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sexta-feira, julho 03, 2015

Curta "Rabbit and Deer" atualiza a Alegoria da Caverna de Platão

O que aconteceria se indivíduos que vivem em um mundo plano e bidimensional acidentalmente descobrissem que existe um universo alternativo tridimensional, até então invisível para eles? Qual a reação deles ao descobrir que seu mundo plano não passa de um fino papel que esconde uma vasta realidade tridimensional? Essa é a proposta de um surpreendente curta de animação húngaro “Rabbit and Deer” (2013) com mais de 100 prêmios em festivais por todo o mundo. O curta faz uma releitura da Alegoria da Caverna de Platão por um ponto de vista dimensional – mais uma evidência de como cresce a sensibilidade gnóstica na indústria do entretenimento atual, desde que a Relatividade e a Mecânica Quântica atualizaram na ciência antigas mitologias gnósticas.

O leitor deve conhecer a Alegoria da Caverna de Platão, onde o filósofo descreve a situação em que a humanidade se encontra e a proposta de um caminho de salvação: a crença de que o mundo revelado pelos nossos sentidos não é o mundo real, mas apenas uma pálida cópia – a condição humana seria como a de prisioneiros acorrentados em uma caverna vendo sombras  projetadas na parede de objetos que passam diante de um fogo atrás deles. As sombras são tão próximas que passam a designar nomes para elas e toma-las como fossem a própria realidade.

Agora imagine essa alegoria por um ponto de vista dimensional: os homens acorrentados e as sombras pertenceriam a um mundo bidimensional, enquanto o fogo e os objetos que passam diante dele estão no plano tridimensional – mesmo que se virassem, seres da segunda dimensão seriam incapazes de verem o fogo ardente tridimensional. Platão dizia que o brilho do fogo os cegaria. Do ponto de vista dimensional, a tridimensionalidade simplesmente se tornaria invisível para esses seres planos prisioneiros das suas correntes em duas dimensões.

sábado, junho 13, 2015

No curta "Alma" o fascínio gótico pelos bonecos e brinquedos

Trabalhando desde 2002 na Pixar, o animador espanhol Rodrigo Blaas resolveu em 2009 colocar em prática algumas ideias pessoais que não podiam se encaixar nas produções comerciais do estúdio. O resultado é o curta “Alma” que trás para uma animação aquilo que a assepsia comercial da Pixar retira dos seus produtos: o Estranho e o Gótico, a essência do fascínio humano pelos bonecos, marionetes e, modernamente, androides, robôs e animações. Blaas devolve ao universo infantil dos bonecos e brinquedos o seu arquétipo central: a rememoração das relações homem/Deus – através da brincadeira e do jogo a rememoração da própria condição humana prisioneira em um universo onde alguém nos manipula.Curta sugerido pela nossa leitora Luiza Hernandez.

Rodrigo Blaas é um artista gráfico espanhol que trabalha nos estúdios da Pixar desde 2002, animando personagens como a Dory em Procurando Nemo, a dupla Luigi e Guido em Carros, as cenas de ação em Os Incríveis e a sequência final da luta do capitão da nave Axion contra o piloto automático em Wall-E. Depois de muito trabalho em equipe e aborrecido em ter muitas ideias que não podiam ser encaixadas nas produções de um estúdio mainstream, resolveu reunir alguns colegas para fazer um curta.

O resultado é Alma (2009), com uma protagonista infantil com olhar doce e um visual que lembra o estilo da Pixar. Mas as semelhanças param por aí: há algo de estranho, tão sinistro quanto a atmosfera dos episódios da clássica série de terror e mistério Além da Imaginação - veja o curta abaixo.

segunda-feira, novembro 04, 2013

O espectro do gnosticismo ronda a cultura na animação "The Painting"


Um espectro ronda a produção cultural contemporânea: o Gnosticismo. Não, não se trata de uma conspiração ou de alguma seita secreta que silenciosamente se espreitaria subliminarmente em filmes e animações. Trata-se de uma mudança de sensibilidade em relação à realidade e aos próprios produtos culturais que procuram representá-la, um senso mais metalinguístico e auto-referencial que questiona a representação e a própria natureza da realidade. A animação francesa “The Painting” (Le Tableau, 2011), dirigida por Jean- François Laguionie é um flagrante exemplo onde personagens fauvistas no interior de quadros em um empoeirado estúdio estão em busca do Pintor, numa evidente analogia com questões teológicas e filosóficas: ele existe? Retornará um dia para completar suas obras? Quem desenhou o Pintor?

De programas infantis como “Mister Maker”, passando por animações como “Hora de Aventura” e “Apenas um Show” ou quadrinhos como “Capitão Cueca”, até os filmes mais elaborados para adultos como “Matrix”, “Show de Truman” e “A Origem”, a sensibilidade é a mesma: ironia, auto-referência, discurso indireto, metalinguagem, uma espécie de autoconsciência dos personagens de que a narrativa em que estão imersos é ficcional, um constructo de algum autor, demiurgo ou entidade arbitrária, que algumas vezes quer lhes controlar e confinar.

A animação francesa de Jean-François Laguionie, “The Paiting” (Le Tableau, 2011) é um bom exemplo dessa sensibilidade contemporânea, além de ser uma ótima alternativa às animações computadorizadas das produções norte-americanas. A narrativa é centrada em um mundo no interior de um quadro em ambientes fauvistas ao estilo de Matisse e cacos de Chagall. É apenas mais um quadro entre vários que estão no atelier de um pintor, mas para os habitantes daquela tela é um cosmos fechado em si mesmo.

Apesar da beleza das cores, texturas e traços, percebemos que aquele mundo não é tão poético: possui uma rígida ordem social dividida em três castas: a elite formada pelos Toupins que habitam um castelo. São pinturas finalizadas e de estilo definido. Em seguida vêm os Pafinis, os “não terminados”: figuras não acabadas nas quais o pintor da obra não deu um acabamento final ou deixou de pintar um detalhe qualquer. E abaixo de todos, os Reufs, verdadeiros esboços vivos, personagens cujo pintor nem iniciou e dotados apenas de linhas e contornos de lápis.

sexta-feira, outubro 11, 2013

Cultura geek e tecnognosticismo nas animações "Hora de Aventura" e "Apenas um Show"


O non sense, surrealismo e o humor muitas vezes sombrio das animações “Hora de Aventura” e “Apenas um Show” (sugeridas pelo nosso leitor Paulo Massa) causam estranheza nos adultos, embora as crianças as compreendam muito bem. Essas animações são produtos culturais criados por representantes de uma geração que cresceu vendo “Os Simpsons” e jogando "Dungeons and Dragons". Seus criadores Pedleton Ward e J.G. Quintel são os mais acabados representantes de uma cultura geek que conseguiu mesclar a tecnociência com o misticismo e magia – o “tecnognosticismo”. Por isso conseguem dialogar com uma geração de crianças cuja sensibilidade se altera com o entretenimento em plataformas móveis como Ipods, tablets e celulares.

Hits do canal Cartoon Network, as animações “Hora de Aventura” (Adventure Time) e “Apenas um Show” (Regular Show) podem ser considerados produtos culturais criados por uma geração que cresceu vendo “Os Simpsons”, jogando o RPG e game de computador Dungeons and Dragons. E quem afirma isso são os seus próprios idealizadores, respectivamente Pedleton Ward e J.G. Quintel.

São típicos produtos de uma cultura geek que cresceu em contato com tecnologias de convergência e interfaces digitais e muita navegação em ambientes fragmentados por hipertextos. Acostumados que estamos com narrativas tradicionais em três atos, com muitas gags visuais, correria e perseguições ao melhor estilo slapstick dos desenhos animados tradicionais, assistir a esses novos produtos é uma experiência de estranhamento pelo total surrealismo e non sense.

quarta-feira, agosto 21, 2013

A morte é uma mercadoria na animação "A Pequena Loja de Suicídios"


De forma despretensiosa através de muito humor negro e cinismo, a animação francesa “A Pequena Loja de Suicídio” (Le Magasin des Suicides, 2012) de Patrice Laconte nos faz pensar em uma questão fundamental para a História da Cultura: por que  o suicídio foi sempre objeto de tabus religiosos e repressão ao longo da História? Talvez porque nesse momento derradeiro da vida do indivíduo se exponha de forma dramática as mazelas da sociedade. Na animação de Laconte é a crise europeia e a forma como a ideologia dos negócios consegue ver a infelicidade e o desespero como mais uma oportunidade de mercado.

quarta-feira, dezembro 05, 2012

A dialética da família: de "Charlie e Lola" aos "Simpsons"

O irmão mais velho assume a imagem de mentor outrora ocupada pelos pais; duas meninas demonstram poder desenvolver valores sem a necessidade de qualquer tipo de influencia de adultos; e em outro caso um personagem no papel de pai cuja autoridade é rebaixada pela sua absoluta incapacidade de lidar com as tecnologias que o cercam. Pesquisa da Universidade Anhembi Morumbi desenvolvida por alunos da graduação da Escola de Comunicação encontra nas animações infantis, adolescentes e adultas a recorrência não só do desaparecimento simbólico ou mesmo literal da figura dos pais como, também, do anacronismo ou deficiência em desempenhar os papéis que deveriam ocupar na formação social dos filhos. Além disso, personagens e narrativas expressariam a chamada "dialética da família" contemporânea: a crítica à autoridade patriarcal como anacrônica e autoritária ao lado de um modelo familiar igualitário e liberal foram historicamente emancipadores, mas, por outro lado, expôs as novas gerações às insidiosas e sedutoras novas formas de manipulação.

Em postagem recente intitulada “Por que os pais desapareceram do imaginário infantil?” discutíamos como o anacronismo da família como agencia socializadora, suplantada pela indústria cultural das celebridades e entretenimento ao oferecer novos modelos de “super-pais”, estava sendo representado por animações infantis onde se verifica uma significativa recorrência de situações onde os pais desaparecem simbolicamente e até mesmo fisicamente.  

O grupo de estudantes formados por Ana Lucia Borsari, Eduardo Gomes, Laryssa Valverde, Leonardo Salles e Nicolas Gomes da graduação da Escola de Comunicação da Universidade Anhembi Morumbi (UAM/SP) decidiu então aprofundar a discussão do post em um trabalho de iniciação científica para a disciplina Estudos da Semiótica, procurando matizar as animações em três tipos de públicos: infantis, adolescentes e adultos. Respectivamente, o universo da pesquisa foram “Backyardgans”, Charlie e Lola, Pink, Dink Doo”e “Milly e Molly”; Os Flintstones e os Jetsons; e o último grupo “Os Simpsons” e “Uma Família da Pesada”.

domingo, setembro 30, 2012

O olhar surrealista sobre o consumismo em "Little Otik"

Se nos contos de fadas tradicionais ogros, lobos e bruxas ameaçam devorar crianças, em “Otesánek” (Little Otik, 2000) do animador e diretor checo Jan Svankmajer vemos o inverso: uma criança ameaça devorar seus próprios pais. Ligado ao movimento surrealista desde a década de 1970, Svankmajer oferece um olhar carregado de humor negro sobre uma cultura de consumo baseado na regressão infantil à compulsão e voracidade oral onde objetos assumem dimensões fetichistas e mágicas ganhando vida própria, e nos prometendo a redenção das frustrações. O olhar surrealista de Svankmajer questiona: estaria nessa verdadeira cultura da devoração do outro a origem das guerras, desigualdades e terrorismo do mundo contemporâneo?

Membro do movimento de artistas surrealistas checos desde os anos 1970, Jan Svankmajer possui em seu currículo uma série de curtas e filmes longa metragem onde animações em stop motion, fantoches e animações 2D interagem com atores. Como cineasta, tenta livrar seu trabalho de tendências decorativas, maneiristas ou “artísticas” (palavra que Svankmajer rejeita em favor da “criação”) para buscar em suas narrativas realidades disfarçadas por trás do utilitário e do convencional.

Dessa maneira, Svankmajer neste filme “Otesánek” (Little Otik, 2000) transforma o prosaico ato de comer associado a um conto de fadas checo e referências explícitas a Luis Buñuel (como na sequência onde um homem pega bebês e os envolve em jornais para serem vendidos com peixes para a ceia de Natal) como metáforas do inconsciente por trás da cultura do consumo.

“Little Otik” é baseado em um antigo conto de fadas tcheco sobre um casal que descobre que não pode ter filhos, mas adquire um bebê de forma incomum: o Sr. Horák, um pacato burocrata que trabalha em uma repartição, ao cavar a terra no fundo do jardim para arrancar uma árvore, encontra uma raiz com forma curiosa que lembra vagamente uma criança. Horák esculpe a raiz dando formas definitivas e apresenta à esposa que, de imediato, adota como um bebê imaginário: secretamente lhe dá banho e o “alimenta”. 

sábado, junho 30, 2012

O sentido do lazer e o lazer sem sentido no curta "Leisure"

O curta australiano de animação premiado com o Oscar “Leisure” (1976) e o filme italiano “A Classe Operária Vai ao Paraíso” (1971) foram repercussões audiovisuais das discussões da chamada “New Left” (Nova esquerda) nos anos 1960-70 quando, diante do enfraquecimento do movimento operário no capitalismo avançado, sentiu a necessidade de politizar o “lazer” como a resultante da dominação do tempo livre pela indústria do entretenimento. Ambos os filmes exploram a situação paradoxal onde trabalho e lazer ao mesmo tempo se opõem e tornam-se semelhantes.

Muito tempo antes de se falar em “ócio criativo” e as conexões entre lazer e ócio na sociedade pós-industrial, um curta de animação era premiado em 1976 antecipando essas discussões. É o curta chamado “Leisure” do animador e cartunista político australiano Bruce Petty, premiado com Oscar de melhor curta de animação. Depois o filme ganhou vários prêmios em festivais internacionais de cinema.

O estilo de animação lembra muito a dos filmes do grupo inglês de humor Monty Python. O filme traça a trajetória do lazer ou tempo livre desde a pré-história, mais precisamente a partir do momento em que o aprimoramento do pensamento racional resultou em uma divisão nas sociedades humanas entre dois grupos: os que ficam sentados sonhando e resolvendo problemas e os que ficam em pé trabalhando. Elite e trabalhadores. Esses que ficam sentados começam a produzir arte e cultura para consumo próprio: surge o “lazer”.

Com o Iluminismo e a formulação dos direitos e a igualdade humana, esses trabalhadores são levados para dentro do universo do lazer por meio da industrialização do entretenimento. Com a popularização da eletricidade desenvolve-se a indústria de massa de entretenimento nos grandes centros urbanos o que trará um resultado paradoxal: lazer e trabalho serão experimentados simultaneamente como opostos e semelhantes – o primeiro mais prazeroso do que o segundo e as formas de lazer e do próprio estilo de vida nos centros urbanos serão tão passivos e sem imaginação quanto o trabalho rotinizado.

sábado, abril 14, 2012

Por Que os Pais Desapareceram do Imaginário Infantil?

Animações para o publico infantil apontam para uma característica recorrente: o desaparecimento dos pais no imaginário infantil. Dos "Flintstones" dos anos 1960 aos atuais "Backyardigans" ou "Charlie e Lola" encontramos o progresssivo desparecimento simbólico e literal dos pais nas narrativas. É o sintoma do anacronismo da família como agência sociaizadora, suplantada pela indústria cultural das celebridades e entretenimento que oferecem modelos mais atraentes de "superpais".

Nessa semana discutia com os alunos do curso de Comunicação da Universidade Anhembi Morumbi algumas ideias da Escola de Frankfurt. Mais precisamente, discutia a atualidade dos famosos “Estudos sobe a Autoridade e a Família” que Theodor Adorno e Max Horkheimer empreenderam na década de 1950. 

Nesses estudos os autores encontraram uma tensão dialética no interior da família no capitalismo tardio: de um lado, a família podia ser vista como a terrível matriz dos mecanismos de internalização da submissão (agência psicológica da sociedade), mas, do outro, a possibilidade de se tornar uma oposição crítica ao Estado Totalitário.

Principalmente no momento atual em que a chamada Indústria Cultural esvazia a autoridade e competência da família, tornando-a um suplemento supérfluo já que toda a indústria das celebridades e entretenimento suplantaram a figura paterna ao oferecer novas figuras de “super-pais” como modelos de internalização da autoridade.

Exatamente nesse momento em que a função de socialização da família desaparece para transformar-se em meras imagens paródicas em filmes publicitários de cereais matinais e margarinas (imagens congeladas de felicidade), a instituição familiar pode tornar-se uma instância “negativa”: libertar a inteira estrutura familiar da sua tradicional função repressiva e “realizar o princípio do amor”, como afirmava Adorno.

quinta-feira, junho 23, 2011

A "Paz Interior" do Kung Fu Panda

Fórmula do sucesso das animações atuais, Kung Fu Panda 2 explora simultaneamente temas infantis e adultos: para as crianças os arquétipos da separação e do abandono e, para adultos, o tema místico e religioso da “paz interior”, estranhamente associado ao ideário da autoajuda e da “Arte da Guerra” no melhor estilo do livro de Sun Tzu. Secretamente, a narrativa torna os dois temas complementares.

Fui com meus filhos em um shopping em São Paulo assistir à animação “Kung Fu Panda 2” dos estúdios da DreamWork. Não chega à excelência das animações da Pixar, mas também apresenta a grande virtude das animações atuais:  estórias que divertem e emocionam tanto as crianças quanto os pais. Talvez o principal fator da renovação das animações a partir do final dos anos 80 e, principalmente, a partir das animações digitais como "Toy Story", seja a habilidade dos roteiristas explorarem simultaneamente arquétipos com forte poder de evocação para crianças e muita intertextualidade com referências ou alusões para adultos.

Assim como em “Madagascar” que fazia alusão à sequência final do clássico “Planeta dos Macacos” de 1968 (a sequência em que o leão Alex esmurra a areia da praia com raiva diante de uma estátua da liberdade de palha que virou cinzas), também em “Kung Fu Panda” há várias referências aos clichês dos filmes de Kung Fu dos anos 70. Uma estratégia de intertextualidade que faz a delícia de adultos ao reconhecerem em animações infantis elementos imagéticos da sua geração.

Já para as crianças é voltada uma forte exploração de arquétipos, principalmente aqueles que envolvem o drama da separação e abandono (como os arquétipos do Inocente, do Órfão etc.).

Perguntei para meus filhos e, mais tarde, para outras crianças: qual a parte da estória em que mais se emocionaram? Unânime, a sequência onde o protagonista Po (o Kung Fu Panda) relembra do momento em que sua mãe foi obrigada a abandoná-lo, ainda bebê, em uma caixa de rabanetes para salvá-lo da fúria dos soldados do príncipe pavão Lord Shen (ele queria matar todos os ursos pandas do reino para que não se confirmasse uma profecia de que um guerreiro preto e branco o derrotaria).

Ao contrário, para os adultos a sequência mais emocionante foi a da batalha final onde o herói Po  finalmente domina a técnica da “paz interior” e consegue desviar as balas dos canhões. A partir daí relembra o trauma da separação dos pais e chega à solução sobre a sua própria identidade: “a única coisa que importa é o que você escolheu ser agora”. Po faz um acerto de contas com o passado, alcança o equilíbrio e se torna um verdadeiro “dragão guerreiro”. Dessa forma, a moral da narrativa faz um estranho mix entre uma noção “desinteressada” ou “mística” como a da “paz interior” (na tradição esotérica e religiosa identificada com a iluminação espiritual) e o acerto de contas com o passado como uma noção associada ao ideário da autoajuda.

segunda-feira, maio 02, 2011

Cultura Pop Ocidental e Gnosticismo nos Animes e Mangás Japoneses

Os animes e mangás japoneses tornam-se cada vez mais populares ao reciclar a cultura pop ocidental com lendas medievais e temas clássicos do Gnosticismo. Um terreno fértil onde cenários futuristas violentos se encontram com Demiurgos, divindades femininas promíscuas e ao mesmo tempo salvadoras e protagonistas em estado de exílio e abandono. Parecem traduzir melhor a natureza humana do que produções ocidentais “místicas” como “Avatar” ou livros de Dan Brown.

Em postagem passada (veja links abaixo) apresentamos a primeira parte de um texto de Miguel Conner sobre o anime “Neon Genesis Evangelion” e a ascensão do Gnosticismo nas animações japonesas. Conner afirmava que assim como o ocidente vem há tempos absorvendo as religiões orientais, o fértil terreno dos animes e mangás japoneses vem demonstrando um interesse por reciclar a cultura pop ocidental com lendas medievais e muitos temas das religiões gnósticas.

Em meio aos mundos distópicos e com batalhas futuristas ultra-violentas, despontam os temas clássicos das narrativas gnósticas: o Demiurgo (divindade enlouquecida e manipuladora), Sophia (ao mesmo tempo divina salvadora e promíscua em corpos cibernéticos, lutando secretamente a favor da humanidade), fagulhas divinas e divindades decaídas no mundo físico, perda da memória e da identidade, universos paralelos, mundos virtuais, protagonistas com sentimentos de exílio e abandono e a iluminação buscada em discos de armazenamento de bancos de dados.  

A seguir a tradução da segunda parte do texto de Miguel Conner. Ele é um escritor de ficção científica norte-americano e apresentador do programa "Aeon Byte Gnostic Radio" uma Internet Radio com entrevistas e debates semanais sobre temas do Gnosticismo, literatura e cultura pop.

quinta-feira, fevereiro 17, 2011

WALL-E e EVA: Disney faz Releitura do Gênesis Gnóstico

Em postagem anterior discutíamos o chamado “paradigma Disney” e nos perguntávamos como é possível animações voltadas para o público infantil tratar de temas tristes e até cruéis de uma forma lúdica e divertida. 

A animação “WALL-E” (2008) é um desses exemplos: uma fábula dark, cínica, sobre um planeta Terra devastado e tomado por lixo e escombros pacientemente compactados e empilhados por um robô, enquanto o que restou da humanidade se exilou numa gigantesca nave mais parecida com um shopping center onde o consumismo, ociosidade e conveniência são tão excessivos que acabaram produzindo seres que, de tão obesos, não conseguem mais manter-se em pé.

Nessa animação talvez encontremos a resposta para esse nossa indagação: o filme explora intensamente simbologias e arquétipos da interpretação gnóstica do gênesis bíblico. Afinal, a busca pela pureza, inocência e simplicidade do protagonista WALL-E é a busca pela transcendência, o retorno ao Paraíso perdido, a busca pela inocência infantil, aquela nostalgia que toda criança sente por uma unidade que foi perdida com a entrada forçada no mundo simbólico adulto (a escola, estudos, deveres etc.). E toda essa busca possibilitada pelo auxílio do robô high tech chamado de EVA, nome altamente simbólico para essa narrativa.


sexta-feira, setembro 24, 2010

"Neon Genesis Evangelion": a Ascensão do Gnosticismo nas Animações Japonesas

Assim como os ocidentais absorvem religiões orientais pelo estilo exótico e fluidez, os orientais parecem adotar as tradições abraâmicas. Tais tradições mitológicas parecem traduzir melhor os mundos distópicos e ultra-violentos de batalhas futuristas das narrativas das "Animes" japonesas. Neon Genesis Evangelion, por exemplo, é uma verdadeira enciclopédia de temas do Gnosticismo clássico, onde o homem se confronta com divindades insanas e indiferentes na luta pela posse dos elementos remanescentes das origens do Cosmos.

Abaixo apresentamos uma tradução de parte do artigo de Miguel Conner "Gnostic Themes in Japanese Anime", publicado no site "Exanimer.com National". O texto didaticamente sintetiza o Gnosticismo em quatro mitos básicos (Mito do Demiurgo, da Alma Decaída, do Salvadore do Feminino Divino) que são explorados pela Ficção Especulativa, desde filmes clássicos como Matrix até as Anime (animações) japonesas. Além disso, Conner procura entender o porquê da ascensão dos temas gnósticos na cultura pop japonesa.

Miguel Conner é escrtor de ficção científica norte-americano e apresentador do programa "Aeon Byte Gnostic Radio" uma Internet Radio com entrevistas e debates semanais sobre temas do Gnosticismo, literatura e cultura pop.

Temas Gnósticos nas Animes Japonesas
Miguel Conner


Ao contrário da maioria das religiões, o Gnosticismo não consegue limitar a sua heresia à bidimensionalidade do papel. Além da verdadeira ausência de uma canonização, seu caráter sincrético e parasitário permitiu o espírito do gnosticismo se manifestar ao longo da história por meio de diversas mídias. Além disso, a gnose (o despertar do conhecimento divino) é muitas vezes melhor servida através das expressões artísticas de cada época. Mago Simon, Valentino, Mani, WB Yeats e William Blake eram poetas tão sofisticados como também criadores de blasfêmias.



Nos tempos atuais, o gnosticismo foi reativado tanto pela popularidade da Ficção Especulativa como também pelas descobertas da Biblioteca de Nag Hammadi e do Evangelho de Judas. A Ficção Especulativa talvez seja o veículo ideal para a teologia gnóstica já que ambos se baseiam fortemente na psicologia, mitologia e estados alterados de consciência.


Mais do que um veículo, Gnosticismo e Ficção Especulativa são muito mais do que a Câmera Nupcial Valentiana, um casamento feito nos infernos da audácia artística onde, muitas vezes, não se tem consciência de se estar mergulhando nas nascentes Sethianas e Valentianas. Isto é evidente na frenética tempestade digital dos irmãos Wachowski, em Matrix, uma visionária exploração da ficção de Philip K. Dick, ou, então, os delírios alquímicos encontrados nas HQs de Alan Moore. Bastante se tem escrito sobre essas e outras expressões gnósticas contemporâneas.


Mas o que se tem dado pouca atenção é um já amadurecido campo de Gnosticismo numa forma semi-underground de ficção especulativa diferente do ocidente, uma espécie de masturbação mental sexo-masculino-adolescente com símbolos fálicos em forma de robôs gigantes, entre Aphrodites, distópicos mundos alternativos e ultra-violentos e catárticos ciber punks.

É a Anime (definido por Merriam-Webster como “estilo de animação originário do Japão que se caracteriza por gritantes gráficos coloridos retratando personagens vibrantes em ações frequentemente preenchidas por temas do fantástico e futurismo”).


Há pouca evidência de que esse fenômeno seja proposital. Há provavelmente duas razões para o Gnosticismo se encontrar com a animação japonesa (além do fato óbvio de que a Anime já é flagrantemente sincrética e parasitária com sua frenética agitação de produtos que fogem da estética Bollywood para buscar uma audiência mundial).


A primeira razão é que, sem os mandamentos da comercialização de Hollywood, a imaginação dos escritores e animadores japoneses está mais desapegada, permitindo ir a fundo nos poços da psicologia, mitologia e estados alterados de consciência.


A segunda tem a ver com o romance. Assim como os ocidentais absorvem elementos místicos de religiões por causa do seu estilo exótico e fluidez, os orientais parecem adotar as vertentes esotérica das tradições Abraâmicas que melhor traduzem as intensas fantasias policromáticas das paisagens Anime. A história revela que simbolismo ocultista e narrativa, uma relação tão incompreendida, cria ficções muito poderosas (a sedução da Alemanha pela filosofia oriental no século XIX poderia ser um óbvio exemplo).


Antes de abordarmos os evangelhos gnósticos em que se tornaram as séries de Anime, vamos fazer uma breve exposição da mitologia Gnóstica através de um sintético quadro:


1. O Mito do Demiurgo: A Criação, o Mundo ou a própria realidade é controlada por uma divindade inferior e os seus agentes. Esses anjos (ou arcontes) lançaram um véu de ilusão, ignorância ou desespero existencial sobre aqueles que procuram dominar (e às vezes se alimentam). No gnosticismo clássico, o caráter do Deus do Antigo Testamento era um modelo preferido para o vilão extramundano. Ele é muitas vezes referido como o Demiurgo. Nos evangelhos gnósticos pós-modernos, o Demiurgo não tem necessariamente de ser um antagonista do divino, mas pode assumir a forma de qualquer entidade opressora incluindo ETs , tecnologias opressoras e até mesmo as instituições humanas.Tudo se resume a questão do controle humano versus a liberdade humana. Esse mito inflama a questão sobre o que é real e o que é falso em intrincados níveis ontológicos (ou dimensões).


2. O mito da alma decaída. A ideia de que a semente divina, proveniente de um lugar chamado Pleroma (ou Plenitude) tenha caído em um mundo estranho. Este esperma-luz, a matéria prima da auto-realização, reside dentro de cada mortal, também conhecida como “centelha-divina”. É exatamente pela qual que as criaturas espirituais do Demiurgo anseiam ou querem corromper. Descansando no sono ou estupor, a jornada épica começa verdadeiramente quando um mortal descobre ou é escolhido para realizar o seu potencial transcendental. Uma guerra de libertação tende a entrar em erupção. No Anime e na ficção especulativa normalmente envolve uma agitação do protagonista durante a vigília por algum poder latente ou um presente que o obrigue a cumprir um destino heróico. Este mito provoca a pergunta do que é ser consciente e os níveis de consciência que o ser humano pode chegar.

3. O Mito do Salvador. Pode assumir duas formas. O primeiro é que após o despertar para a sua constituição sobrenatural, o protagonista não deve apenas salvar aqueles ao redor dele dos poderes que criaram o regime ilusório, ele deve também divulgar o conhecimento (gnose) para os outros, para que possam compartilhar as mesmas liberdades ou descubram habilidades semelhantes. A segunda forma é que uma figura salvadora precisa de outra figura salvadora, pois a relação de um hierofante para um neófito é central no Gnosticismo (a ocidental caricatura do professor sábio oriental ajudando o herói). Este mito acende a questão do significado do ser humano, e todos os seres humanos são verdadeiramente iguais, mesmo que alguns possuam maiores habilidades do que outros (um tema predominante nas HQs, óperas de ficção científica e até mesmo em séries de televisão, tais como “Heroes”).

4. O Mito do Feminino Divino. No gnosticismo clássico, Sophia ocupa o centro do palco, simultaneamente, como ser caído e uma redentora da humanidade. Sua encarnação já assumiu várias formas, incluindo a Shekinah de Deus na Cabala, Maria Madalena no Cristianismo esotérico, e Gaia no neo-paganismo. Sylvia em “O Show de Truman” e Trinity em “Matrix” são duas das mais famosas nos domínios da Ficção Científica e da Fantasia. A encarnação pode ser o protagonista, o professor do protagonista, e toda uma gama de variações. Ela resgata ou é resgatada, ou ambos, nas batalhas contra os agentes da opressão e da quebra da realidade falsa. É difícil negar a obsessão das Anime com a confusão com o feminino e sexualidade em geral (que se afasta ou, talvez, complementa a atitude gnóstica da desconfiança em relação ao sexo). Isso agrava a questão dos diferentes níveis de amor, amizade e individualidade no que poderia parecer um universo frio e indiferente.

Há um novo elemento que permeia os quatro mitos, muito relevante para as gnósticas Animes e para ficção especulativa. Em sua luta para entender o que realmente definiu o homem e seu destino no cosmos, o Gnosticismo clássico cogita a tripartição entre Matéria-Homem, Mente e Espírito. O Gnosticismo Contemporâneo tece essa tríade no interior da Máquina – tecnologia avançada, inteligência artificial, cibernética, realidade virtual, etc. A Máquina acrescenta um componente filosófico mais profundo, como o Deus que faz o homem e o homem que faz a Máquina, e os três se encontram frequentemente tentando imaginar quem está no controle e quem realmente existe na percepção de cada um. A Trilogia Matrix e os escritos de Philip K. Dick certamente focam essa revelação gnósticas modernista.


Neon Genesis Evangelion é uma das principais Anime gnósticas.

Humanidade enfrenta anjos não só pela sua existência, mas pela sua própria alma. A superfície da estória é flagrantemente gnóstica. É o clichê Anime típico de um mundo pós-apocalíptico, duelo de robôs gigantes e angústia adolescente . Mas Neon Genesis Evangelion abriga uma camada ainda mais profunda de temas gnósticos de várias escolas (Clássica, junguiana, Dickiana e Cabalística).

As origens da humanidade são muito semelhantes aos da cosmogonia gnóstica de Valentino, onde a queda de Sophia do Pleroma cria o universo e seus habitantes. Em Neon Genesis Evangelion, Sophia é substituída por um ser chamado Lilith, cujo material remanescentes são descobertos na Antártida e, em seguida, salvaguardados pelo homem moderno no Japão, num esconderijo subterrâneo chamado Tokyo 3. Logo depois, a civilização sofre o Dia do Julgamento, quando um outro ser chamado Adam (ecoando as Adamas celestes do Gnosticismo, Maniqueísmo e Cabala) de alguma forma se choca contra a Terra. Metade da humanidade é destruída e os sobreviventes são forçados a viver no subterrâneo. O aquecimento global e outros cataclismos prejudicam os recursos do planeta. Um mundo despótico emerge das cinzas.

E depois vêm os anjos para piorar as coisas.

Estas criaturas buscam recuperar os restos mortais de Lilith e Adam das garras da humanidade, pois eles também são a Mãe e Pai primordiais. Os anjos querem a mesma coisa que os líderes da humanidade – reintegrarem-se com Lilith e Adam, a fim de criar uma consciência coletiva piedosa que se torne uma lei suprema. Enquanto os cientistas humanos tentam desbloquear as essências de Lilith e Adam, eles também utilizam partes de seus corpos titânicos para criar monstros chamados unidades Evangelion (ou Evas), a fim de repelir a invasão divina. Evas aparecem como elegantes e estereotipados robôs gigantes, mas são realmente semideuses bestiais que querem associar com os agentes humanos. Isso tudo constitui o cenário de uma batalha grandiosa e brutal que assola a civilização, ainda mais que os anjos não se encarnam na Terra como dândis alados, mas como pesadelos ao estilo Lovecraft.

Apenas alguns jovens talentosos podem pilotar os Evas. O protagonista principal é Shinji Ikari, um adolescente torturado, que não apenas se torna o salvador da humanidade, mas o representante de muitos dilemas psicológicos e existenciais. Suas esposas-irmãs são as tempestuosas Asuka Langley (a ruiva símbolo de Maria Madalena) e o astral Rei Ayanami (de cabelos prateados, símbolo místico de Sophia). Esses jovens não só passam pelas várias fases clássicas da maturidade de crescimento humano e do herói, mas também representam a confusão da inocência que se perde num mundo louco, não apenas de adultos, mas também de divindades insanas e indiferentes.

Neon Genesis Evangelion empurra todos os aspectos da exploração gnóstica nas diferentes fases de plots brutais, realidades despedaçadas e emboladas, e visões psicológicas da alienação pós-industrial, através de extensos monólogo interiores, todos banhados pelo fedor e desespero de uma civilização condenada. A série também leva o público para a fronteira da insanidade e desolações teológicas através de um elenco de personagens cansados e frequentemente sobrenaturais que atritam a trindade anti-heróica de Shinji, Asuka e Rei (e suas psiques, eventualmente, são absorvidos primeiro pelas Evas e, mais tarde, pelos próprios anjos). Da sobrevivência às falsas realidades para as viagens em planos celestiais através dos horrores pré-criação, “Neon Genesis Evangelion” é uma enciclopédia de Gnosticismo.



sexta-feira, julho 16, 2010

"Para o Infinito e Além": a Gnose de Buzz Lightyear


A trilogia Toy Story explora uma rica simbologia sagrada cujas origens estão na antiguidade com a Teurgia e Alquimia que envolve a gnóstica relação com os simulacros humanos (bonecos e fantoches e, na modernidade, autômatos, replicantes e andróides). Porém, de forma ambígua onde a Gnosis é dominada pela Episteme.

Certa vez o Prof. Marcelo Tassara, em uma das aulas do Mestrado em Comunicação da Universidade Anhembi Morumbi, falou sobre a habilidade das animações norte-americanas, voltadas para o público infantil, de tornar divertidos temas trágicos, pesados e adultos.

Desde Bambi (onde o protagonista perde a mãe de forma cruel) até Wall-E (ficção científica cínica e dark) as animações dos estúdios norte-americanos exercitam essa capacidade de fazer crianças rirem do cruel e do trágico.

A trilogia Toy Story não é diferente. Brinquedos desesperados em não perder o amor e a atenção do seu dono Andy (o mítico plot freudiano da relação da criança com a mãe na primeira infância), crianças sádicas que destroçam cruelmente brinquedos (outro plot freudiano, a crueldade infantil do drama edipiano ainda não resolvido) e um personagem, Buzz Lyghtyear, que acredita plenamente no script inserido nos seus chips pela indústria fabricante, a identidade de herói intergalático. Buzz não se acha um brinquedo, mas um herói dentro de uma narrativa espacial épica.

Até que, numa sequência rica em simbologias, Buzz vê a si mesmo (ou para mais um exemplar da sua série) numa propaganda na televisão, onde o fabricante anuncia o produto Buzz Lightyear com suas especificações, embalagem e as falas pré-programadas que Buzz repete como suas. Em destaque no comercial uma frase que decisivamente desconstrói Buzz: “esse produto não voa”. Perplexo, desiludido e impotente, mesmo assim Buzz tenta voar saltando do alto de uma escada para se esburrachar em seguida. Uma sequência triste, assim como a perda da inocência da infância, uma metalinguagem forçosa que toda criança terá que fazer ao descobrir que os scripts de seus jogos infantis estão contidos num mundo ainda maior e incompreensível.

Toy Story explora uma simbologia arquetípica dos bonecos e fantoches, isto é, a simbologia mística e sagrada dos simulacros humanos onde, na atualidade, temos a continuação com Replicantes, Ciborgues e personagens humanos híbridos. Uma simbologia essencialmente gnóstica onde o homem projeta, no seu simulacro, a sua própria condição de prisioneiro na realidade física criada por um Demiurgo ou Titereiro. Na cultura popular do século XX temos um aumento do fascínio por autômatos e bonecos com o surgimento do conceito marionete-mestre (humana ou divina) inserida dentro de uma cosmologia gnóstica das relações entre homem/autômato e homem/deus. Esse fascínio por autômatos ou marionetes dentro desse gnóstico esquema simbolizaria a maneira pela qual podemos avaliar a própria experiência humana, ou seja, como nos vemos como prisioneiros dentro de um cosmos hostil.

Teurgia e Alquimia

O fascínio humano por bonecos, fantoches (que, mais tarde, se tornariam brinquedos infantis) e demais simulacros humanos têm sua origem nos filósofos e sacerdotes Helenísticos. Platão falava em um ser chamado Demiurgo, criador do mundo visível, personagem largamente usado na antiguidade para explicar a origem da alma humana a partir de uma forma Divina e Original: Anthropos. Do Mundo das Formas Anthropos desceu ao mundo material, originando o homem.

Apesar de ser uma forma inferior, o ser humano teria dentro de si fagulhas divinas da sua origem (Anthropos). Portanto, objetivo da sua existência seria galgar os degraus que o façam retornar às suas origens divinas. Nós, humanos, não passaríamos de simulacros do Humano Primal, assim como o mundo dos nossos sentidos é um simulacro do Mundo das Formas. Através do autoconhecimento ou gnose poderíamos então retornar à Luz é à vida eterna possuída por Antropos, esse humano essencial.

A Teurgia surge no mundo helenístico como a primeira forma de alcançar isso através da manipulação da matéria onde, assim como o Demiurgo, podemos dar vida e alma a uma forma material e inferior. Se temos dentro de nós uma parte desse Anthropos, podemos retornar a ele exercendo as mesmas habilidades reservada aos deuses: imitatio dei por generatio animae, imitar Deus criando vida.


Para Victoria Nelson (“The Secret Life of Puppets”) essa é a origem secreta do fascínio atemporal por bonecos e fantoches ao longo da história. Para a autora, é na Alquimia que temos esse encontro decisisivo entre gnosis e epistemis, entre a ciência experimental e a prática religiosa através de sucessivas operações que reproduzem as etapas da criação do cosmos físico pelo Demiurgo até a redenção da matéria representado pela criação da “Pedra Filosofal” ou da “criança/homunculus” (“pequeno homem”, também chamado como “mannikin”).

Na modernidade, essas origens sagradas são relegadas ao mundo da infância e, na literatura e cinema, ao gênero do terror: Frankenstein, bonecos assassinos e fantoches que ganham vida própria e dominam seu criador, bonecos de vudu etc.

Na infantil fusão entre brinquedo e criança, onde a alma do objeto absorve as melhores qualidades do seu dono (ternura, bondade, coragem etc.) temos esse simbolismo atemporal da dimensão sagrada dos simulacros humanos. Se no mundo adulto a espisteme reprime a gnosis (a racionalidade supera o Sagrado), será na infância o último e transitório reduto dessa dimensão perdida.

Como vimos em postagem anterior, são nos jogos infantis que a criança ri do Mal (acaso, aleatório, acidente) presente no cosmos físico. Da mesma forma, a atualização da manipulação dos simulacros humanos na infância é a sobrevivência desses mitos teúrgicos e alquímicos da antiguidade. A fusão boneco/criança (a projeção na matéria inanimada das manifestações das partículas de Luz divina presentes em cada um de nós) repete, para a visão do adulto, de forma pueril e inconsequente, todo o drama mítico dos passos a serem galgados para a gnose.

Simulacros Humanos na Indústria do Entretenimento

Voltando à sequência em que Buzz Lightyear descobre-se como um briquedo, Toy Story explora e atualiza este fascínio gnóstico pelos simulacros humanos: assim como no Gnosticismo o ponto de partida da gnose é a descoberta que o mundo real não passa de um véu de ilusões, Buzz descobre que toda a sua existência não passava de um programa pré-fabricado pela indústria de brinquedos.

Mas há uma ambigüidade nessa gnose de Buzz Lightyear.

Sabemos que, desde Toy Story de 1995, os roteiros das animações dos Studios Wall Disney são orientados pelo chamado “Memorando de Vogler”: um memorando corporativo escrito por Christopher Vogler propondo uma estrutura de formulas para um roteiro de sucesso baseado nas idéias do historiador de mitos Joseph Campbell como solução para o estúdio superar os sucessivos fracassos das animações do estúdio nos anos 80. A partir daí originou-se o bem sucedido “Paradigma Disney” de roteiro baseado na arquetípica “Jornada do Herói”.

Mas apenas isso não sustenta uma estrutura-clichê de um produto de entretenimento. É necessário mais: conteúdos arquetípicos que falem fundo para a alma humana. Assim como a gnose de Buzz que trás o fascínio atemporal pelo drama de fantoches e bonecos que lutam pela liberdade (veja, por exemplo, em Blade Runner – 1982 – e Quero ser John Malkovich – 1999).

Na verdade uma gnose governada pela episteme (toda a tecnologia de produção de imagens digitais e a estrutura-clichê dos roteiros). Se na Teurgia e Alquimia Gnose e Episteme buscam o encontro, aqui na indústria do entretenimento temos a submissão da Gnose, do Sagrado e de toda dimensão mística à Episteme: a busca por resultados financeiros do estúdio, o cálculo científico das reações emotivas do público etc. Brinquedos que não são mais manufaturados pela criança, mas pela indústria do entretenimento que, tal qual o Drama de Buzz, impõe um script à fantasia infantil.

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