Comparar a Política e os políticos a atores em um palco de teatro é uma tese clássica da Ciência Política. Mas sugerir que as convenções e papéis sociais seriam roteiros com linhas de diálogos de uma gigantesca produção teatral chamada Sociedade é o tema de um subgênero gnóstico no cinema, de filmes como “Quero Ser John Malkovich” e “Sinédoque, Nova York”. “The Actor” (2025), estreia de Duke Johnson (colaborador no filme de Charlie Kaufman “Anomalisa”), é mais um exemplo onírico e ambíguo – um interessante mix gnóstico-noir no qual a amnésia é o tema principal: após sofrer um traumatismo craniano contundente, um ator de teatro acorda em um hospital sem nenhuma lembrança de sua vida passada e até mesmo com dificuldade para se lembrar dos mínimos detalhes de suas experiências diárias. E se a amnésia for um momentâneo esquecimento das linhas de diálogo de um roteiro criado por algum produtor da sociedade?
Quando falamos de parlamentares, presidente ou ministros como
fossem atores num palco de teatro, estamos no campo da Ciência Política. Mas
quando falamos da própria sociedade e seus indivíduos como que performassem
papéis sociais como fossem atores que memorizaram as suas falas de um roteiro
pré-estabelecido, estamos no campo do Gnosticismo.
Ou pelo menos nas produções do cinema e audiovisual com sabor
gnóstico que tematizam a existência como um grande constructo ficcional, como
nos filmes de Charlie Kaufman (Quero Ser John Malkovich, Sinédoque, Nova
York, Anomalisa, Estou Pensando em Acabar com Tudo) ou os filmes do diretor
sueco Roy Anderson (Vocês, os Vivos e Um Pombo Pousou Num Galho Refletindo
Sobre A Existência) – reflexões surrealistas sobre o non sense das
situações cotidianas que os papéis e convenções sociais nos insistem em
colocar.
Duke Johnson, colaborador criativo de Charlie Kaufman em Anomalisa
(2015), é o último diretor a se inserir nesta lista de filmes de sabor gnóstico
na sua estreia em filmes longa-metragem live-action, a produção The Actor
(2025) – Johnson teve uma carreira estável por quase duas décadas em produções
de animação stop-motion para a televisão.
Mas de todos os filmes listados acima, The Actor é o filme
mais onírico e ambíguo e, em sua maior parte, vago: é difícil dizer se as
coisas estão realmente acontecendo na vida do ator Paul Edwin Cole ou se os
eventos são apenas parte de sua performance no palco. Mas, afinal, não é assim
na vida de um ator? Você nunca sabe realmente se eles estão sendo reais ou
apenas fingindo.
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No entanto, The Actor é muito mais do que um filme
autorreferencial, metalinguístico, em que o drama de um ator em busca de um
papel ou de um ator que esqueceu a própria identidade real se torna um
entretenimento autoindulgente.
Principalmente pelo seu sabor “gnóstico-noir” – um dos recursos
mais utilizados pela maioria dos filmes desse gênero nos anos 1940-50 foi a
amnésia. É o mecanismo perfeito para impulsionar a história adiante.
Normalmente, o protagonista desses filmes está envolvido em uma batalha
interna, lutando para reter suas memórias de uma vida (ou crimes associados ao
seu personagem) antes que se envolvam em mais problemas.
Isso é o que torna The Actor inerentemente com sabor
gnóstico (o esquecimento da própria identidade como uma revelação da artificialidade
dos papéis sociais) e noir – um gênero com grande afinidade com o Gnosticismo
ao descrever um mundo que se desfaz em chuva e neblina, na qual nada é o que
aparenta ser. Não haveria uma ilusão que ocultaria a realidade: a própria
realidade já é ilusão.
Um relativamente famoso ator dos anos 1950, Paul E. Cole
(interpretado por Andre Holland), um artista radicado em Nova York, se vê em
uma situação difícil depois de se envolver com a esposa de outro homem enquanto
sua trupe de teatro se apresentava em uma pequena cidade de Ohio. Após sofrer
um traumatismo craniano contundente, Paul acorda em um hospital sem nenhuma
lembrança de sua vida passada e até mesmo com dificuldade para se lembrar dos
mínimos detalhes de suas experiências diárias.
O codiretor de Anomalisa adaptou este
roteiro, que ele escreveu com Stephen Cooney, do thriller
"Memória", de Donald E. Westlake. Enquanto o romance é propulsivo,
um drama é imediato e objetivo, o filme em The Actor escolhe um
estilo onírico (lembrando a cenografia de Brilho Eterno de Uma Mente Sem
Lembranças ou Sonhando Acordado) para moldar seu filme como um sonho
que você pode apreciar – com uma curiosa narrativa metonímica em que os
personagens passam de um ambiente para outro como se apenas estivessem trocando
de cenário.
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Os filmes gnósticos já sugeriram que a realidade pode nada
mais do que um reality show (Show de Truman) ou uma realidade virtual
gerada por máquinas (Matrix). Diferente dessas perspectivas, The
Actor se insere na suspeita de que a própria sociabilidade seria nada mais
do que um palco de teatro no qual performamos papéis uns para os outros – e as
selfies das redes sociais que buscam a aprovação dos likes e engajamentos, seriam
o paroxismo virtual da própria natureza da sociabilidade.
Se os papéis e convenções sociais forem nada mais que scripts de
uma grande peça teatral coletiva, o principal e mais perigoso drama de
adaptação dos atores sociais às linhas do roteiro, só pode ser a amnésia. “De
que serve um ator que não consegue se lembrar de suas falas?”, sentencia
ironicamente o médico que cuida do perplexo protagonista desmemoriado.
Para a sociologia funcionalista norte-americana como a de Talcott
Parsons esse ajuste do indivíduo aos papéis é fonte potencial de
disfuncionalidade, o choque entre o que queremos e aquilo que a sociedade
espera de nós. É o que Parsons chamava de “dupla contingência”: o drama de
adaptação do ego ao papel imposto pelo sistema social de expectativas.
Mas para o filme noir, a perda momentânea da memória por uma
concussão ou entorpecimento por drogas ou álcool é muito mais do que isso: pode
ser paradoxalmente um lapso de lucidez ao colocar a nu o artificialismo da
realidade.
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O Filme
O filme é estrelado pelo talentoso André Holland como um artista
de teatro que sofre de amnésia após sofrer uma violenta pancada na cabeça. Seu
agressor é o marido furioso da mulher com quem ele está tendo um caso tórrido.
Não vemos muito do incidente instigante, mas Johnson oferece vislumbres
suficientes no início do filme para nos ajudar a entender o que aconteceu.
Quando conhecemos o ator Paul Cole (Holland), ele está acordando
de um sono involuntário. Sua visão está ligeiramente turva e leva um minuto
para que a sala de cirurgia entre em foco. Um médico pergunta o nome do ator;
Paul responde com certa apreensão. A briga foi feia e a polícia estava
envolvida. Paul, rapidamente percebemos, tem sorte de estar vivo – Paul é um
ator negro que faz parte de uma trupe com uma peça em cartaz na cidade.
Estamos na década de 1950, em algum lugar no centro dos Estados
Unidos, e o fato de Paul estar dormindo com uma mulher branca e casada
escandaliza a comunidade. Uma corrente de racismo é sugerida, mas não explorada
com a profundidade necessária.
Sem dinheiro suficiente para pegar o ônibus de volta para casa,
ele encontra um trabalho braçal em um curtume em uma cidade próxima. Lá, ele
conhece Edna (Gemma Chan), uma forasteira tímida com quem ele estabelece uma
conexão romântica provisória conforme as estações mudam do outono para o
inverno. Pouco antes do Natal, o desejo do ator de recuperar mais de suas
memórias vence, e ele retorna a Nova York, com o objetivo de retomar sua antiga
carreira e amizades, apesar de sua memória ainda fraca.
Chegando em Nova York, ele corre atrás das lembranças de quem ele
é (ou já foi). A tragédia é que as coisas não saem como esse novo Paul havia
imaginado. Ele não é mais um ator treinado. Não se lembra mais dos amigos
próximos nem das pessoas com quem trabalhava. Sua empresária e representante,
Helen Arndt, consegui um papel na TV para ele, mas o problema é que o novo Paul
não sabe nada sobre o set. Ele se esforça ao máximo para atuar. Há tantos
detalhes técnicos que um ator precisa lembrar, dos quais Paul obviamente esqueceu
no estado amnésico. O resultado foi que Paul foi expulso do set, o que o fez
perceber que não é mais adequado para a vida de ator, e por isso decide voltar
para a pequena cidade onde Edna o espera para que possam construir uma vida
juntos.
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O senso de narrativa visual do diretor Duke Johnson é fascinante,
especialmente com a forma como a cinematografia e a edição se fundem
perfeitamente. Em toda a sua graciosidade, a câmera transita constantemente por
diferentes ambientes, conectando memórias frequentemente fragmentadas repletas
de iluminação diáfana. Estamos continuamente escurecendo e desaparecendo como
momentos que quase beiram o estilo vinheta.
O design de produção requintado também é fantástico, combinando
miniaturas bem implementadas e fundos oníricos que tentam criar um ambiente
alucinatório. A trilha sonora de Richard Reed Parry é outro aspecto de The
Actor que ajuda a imergir o público instantaneamente enquanto é reproduzida
nos créditos iniciais do filme, remetendo a filmes dos anos 1940-50.
The Actor é um
excelente encontro entre o filme gnóstico e o noir, ao encontrar a intersecção
entre esses dois gêneros: o protagonista insone (o símbolo da não adequação do
personagem à realidade em que vive e a resistência em dormir como necessidade
de despertar para a verdade, como em Donie Darko, Matrix, Animais
Noturnos, Cidade das Sombras etc.); a desesperada busca do resgate da
memórias – o esquecimento como a própria condição humana; a paranoia (o medo de
alguma maquinação arquitetada por alguém que não nos ama); e o esfacelamento de
tudo que parece concreto – a confusão entre o sonho (ou o pesadelo) e a
realidade.
A ideia forte do filme é essa: e se a amnésia for um momentâneo de
esquecimento das linhas de diálogo de um roteiro criado por algum produtor da
sociedade?
Estamos acostumados a pensar nos dramas e comédias do teatro e do
cinema como alegorias ou microcosmos da sociedade – momentos de reflexão a
partir da suspensão da incredulidade do espectador: faz de conta que é verdade.
The Actor sugere algo
mais radical: e se os próprios instrumentos que fazem a ficção (roteiro,
direção, produção, dramaturgia etc.) forem mais do que isso? E se a própria
sociabilidade for um filme produzido in live-action?
E cada ida ao teatro ou ao cinema um exercício de metalinguagem?
Ficha
Técnica |
Título: The Actor |
Diretor: Duke Johnson |
Roteiro: Duke Johnson,
Stephen Cooney, Donald E. Westlake |
Elenco: André Holland, Gemma
Chan, May Calamwy |
Produção: Innerlight Films |
Distribuição: Neon |
Ano: 2025 |
País: EUA |