Chico Xavier” é o apuro técnico com muitos travellings e movimentos de grua com câmera, a decupagem “clipada” e inquieta, a narrativa marcada por sucessivos flash backs (o eixo da narrativa – o “tempo presente” – é a noite da histórica participação do protagonista no Programa “Pinga Fogo” da TV Tupi em 1971 que, de uma hora programada, acabou se estendendo para três). O resultado visual é a da fluidez e suavidade, ainda evidenciado na escolha da trilha com músicas atonais de Egberto Gismonti. Somada ao cast de atores da TV Globo, temos um filme com o chamado “padrão Globo de qualidade” em que a linguagem cinematográfica é absorvida pela televisiva: profusão de planos médios e fechados, evitar contrastes fortes e a fotografia em tons pastéis e muito iluminado. E, principalmente, a personalização da narrativa, sublinhada pelo predomínio dos primeiros planos.

É aqui que reside no filme Chico Xavier o sintoma de como a religiosidade e o sagrado são abordados na indústria do entretenimento: na iconificação do sagrado, e na dispersão da religiosidade numa espécie de, por assim dizer, “ecumenismo pós-moderno” onde o sentimento religioso e a filosofia doutrinária são retiradas do contexto original para ser filtrado pelo ideário do auto-conhecimento e da auto-ajuda.

Além disso, dois fatores adicionais devem ser considerados para entendermos a visão do espiritismo e da religiosidade passada pelo filme: o ateísmo do diretor Daniel Filho e o agnosticismo do ator Nelson Xavier (que representou Chico Xavier na velhice). Somada a proposta de um filme para todos os públicos, temos como resultado o seguinte: em vez de colocar em primeiro plano o espiritismo, o filme posiciona Chico Xavier como uma grande personalidade brasileira, que sofreu abusos de uma madrinha malvada e lutou para sobreviver à descrença, deixando um legado de paz e conforto para famílias que perderam entes queridos.

Uma “lição de vida” que representa o pragmatismo que é a base de todo ideário da auto-ajuda: pouco importa se Deus existe ou não. Se acreditar Nele lhe trás felicidade, então Ele existe. O filme filtra a vida de Chico Xavier pelo ideário da auto-ajuda ao reduzir toda doutrina e filosofia a conservadoras lições de vida que, no final, justificam a crueza do cotidiano. Mais do que estratégia comercial para buscar grandes bilheterias, é um sintoma do destino do sagrado e da religiosidade na indústria do entretenimento.

“Disciplina, Disciplina, Disciplina!”

Nas relações do indivíduo com a experiência do sagrado (do indivíduo com o abstrato ou o Todo), a iconolatria (adoração de imagens, estátuas etc.) é o aspecto regressivo da religiosidade. Ao reduzir a expressão da religiosidade a um ícone, passamos a ter uma relação fetichista com a imagem, reduzindo toda a expressividade ou doutrina a um personagem ou entidade aparentemente física e tangível.


Por exemplo, ao invés de entendermos o evangelho idolatramos compulsivamente a figura de Cristo na Cruz.

Indo para outro extremo, da mesma forma, toda a filosofia do comunismo é reduzida à idolatria da imagem de Che Guevara. O resultado da idolatria é a massificação do ícone: pessoas colocam aplicam a imagem de Che Guevara em camisas, pára-brisas de carros e baús de motos sem jamais terem lido uma linha sobre suas idéias. Apenas sabem que Che foi “um cara que lutou pelo que acreditava, assim como eu!”.

Esse mesmo processo de iconificação encontramos no filme “Chico Xavier”. Duas frases, uma dita pelo personagem Chico Xavier e outra pelo seu guia espiritual Emannuel (frases retiradas de contextos doutrinários e filosóficos da literatura espírita) demonstram isso: “Ninguém pode voltar atrás e fazer um novo começo, mas qualquer um pode recomeçar e fazer um novo fim”, diz Chico Xavier; e “Disciplina, Disciplina, Disciplina!”, os três mandamentos proferidos por Emannuel para orientar a missão que Chico Xavier assumiria na sua vida.

Dessa forma o protagonista é transformado no campeão do ascetismo, da ética marcial da autodisciplina e da renúncia. A doutrina e filosofia espírita é reduzida, dessa maneira, ao mínimo denominador comum de toda a religiosidade. O sentido particular dessas frases é eliminado em nome de uma moral ecumênica de auto-ajuda: lute, pense positivo, acredite em você mesmo, seja forte e lute pelos seus ideais.

Teologia Secularizada em Chico Xavier

O filme coloca em confronto três personagens: os padres católicos, os ateus e os espíritas. Com isso, o filme contempla todos os públicos ao expor todos os pontos de vista em relação ao fenômeno mediúnico: Fraude? Simples manifestação do Demônio? Prova da existência da vida após a morte? Todos os pontos de vista são pragmaticamente sintetizados numa espécie de ecumenismo pós-moderno: não importa a crença, filosofia, doutrina ou ponto de vista. Todos devem se curvar aos fatos da vida onde, acima de tudo, rege a disciplina, o ascetismo e crer em si mesmo.

Como um ícone, Chico Xavier é transformado em “lição de vida” para todos: ateus, católicos e espíritas. Esse é o novo ecumenismo, aquele que reduz ou neutraliza a experiência do sagrado e da religiosidade à teologia secularizada da Auto-ajuda onde, tal como na Teologia Positiva, o indivíduo é liquidado em nome da Totalidade e da crueza da vida.

Ficha Técnica:
  • Diretor: Daniel Filho
  • Elenco: Nelson Xavier, Angelo Antonio, Tony Ramos, Letícia Sabatella
  • Gênero: Drama
  • Duração: 124 min
  • Ano: 2010
  • Distribuidora: Sony Pictures

sexta-feira, junho 25, 2010

O Cadáver da Teologia e o Resumo Recusado pelo Encontro Científico

Nessa semana, voltando de bicicleta após mais uma manhã de aulas na Universidade Anhembi Morumbi (vou de bicicleta dar aulas na Universidade todas as manhãs) e pensando na próxima pauta para esse humilde Blog (sim! Meus melhores insights e idéias ocorrem entre as pedaladas), veio à lembrança um resumo expandido de um artigo recusado que fora submetido a um encontro científico.

Esse resumo expandido foi enviado por mim no ano passado para o Terceiro Encontro ESPM de Comunicação e Marketing, realizado na Escola Superior de Propaganda e Marketing aqui de São Paulo. O tema geral era “Comunicação e Consumo na Sociedade de Acesso”. O resumo submetido ao Encontro intitulava-se “Cinegnose: Imaginário Cinematográfico e a desmaterialização econômica e tecnológica global” (logo abaixo o leitor poderá ler esse resumo)

Entre alguns argumentos de ordem metodológica que justificavam a recusa, um chamou-me a atenção: o texto submetido ao Encontro era muito “místico”! Logo pensei: É! ... O tema “gnosticismo e cultura” é místico demais para um evento “científico”.

É curioso o destino que a Teologia e o “misticismo” tiveram na história do pensamento ocidental. A Teologia, a primeira das ciências, que possuía o maior estatuto, o pai poderoso das origens da Universidade, com o processo de desenvolvimento do racionalismo foi sistematicamente atacada, desacreditada e marginalizada. Sendo a universidade laica, as ciência humanas tornaram-se também laicas e a Teologia, religiosa.

Mas, por meio da Metafísica moderna, a Teologia secretamente secularizou-se. Sem saber, ainda as ciências humanas nutrem-se dos pedaços do cadáver esquartejado da Teologia. Ainda mais nesse campo da Publicidade e do Marketing, ciências sociais aplicadas, onde se busca desesperadamente racionalizar ou dar bases “científicas” a processos puramente místicos, carismáticos ou espirituais: vender sonhos, explorar motivações, narrar temas arquetípicos. Desde há muito tempo quando o consumo se desprendeu do valor de uso, o consumo é basicamente feitiço e fantasia.

Tentando dar um estatuto de ciência, erradicam-se temas “místicos” que partam de categorias do próprio campo teológico ou metafísico. O “místico” das ciências humanas (principalmente as aplicadas) deve ser denegado para, mais tarde ressurgir como sintoma: a obsessão pela cientifização para justificar o status laico e racional de uma área que, certamente, é constituída pelos novos padres, monges e sacerdotes da nova Teologia pós-moderna, criadores de liturgias paras os novos templos chamados de “Shopping Centers”. A homilia dessa nova liturgia é o texto publicitário.

Abaixo, o texto “místico” recusado:



CINEGNOSE
Imaginário cinematográfico e a desmaterialização
econômica e tecnológica global

Wilson Roberto Vieira Ferreira

RESUMO EXPANDIDO


Nos últimos vinte e cinco anos, uma série de filmes do mainstream hollywoodiano vem extraindo imagens e idéias de antigas correntes filosóficas, religiosas e culturais conhecidas como gnósticas: Vanilla Sky (2001), eXistenZ (1999), Matrix (1999), Cidade das Sombras (Dark City, 1998), Show de Truman (Truman Show (1998), A Vida em Preto e Branco (Pleasantville, 1998), Veludo Azul (Blue Velvet, 1986), Coração Satânico (Angel Heart, 1987), Dead Man (1995), Amnésia (Memento,2000) , O Jogo (The Game, 1997).


Neste pequeno grupo de filmes citados há preocupações básicas que os unem: (a) o tema do colapso da distinção entre aparência e realidade provocado tanto pelas recentes tecnologias quanto pela condição humana; (b) instabilidades naquilo que conhecemos como realidade e o seu multifacetamento em instâncias supra e para-reais; (c) experiências da perda da memória e a sua reminiscência como fator de recuperação da identidade.

Este texto procurará discutir exatamente esta conexão entre gnosticismo e cinema, mas num aspecto particular, a saber: como os filmes que abordam temas e símbolos gnósticos vêm na última década insistindo no tema do artificialismo da realidade. Não a realidade ideológica, política ou econômica, mas no seu aspecto último, metafísico ou ontológico: a realidade tal como a entendemos existe? Por que essa espécie de guinada metafísica na temática da produção hollywoodiana recente? A forma como esses temas são abordados nos aspectos de narrativa, iconografia e construção de personagens parecem apontar para a influência dos temas e narrativas do gnosticismo histórico e dos seus ressurgimentos no campo da literatura e no imaginário das novas tecnologias (gnosticismo tecnológico).

Se há uma conexão entre cinema e sociedade, ou seja, se o filme pode ser considerado um repositório do imaginário social contemporâneo e se sabemos que este imaginário atual é fortemente marcado pelo desenvolvimento tecnológico computacional e a crescente liquidez da financeirização global, é a partir daí que devemos analisar essa produção fílmica. Esta crescente recorrência de elementos gnósticos no cinema hollywoodiano corre paralelo à euforia da globalização e o fortalecimento de seus dois pilares: de um lado, o desenvolvimento da microinformática e, a partir do bombástico lançamento do Windows 95, o crescimento especulativo das potencialidades da Internet e das tecnologias computacionais; e, do outro, a extraordinária aceleração da expansão do capital por meio da financeirização do sistema econômico global.

Esses dois processos são interdependentes, pois o desenvolvimento da microinformática e da nanotecnologia surge na hora certa quando a globalização do capitalismo passou a exigir uma pilotagem mais complexa: dominar a complexidade das interconexões simultâneas, o cálculo probabilístico das transações financeiras e da equalização das caóticas tendências nas jogadas em bolsas de valores e na análise dos tensos cenários econômicos. As tecnologias da informação permitem a integração complexa das praças financeiras de todo o mundo em tempo real.

Em ambos os movimentos que fortalecem a ordem mundial da Globalização encontramos o caráter constitutivo da desmaterialização, isto é, o primado do imaterial sobre o físico, do virtual sobre o real e assim por diante. No plano da ciência e tecnologia, diversos autores detectaram e mapearam a semente do misticismo nas comunidades científicas, sejam acadêmicos ou tecnófilos: a princípio entre físicos, cosmólogos e biólogos para, em seguida, alastrar-se por outras áreas, principalmente através da Cibernética e Teoria da Informação. Diversos pesquisadores vão caracterizar este imaginário ciberutópico com o conceito de “gnosticismo tecnológico”.

O gnosticismo histórico (conjunto de seitas sincréticas combinando idéias cristãs, neoplatonismo e as religiões de mistérios pagãs que florescem nos primeiros tempos da difusão do Cristianismo) caracteriza-se pelo horror ao orgânico e a uma aversão ao natural. Tais elementos seriam inimigos do espírito na sua busca por iluminação. A tecnociência atual se aproximaria de tal filosofia ao propor a superação dos parâmetros básicos da condição humana: finitude, contingência, mortalidade, corporalidade, animalidade e limitação existencial.

Essas tecnologias rompem com o antigo paradigma moderno, ao criar uma ambiência tecnológica computacional onde o sujeito humano é desnaturalizado: da tecnologia como extensões do homem ao momento atual de ruptura onde a tecnologia virtualiza o humano. O resultante é um mundo viscoso, menos estruturado, flutuante que pode ser sintetizado em três palavras-chave: destemporalização, destotalização e desreferencialização. Ao mesmo tempo, no plano econômico, temos a interconexão de economias por um novo modo comandado pelas novíssimas tecnologias integradoras como a microinformática, mídia, marketing e publicidade transnacional. Estas tecnologias vão sustentar o chamado “turbo-capitalismo”: a extraordinária aceleração da expansão do capital por meio da financeirização do sistema econômico global.

Esta "desmaterialização" da economia corresponde ao fato de, cada vez menos, a fonte do lucro ou da riqueza ter sua origem no circuito da produção. Deixa de ser visivelmente localizável, para encontrar formas flexíveis de acumulação: a princípio em novos vínculos trabalhistas, como a terceirização, porém, quanto mais o capital migra da produção para a esfera da circulação (financeira, midiática, etc.), mais se impõe uma nova forma de riqueza "fora do chão". É a base da constituição de um novo imaginário: redes descentralizadas, como a Internet, criando ciber-identidades pulsantes e variadas, assim como a moda efêmera e superficial traria a liberdade a um indivíduo que não mais se prenderia a certezas eternas.

Um indivíduo pós-moderno radiante, desenvolto, integrado à tecnologia (que, afinal, é a promotora desta verdadeira emancipação das identidades fixas), identidade móvel, sedutor, assumindo múltiplas personas em blogs e chats, sentindo as novas pulsações e tendências. Uma identidade tão líquida quanto os fluxos financeiros globais. Mas um imaginário paradoxal, mesclado com elementos místicos ou gnósticos, tal como representado pelo imaginário cinematográfico hollywoodiano recente. Este imaginário refletiria a própria imaterialidade da percepção do real e da identidade originada pelos processos que constituíram a Globalização?

terça-feira, fevereiro 16, 2010

Perfume: o assassinato do indivíduo pelo Sagrado

Perfume: a História de um Assassino (Das Parfum, 2006) supera as dificuldades de adaptação do livro à linguagem cinematográfica e faz uma fábula da condição do indivíduo diante de uma suposta experiência do Sagrado que liquida o individual em nome de um Absoluto.

“Perfume: a história de um assassino” é um filme baseado no livro Perfume de Patrick Süskind de 1985. Vendeu mais de 15 milhões de cópias e foi traduzido para quarenta línguas. Süskind acreditava que somente dois diretores de cinema poderiam fazer justiça a seu filme: Stanley Kubrick e Milos Forman. Mas o livro foi considerado inadaptável para a linguagem cinematográfica. No depoimento do roteirista do filme Bernd Eichinger: “o protagonista da estória não se expressa. Um escritor pode usar a narrativa para compensar isso; mas não é possível em um filme. O espectador só pode ter algum sentimento por um personagem se ele fala.”

Isso porque o protagonista (Jean-Baptiste Grenouille) é a própria encarnação do Absoluto no sentido metafísico.

Jean-Baptiste nasceu com um poder espacial: o sentido do olfato apuradíssimo, capaz de distinguir flagrâncias as mais refinadas e etérias em meio ao caos de percepções do cotidiano. Ele tinha um olfato extremamente desenvolvido, o que lhe permitia reconhecer os odores mais imperceptíveis. Conseguia cheirá–los por mais longe que estivessem e armazenava–os todos em sua memória, também excepcional para relembrar aromas. Nascido em um fétido mercado de peixes de Paris e jogado pela mãe, ainda recém-nascido, no meio de vísceras e escamas apodrecidas, o poder do protagonista é dotado de um simbolismo: a necessidade da transcendência do humano em meio ao caos disforme da matéria bruta.

Embora o filme tenha a alquimia como o pano de fundo dos processos de destilação para as descobertas das essências dos perfumes, não parece ser esse o tema do filme. A Alquimia busca não apenas transcender a matéria, mas redimi-la. Buscar no material a quintessência que refina o espírito. Ao contrário, a ambição de Jean-Baptiste é buscar preservar a flagrância para além da destilação. Aprender a preservar a flagrância para nunca mais perder tal sublime beleza. Ganancioso, seu objetivo era o de possuir tudo o que o mundo lhe pudesse oferecer no que diz respeito a odores.

Para ele, não importava os indivíduos, reduzidos a meros recipientes de algo mais refinado: a flagrância. De pesquisador torna-se um assassino em série, obcecado pela busca da flagrância que seria a síntese sublime e espiritual de todos os odores das mais belas mulheres do mundo. Ao contrário da Alquimia, sua experiência de Sagrado advém de uma Teologia Positiva. Jean-Baptiste está mais próximo da Ciência moderna e do racionalismo do que do misticismo alquímico. O assassinato ritual das vítimas corresponde à liquidação do indivíduo ou da parte pela Totalidade no racionalismo. O sacrifício de meros espécimes para se confirmar a Verdade que está no Todo. Em síntese: Jean-Baptiste Grenouille é o arauto dos novos tempos que estão por vir, os tempos atuais do racionalismo científico onde o indivíduo é esvaziado de sentido para se encaixar dentro de uma ordem totalitária.

A morte do perfumeiro Baldinni (Dustin Hoffman) é simbólica no filme: representa o fim de uma era em que os processos alquímicos implicavam em humildade e ética, para serem superados pela fúria faustiana de Jean-Baptiste onde os fins justificam os meios.

A sequência final da execução de Jean-Baptiste é emblemática. Caminhando para o cadafalso, secretamente trazia em seu bolso o frasco com o perfume resultante da busca da sua vida: a quintessência do odor dos corpos de todas as belas mulheres. Através de um lenço, espalha a flagrância por toda a praça onde se concentrava a multidão sedenta por assistir o espetáculo da execução do assassino. Inebriados pela flagrância sagrada, todos vêem Jean-Baptiste como um anjo, clamam pela sua inocência e a praça inteira converte-se numa imensa orgia. Os planos gerais que mostram centenas de corpos nus participando da frenética orgia são simbólicos: os corpos individuais se anulam dentro de um imenso conjunto de corpos comandado pelo perfume, síntese resultante de uma série de assassinatos.

Essa opressão da parte pelo todo lembra a irônica pergunta de Baudrillard: em meio a uma orgia um homem pergunta para uma mulher “O que você vai fazer depois da orgia?”

Essa experiência de um certo tipo de Sagrado (uma concepção de Sagrado proveniente de uma Teologia Positiva como a experiência da conexão de uma parte a um Todo, negando toda e qualquer experiência individual como caminho para transcendência) poderia trazer um poder infinito para Jean-Baptiste: todos os reinos e países cairiam de joelhos diante dele, confundindo-o com um enviado de Deus e a experiência de sua flagrância como a verdadeira experiência do Sagrado.

Mas ele descobre que jamais será amado por isso. Submetido a vida inteira a uma auto-anulação, confinado a uma existência suprimida, miserável, onde seus desejos individuais nada representavam diante da ambição sagrada pela utopia dos odores, ao final manda tudo para o inferno. Retorna ao local onde nasceu (o mercado de peixes) e lá se deixa ser destroçado pela massa de mendigos: joga todo o recipiente do sagrado perfume sobre si, atraindo a fúria do extase de todos ao redor. Todos se jogam sobre ele, tentando arrancar a todo custo um pouco da flagrância sagrada. Final simbólico: diante do vazio da abstração dessa experiência sagrada (não há amor ou concreticidade, apenas a anonimata Totalidade) a metafísica entra em queda – o Todo é absorvido pelas partes, a entidade abstrata é destruída pela concreção. E nada mais simbólico do que tudo esse desfecho acontecer num fétido mercado de peixes: a vingança do físico, do vital contra uma totalidade abstrata.

O verdadeiro tema do filme não é a utopia dos odores ou a dimensão sagrada por trás da sensibilidade olfativa. Apesar de Jean-Baptiste ser movido por um talento instintivo e selvagem, a ambição fáustica pelo poder faz ele entrar no lado escuro do movimento da razão e do conceito: quanto mais tenta apreender o objeto mais o destrói. De Marquês de Sade a Adorno e Horkheimer essa é a Dialética do Esclarecimento: o movimento cada vez mais abstrato do conceito conduz à frieza progressiva do sujeito que vê nos objetos simples espécimes que devem comprovar uma verdade universal. A liquidação do objeto é o sacrifício necessário dentro desse ritual da adoração de uma entidade sagrada secularizada em conhecimento abstrato.

Esse é o verdadeiro tema do filme “Perfume”: no século XVIII Jean-Baptiste é o arauto dos novos tempos – a dialética do esclarecimento presentes tanto na religião como na ciência.

Ficha Técnica:

  • Direção: Tom Tykwer.
  • Roteiro: Andrew Birkin, Tom Tykwer, Bernd Eichinger.
  • Produção: Bernd Eichinger.
  • Edição: Alexander Berner.
  • Música: Johnny Klimek, Reinhold Heil e Tom Tykwer.
  • Elenco: Alan Rickman (Antoine Richis), Ben Whishaw (Jean-Baptiste Grenouille), Dustin Hoffman (Giuseppe Baldini), John Hurt (Narrador), Karoline Herfurth, Michael Smiley (Porter), Perry Millward (Marcel), Rachel Hurd-Wood (Laura Richis), Ramón Pujol (Lucien).
  • Distribuidora: Paris Filmes
  • Ano: 2006
  • País: Alemanha, França, Espanha, EUA.

Trailer do filme Perfume: a História de um Assassino

quinta-feira, fevereiro 04, 2010

"Somos Todos Um": o totalitarismo por trás do humanismo New Age

Somos Todos Um (One: The Movie, 2005) sob a aparência humanista do Espiritualismo, New Age e Auto-Conhecimento perpetua a liquidação do indivíduo lá onde pretende acabar com todos os dualismos.
“Se o sentido da vida existisse não estaríamos formulando essa pergunta”(T. Adorno)
“Às 6:45 A.M. em 13 de Abril de 2002 um pai de meia idade de três filhos do centro-oeste dos Estados Unidos desperta de um sono profundo com uma estranha idéia de fazer um filme independente explorando a questão do sentido da vida”. Assim inicia o documentário “Somos Todos Um”. Com o apoio da esposa Diane e a e a participação de alguns amigos, Ward Powers organizou um questionário com "as maiores perguntas relativas à vida, a todo tipo de pessoas" (perguntas como “para onde vamos quando morremos?”, Por que estamos aqui? etc.) com o grandioso objetivo de demonstrar a "unicidade da humanidade".

O que começou como brincadeira logo ganhou força, com a participação de líderes religiosos, arquitetos sociais, místicos, monges, ateus, nobres e filósofos, representando uma gama completa de tradições espirituais, num amálgama de opiniões que se fundiam às do povo nas ruas. Todos receberam 20 perguntas sobre questões profundas como o sentido da vida, o conceito de Deus, o motivo do sofrimento e a justificativa da guerra.

A questão que inicia e sustenta todo o documentário (qual o sentido da vida) lembra a fala de Theodor Adorno: “Se o sentido da vida existisse não estaríamos formulando essa pergunta”. Essa resposta de Adorno no seu livro Dialética Negativa é mais do que uma afirmação irônica ou retórica. Há um sério pressuposto crítico nessa afirmação: a imanência desse discurso que pretende se perguntar sobre o sentido da existência. Isto é, essa pergunta não é “desinteressada” ou neutra, mas parte de uma ideologia historicamente determinada. A pergunta já contém em si a resposta que procura.

A questão sobre o sentido da vida parte do pressuposto de todos os discursos totalizantes e totalitários: quem formula a questão ignora o sentido da vida. Sua ignorância decorre do fato de o emissor ser um simples indivíduo, sendo que a verdade lhe escapa, pois está no TODO. Desgraçadamente pelo fato do indivíduo ser uma pequena parte, nunca apreenderá a verdade pois ela está além do particular, está na totalidade. Portanto, essa questão reproduz as velhas dualidades da Teologia, matriz tanto da Religião quando da Ciência: parte/todo, particular/universal, matéria/espírito e assim por diante.

Se a Verdade está no Todo (Absoluto, Espírito, Infinito etc.) o indivíduo só pode ser ignorante por não conseguir apreender as conexões em torno dele. O documentário “Somos Todos Um” bate exaustivamente nessa mesma tecla: a experiência individual é a fonte dos erros e conflitos (medo, egoísmo, materialismo) que impedem a paz mundial e a revelação da Unidade. O pressuposto teológico é que essa insuficiência individual decorre ou pela imersão do espírito na matéria (pecado) ou pela ignorância das conexões do todo, somente esclarecidas por um discurso “técnico” (espiritualista ou científico).

O desprezo pelo indivíduo e o potencial perigosamente totalitário pode ser percebido em frases do documentário como essa: “Qual o sentido da vida? Você começa a lembrar e começa a ver...as nebulosas do pensamento, moléculas e átomos nascendo...essa teia dourada da vida. É silencioso, é eterno, é cintilante. Você e eu não passamos de uma tapeçaria de sonhos.” 

Nessas afirmações parece haver o esforço de construir um novo paradigma de união entre Religião e Ciência que acabaria com todos os dualismos (afinal, o discurso utiliza termos científicos como “nebulosas”, “moléculas” e “átomos” ao lado de termos místicos como “eterno”, “cintilante”), mas o problema é falso. Ciência e Religião secretamente já estão unidas há muito tempo a partir da mesma matriz teológica que liquida a experiência individual como fonte de erro, insuficiência ou pecado.
O momento de verdade

Mas, parafraseando Adorno, em toda ideologia há um momento de verdade. Essa angústia pelo sentido da vida é real. Se a pergunta é formulada é porque a percepção de um sentido desapareceu ou nunca existiu. Tal angústia é um sintoma da dor e do sofrimento que essa totalidade (social, histórica ou espiritual) impõe ao indivíduo, e não o contrário – pelo anseio por uma transcendência à totalidade.

O mal-estar do indivíduo nesse mundo é desprezado por esse discurso espiritualista (na verdade uma teologia secularizada) como medos que limitam o potencial espiritual. É a mensagem de todos os vídeos de auto-ajuda ou espiritualistas: liberte-se de si mesmo e venha para o TODO. Dessa forma é descrito como se inicia uma jornada espiritual pelo padre Thomas Keating, líder do Movimento Interdenominacional para revitalizar a prática contemplativa cristã:
“O início da jornada espiritual é o reconhecimento...não apenas a informação, mas a real convicção interior..de que há uma força superior, ou Deus. Ou, para facilitar ao máximo para todos...de que há um Outro, com "O" maiúsculo. Segundo passo: tentar se tornar o Outro. Ainda com "O" maiúsculo. E finalmente, o reconhecimento de que não há Outro. Você e o Outro são um só. Sempre foram. Sempre serão.Você simplesmente acha que não é.”

À dor e sofrimento concretos nesse mundo, esse discurso oferece a racionalização e o desprezo pela percepção individual: você com sua dor não existem! Venha para o Todo e esqueça seus problemas mesquinhos!

Porém esse todo não é algo tão rarefeito ou metafísico. Tem uma identidade bem concreta: é o meio corporativo por trás da Globalização política e financeira, os principais consumidores interessados por esses tipos de vídeo, para aplicar em estratégias motivacionais em grupos de dirigentes a vendas. Tal como Deepak Chopra (entrevistado em “Somos Todos Um”): de místico e filósofo a um dos principais palestrantes motivacionais em organizações nos EUA.

Somente uma Dialética ou Teologia negativas podem se contrapor a essa teologia secularizada: fazer justiça à verdade da dor e sofrimento do indivíduo ao conseguir inverter o sentido da transcendência – não é do todo para a parte. Ao contrário, é a carne, a parte, o singular que aspiram à transcendência. Ou, como conclui emblematicamente Adorno, “ O que há de doloroso na dialética é a dor em relação a este mundo, elevada ao âmbito do conceito"

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segunda-feira, fevereiro 01, 2010

Um "Homem Sério" perdido num mundo aparentemente sem Deus

O que acontece quando Ciência e Religião falham como instrumentos de explicação ou conforto para um homem comum imerso em uma sequência de desgraças que peversamente se sincronizam? Onde falham a Ciência e a Religião ao tentar dar conta da presença do Mal no cotidiano? Esses são os temas centrais do intrigante e provocativo mais recente filme dos irmãos Coen “Um Homem Sério” cuja estréia nos cinemas brasileiros está prevista para este mês.

O protagonista do filme, Larry Gopnik, é um homem decente. Mas ele é também um homem incerto. Ele deseja ser "um homem sério", mas parece incapaz de encontrar a certeza espiritual necessária. Quanto mais ele procura esta certeza, mais evasivo ela se torna, criando uma série de situações tragicômicas.

Larry é um professor de Física que depois de receber um suborno de um aluno insatisfeito pela reprovação nas provas descobre que sua esposa infeliz faz planos de deixá-lo. Sua casa está sobrecarregada pela presença do irmão de Larry, Arthur, que, quando não escreve espécies de algoritmos em um caderno, laboriosamente drena um quisto sebáceo de seu pescoço. Os dois filhos de Gopnik são auto-absorvidos e sem inspiração, para dizer o mínimo, e Larry está sofrendo crescentes despesas por conta dos adolescentes. A saúde e carreira de Larry estão em perigo. E, no cúmulo da injustiça, Larry se vê obrigado a pagar as despesas do funeral do amante da sua esposa, falecido num acidente automobilístico.

É a história do homem moderno a procura de sentido em um universo indiferente, aparentemente ausente de Deus.

A miséria de Larry é dividida em três capítulos que correspondem às três tentativas tragicômicas de encontros com rabinos para buscar um significado divino para tudo que lhe acontece. Mas a Larry é sistematicamente negado o acesso final aos contos sem sentido que os rabinos narram como uma metáfora da inacessibilidade de uma experiência religiosa esclarecedora.

Ao mesmo tempo a Ciência de Larry (Física e Matemática) é paradoxal e frustrante. Larry informa aos alunos, após fazer em um enorme quadro negro a longa demonstração matemática do Princípio da Incerteza de Heisenberg, que a única coisa que podemos ter certeza é a incerteza.

Dybuk e o Mal


O filme faz um paralelo entre o prólogo que abre o filme (a história de um homem judeu passada a cem anos atrás que convida inadvertidamente o Mal – um Dybuk ou demônio - para entrar na sua casa) e as desventuras de Larry que por estar imerso em suas elocubrações matemáticas não consegue dar conta do progressivo desarranjo que invade sua vida (“mas eu não fiz nada”, tenta sempre justificar Larry).

Tanto a Ciência como a Religião partem de uma mesma matriz Teológica: a certeza de que a Totalidade (seja divina ou científica) é perfeita e de que o homem é a parte mais fraca, ou pelo pecado ou pela ignorância. O Mal, portanto, só pode estar presente no homem.

O que o filme dos irmãos Coen nos apresenta através de um humor negro é a falsidade das perguntas sobre o sentido da vida, o propósito ou o sentido para o cotidiano. Quanto mais o protagonista busca uma totalidade que dê sentido ao particular, mais ele se depara com a presença do Mal, isto é, com o imperfeito, o precário, o inefável, aquilo que escapa a qualquer racionalidade ou fé.

Imperfeição marcada simbolicamente na sequência em que, após uma longa demonstração matemática em um imenso quadro negro, Larry conclui que a única certeza de que dispomos é a de que tudo é incerto (a confirmação por meio do Princípio da Incerteza de Heisenberg da velha suspeita do Gnosticismo de que o Universo é corrompido nas suas origens). Ou as evasivas tragicômicas dos rabinos através de contos sem desfechos, como a analogia que o rabino Junior faz da vida com o estacionamento lotado de carros.

O protagonista não consegue contrapor a essa Teologia Positiva uma" "negatividade": procurar não a Totalidade, mas, ao contrário, encontrar a iluminação ou a experiência do Sagrado no particular, no precário, no efêmero, no cotidiano. O Sagrado não está numa suposta conexão com uma Totalidade que, repentinamente, descobriríamos em um momento místico ou de fé. A aspiração pelo Absoluto talvez encontra-se nas experiências mais banais, rotineiras e enfadonhas, como na sequência em que Larry sobe no telhado para consertar a antena (aliás, imagem emblemática do próprio pôster promocional do filme). Do alto do telhado, o protagonista, em contraste com um profundo céu azul, se detém por alguns momentos e contempla a banal beleza da vizinhança com seus prosaicos personagens e extensas áreas de grama em um típico subúrbio norte-americano. Ele parece se deter diante de uma beleza que nunca tinha dado conta. Mas uma beleza não conformista: o belo que de tão pequeno, mísero e precário somente pode aspirar a algo totalmente outro, a transcendência. Não é a Totalidade que detém o Absoluto, mas o singular que aspira ao transcendente.

Por isso a excelente epígrafe que abre o filme escrita a centenas de anos pelo rabino medieval Rashi: “Receba com simplicidade tudo o que acontecer com você”.

Ficha Técnica

Um Homem Sério (A Serious Man)
Diretor: Joel Coen, Ethan Coen
Elenco: Michael Stuhlbarg, Sari Lennick, Richard Kind, Fred Melamed, Aaron Wolff, Jessica McManus, Adam Arkin, Simon Helberg, Adam Arkin, George Wyner, Katherine Borowitz.
Produção: Joel Coen, Ethan Coen
Roteiro: Joel Coen, Ethan Coen
Fotografia: Roger Deakins
Trilha Sonora: Carter Burwell
Duração: 105 min.
Ano: 2009
País: EUA

Trailer do filme "Um Homem Sério"

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segunda-feira, janeiro 25, 2010

"Quem Somos Nós": a estupidez da Auto-Ajuda em uma teologia secularizada



O documentário “Quem Somos Nós” (What the Bleep, 2005) sob o pretenso objetivo de unir Ciência e Religião, nada mais faz do que perpetuar o pior de ambas (a liquidação do particular e do indivíduo pela Totalidade) na secularização da Teologia por meio do discurso do espiritualismo e auto-ajuda.


Se no documentário O Segredo (The Secret, 2006) tínhamos uma abordagem mais direta ou grosseira do velho tema da auto-ajuda sobre o poder da mente (com esse poder você seria capaz, por exemplo, de fazer chegar até cheques pelo correio!), pelo menos em "Quem Somos Nós" a abordagem é “filosófica” ao tomar, como ponto de partida, a discussão da união Ciência e Religião por meio da Física Quântica, Neurologia e Neurofisiologia. As perguntas clichês de uma teologia secularizada estão presentes: de onde viemos? Quem somos nós? Para onde vamos? Qual o propósito da nossa existência?... e assim por diante. Mas o ponto de chegada é o mesmo: pérolas motivacionais especialmente elaboradas para o mundo corporativo e de vendas (no final, os grandes consumidores deste tipo de vídeo para motivar equipes de vendas, gerencias e chefias), noções filosóficas e científicas fragmentadas e arbitrariamente associadas ao temas de auto-ajuda etc.

Muitos fóruns, blogs ou sites (como, por exemplo, http://gnosticteachings.org/forum/index.php?showtopic=716&mode=threaded ou http://www.religionnewsblog.com/14722) acabam se impressionando com a pretensa discussão filosófica do vídeo e acabam associando-o ao Gnosticismo, principalmente pelas críticas à religião. Puro engano, pois “Quem Somos Nós” perpetua o pior tanto da Ciência quanto da Religião: o esmagamento da importância do indivíduo diante de uma totalidade (seja natural ou divina). Ou seja, vai num sentido oposto do Gnosticismo.

Se não, vejamos. O filme parte do princípio que a cisão entre Ciência e Religião parte de uma percepção limitada do indivíduo. Os sentidos são fonte de erros porque a nossa consciência é a ínfima parte das informções que o cérebro processa (analogia do cérebro com o computador). Partindo da física quântica descobrimos que a nossa percepção cotidiana é falsa: não há matéria (grande parte do átomo é composto de vazio), objetos e eventos não estão isolados no tempo e no espaço, mas conectados entre si numa rede de interferências, da qual o Observador faz parte.

Por isso, o indivíduo é limitado por não conseguir se conectar com o “Ser Abstrato Puro”, com a “Consciência Abstrata Pura”, com o “Ser Transpersonal Único”. A consciência seria limitada por ser “um subproduto do Espírito quando entra na Matéria”. As velhas dualidades teológicas são atualizadas, até chegar a liquidação total do indivíduo: a secularização do pecado. Essa limitação do Espírito confinado na Matéria propicia a limitação da percepção e do pensamento, preso que está a esquemas viciosos (melancolia, depressão, tristeza e “negatividades” em geral). Esquemas que produzem fracasso, derrota etc.
A verdade está no Todo e jamais no indivíduo, persistentemente limitado e em queda numa nova forma de pecado: a do desconhecimento da “Consciência Abstrata Pura”. Seu pecado é o da ignorância.

O documentário não consegue superar a dualidade Ciência/Religião por estar presa a uma Teologia Positiva que, afinal, é a matriz epistemológica de ambas: o sacrifício ritual do indivíduo diante do Absoluto e o Infinito. Mas, e se esta melancolia, depressão e tristeza do indivíduo forem estados críticos de consciência contra esta Totalidade? Em outras palavras, e se for a Totalidade Natural, Divina ou Social (no final, todas a mesma coisa) a fonte do sofrimento individual?
Este é o caminho de uma Teologia Negativa ou “Herética” como fala T. Adorno: a verdade esta no particular, no indivíduo, no singular diante de uma Totalidade autoritária, origem de toda dor. Toda a literatura e videografia Espiritualista ou de Auto-ajuda nada mais faz do que atualizar este ritual cotidiano de sacrifício da parte pelo Todo.

Há uma sequência no filme Beleza Americana (American Beauty, 1999) que sintetiza essa problemática da Teologia Positiva na Auto-Ajuda. É quando Carolynn (corretora de imóveis e voraz consumidora de literatura motivacional para negócios), frustrada por não ter conseguido vencer naquele dia uma casa após uma exaustiva maratona de clientes, encosta na parede e reprime o choro e a frustração, batendo a mão no próprio rosto: “Cale-se. Pare, sua fraca, infantil!” (veja a sequência abaixo). É a repetição de um mantra dessa espiritualidade que reprime o momento de verdade contida na dor individual em nome de uma Totalidade da qual ela se origina.
Teologia Positiva como
Tecnologias do Espírito
Esta secularização teológica surge no século passado através daquilo que Lucien Sfez (Veja o livro "Crítica da Comunicação" da editora Loyola) chama de “Tecnologias do Espírito”, um discurso científico sintetizado pelos seguintes conceitos: Rede, Paradoxo, Simulação e Interação. É o modelo das ciências computacionais aplicados autoritariamente ao Espírito: indivíduo, cérebro, percepção, sentidos etc., funcionam de forma análoga aos computadores no sentido mais paradoxal e interativo.

Como nos informa “Quem Somos Nós,” a realidade não existe (tal informação confere um ar “espiritualizado” e “místico” à teologia da Auto-Ajuda). Ela nada mais é do que conceito, informação, idéias processadas pelo nosso cérebro. Se, então, isso for verdade, confere um surpreendente livre-arbítrio para o indivíduo (negado até hoje pelas religiões): a realidade é aquilo que queremos que seja, é a força do nosso pensamento (concentração, meditação). E como alcançar essa liberdade? Abandonando “vícios, medos e limitações” (os novos pecados) para, assim, entrarmos no reino da “Consciência Abstrata Pura”.
Diante desse híbrido de Ciência e Religião devemos confrontar uma Teologia Negativa que encontra na dor individual os elementos críticos da Transcendência. É a ressureição da carne: o que anseia o Absoluto não é o Espírito, mas a Carne com toda a sua dor e sofrimento impingidos pela História.
Filme Beleza Americana (American Beauty, 1999)

quinta-feira, janeiro 21, 2010

Paradoxo, Contradição e Ironia: a Teologia Negativa no Filme Gnóstico

Como expressar o indizível por meio da linguagem? Através do caráter paradoxal da linguagem mística que fere as regras da lógica e do entendimento, os textos místicos tentam exprimir a sublimidade da experiência. Na arte moderna (da literatura romântica até o cinema) a Ironia será a estratégia que dá continuidade à Teologia Negativa.

A linguagem mística com o caráter de negatividade (a Teologia Negativa) tem em Dionísio Aeropagita (entre os anos 484 e 532) o seu principal introdutor. Considerado por muitos o pai da mística ocidental, seus textos são especulações teológicas onde procura comprovar a existência de Deus pela via negativa, ou seja, por meio de paradoxais negativas infindáveis. Veja este trecho do livro chamado De Mystica Theologia:


“Elevando-nos mais alto, dizemos agora que esta causa não nem alma nem inteligência; não tem imaginação, nem expressão, nem razão nem inteligência; que ela não pode se exprimir nem conceber; que ela não tem nome, nem ordem, nem grandeza, nem pequenez, nem igualdade, nem semelhança, nem dessemelhança (...) Não é móvel nem imóvel, nem descansa. Não é luz, nem vive, nem é vida (...) Quando negamos ou afirmamos algo de coisas inferiores ‘a Causa suprema, dela mesma não afirmamos nem negamos nada, porque toda afirmação permanece mais aquém da causa única e perfeita de todas as coisas, pois toda negação permanece mais aquém da transcendência daquilo que está simplesmente despojado de tudo e se situa mais além de tudo” (AEROPAGITA, Dionysius. Ouevrea completes Du Pseudo-Denys/Aeropagite Apud: LOSSO, Eduardo Guerreiro. Teologia Negativa e Theodor Adorno-a secularização da mística na arte moderna, Tese de Doutorado, Faculdade de Letras da UFRJ, 2007.
Esta linguagem paradoxal quer comprovar que há uma experiência além da inteligência, da linguagem, dos sentidos e das emoções. Tenta-se comprovar o indizível e o inconcebível por meio do esvaziamento da sensação e do conhecimento. Dionísio introduz na tradição ocidental essa retórica de negação incondicional de todo ente ou ser somentepara afirmar que o inconcebível é a causa suprema:


“Logo, Deus não é negado, não é posto em dúvida. O que ocorre é o contrário: é a existência indubitável e inconcebível de Deus que nega todos os atributos, pois Deus é, em terminologia medieval, o ens realissimum, o que há de mais real” (LOSSO, Eduardo Guerreiro, IDEM)

Portanto, o caminho para se tentar expressar a experiência metafísica não há outro caminho senão usar e abandonar a linguagem na ânsia pelo absoluto através do paradoxo e da contradição.

Esta teologia negativa aproxima-se de uma “teologia herética”, muito próxima do gnosticismo, ao criar dissensão com a doutrina católica: enquanto Dionísio coloca que a revelação não pode ser compreendida por qualquer um (somente por meio de uma disciplina esotérica) para católicos o amor e vida moralmente correta dão condições para qualquer um encontrar Deus.

Na arte moderna, o romantismo literário do século XIX vai dar continuidade a esta tradição mística por meio da “ironia transcedental”. É através do Romantismo, nos séculos XVIII e XIX que o Gnosticismo deixa o submundo para ascender à literatura e à cultura através de nomes como William Blake, Percy Shelley, Gerard de Nerval, Baudelaire, Rimbaud. Em todos eles encontramos a redescoberta da atitude e das imagens do pensamento gnóstico. A abordagem do gnosticismo pelo Romantismo é nitidamente sincrética, associando o gnosticismo cristão com o hermético (alquimia e cabala). Figuras como Nerval e Goethe, por exemplo, beberam em fontes gnósticas, cabalistas e alquímicas. Enquanto Goethe trabalhava com complexos simbolismos iniciáticos derivados da alquimia, Nerval estudou profundamente livros de esoterismo, magia e metafísica.

A ironia surge na lacuna entre aparência e realidade, representação e presença. Pensadores do fim do século XVIII, principalmente Friedrich Schlegel, acreditavam que essa lacuna era constitutiva da natureza humana proveniente do antagonismo entre o desejo de representar o mundo e a impossibilidade de fazê-lo. O grupo de Iena (formado pelos irmãos August e Friedrich Schlegel, Novalis, entre outros) começa a teorizar sobre a ironia como um procedimento auto-reflexivo a partir da leitura de Cervantes, Shakespeare e Diderot. A moderna concepção da ironia tematiza o intervalo entre a linguagem e a experiência empírica. A ambição pela imediatez dos modernos parece ser uma procura sempre renovada de uma linguagem absoluta, pela busca de uma palavra definitiva que dê nome às coisas.

As dimensões estéticas desse tipo de ironia são muitas: a fragmentação como forma preferida de representação, isto é, como um consciente elemento de uma completude jamais alcançável; o narrador autoconsciente que expõe as próprias construções da realidade para, dessa forma, explicitar suas limitações; a mistura entre texto primário e comentário em uma mesma página; a descrição não-conclusiva de pontos de vista inconciliáveis que deixa o leitor em um limbo interpretativo; o poema que se consome em dois significados contraditórios que se co-habitam e se anulam.

O romantismo cria um anseio pelo absoluto, uma espécie de busca religiosa que, de um lado, toma seriamente as percepções fragmentárias do mundo material como forma de revelação do espírito e, do outro, toma essas mesmas percepções como formas inferioras que encobrem como um véu o invisível. A ironia transcendental do romantismo exemplifica este irônico questionamento religioso próximo da tradição gnóstica.

Ironia e Negatividade no Filme Gnóstico

Ao explorar o tema da transcendência onde os protagonistas lutam para ascender de um mundo ilusório e corrompido (por ser uma construção artificial, obra de um demiurgo) o filme gnóstico vai explorar a ironia como caminho para evitar cair na dualidade falso/verdadeiro, espírito/matéria, ilusão/realidade etc. o caminho é o da negatividade: nem uma coisa nem outra, mas a busca de um tertium quid, uma outra via posta em suspensão pelo vazio cognitivo que a ambigüidade da narrativa fílmica procura criar.
A utilização dos instrumentos da ironia como a fragmentação, auto-referência, narrativas com pontos de vista inconciliáveis, confusão entre o ponto de vista da câmera e o ponto de vista da visão do personagem, desfechos narrativos que se anulam, narrativas em abismo etc.

Dois Exemplos da Ironia no Filme Gnóstico


Podemos apresentar dois exemplos de filmes gnósticos que partilham desse caminho da negatividade do sentido por meio de narrativas cujos desfechos são paradoxais por apresentarem interpretações que se anulam. O primeiro é o filme O Décimo Terceiro Andar (The Thirteenth Floor, 1999) com um autêntico happy end (casa em frente a uma praia, grupos de gaivotas voando, um cachorro brincando na areia, um lindo pôr do Sol). O protagonista parece ter descoberto o último nível das simulações que é, finalmente, a realidade, o ponto de partida de tudo. Mas, repentinamente, a imagem do enquadramento encolhe-se até transformar-se numa linha, reduzindo-se a um ponto de luz de um monitor de TV (veja essa sequência final abaixo). Uma pista da irrealidade: será que alguém puxou o fio da tomada? Este ambíguo e irônico final sugere que o própria realidade última, também, uma simulação como os demais níveis. Uma possível interpretação que cai na suspensão, no vazio.
Outro exemplo é o do filme Brilho Eterno de Uma mente Sem Lembrança (Eternal Sunshine of the Spotless Mind, 2004) onde elemento irônico está presente. Na seqüência final com Joel e Clementine correndo pela gelada praia de Montauk em fevereiro é ambígua, podendo ser interpretada como dois finais excludentes: ou assistimos a um típico happy end romântico em um final clichê com casais enamorados correndo felizes à beira do mar ou um final trágico: as seqüências de Joel e Clementine após o apagamento de memória ter sido finalizado, retornando ao primeiro plano que inicia o filme (Joel despertando em sua cama pela manhã), poderiam ser mais uma instância narrativa interna das memórias de Joel. A partir daí até o final poderíamos estar vendo mais narrativas das memórias de Joel. Na seqüência de desfecho na praia de Montauk as imagens do casal vão dissolvendo-se em fade out para o branco. Isso acontece também em algumas seqüências anteriores aonde objetos vão tornando-se brancos até desaparecerem (como na seqüência do desaparecimento dos livros na Bernes e Noble) como metáfora de apagamento das memórias. Além disso, há uma descontinuidade na corrida do casal, em loop: a corrida repete-se até o fade out. Novamente, este loop aparece como metáfora de apagamento ou degeneração da memória como na seqüência em que Joel persegue Clementine pela rua após uma discussão: o tempo e a perspectiva parecem estar em loop, impossibilitando Joel de chegar ao final da rua e alcançar Clementine


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