Como todos sabemos, não existem coincidências em Política. Principalmente em Semiótica. O que existem são “coincidências significativas”, sincronismos. Não há como passar desapercebido o sincronismo entre uma bandeira gigantesca dos EUA estendida no gramado da Arena Itaquerão do Corinthians, em evento da NFL na sexta-feira, e, 48 horas depois, a mesma ou análoga bandeira do tamanho de uma quadra de basquete estendida pelo ato pró Anistia na Avenida Paulista. Pouco importa se é a mesma e a prefeitura (que promoveu e bancou o evento de futebol americano) de Ricardo Nunes cedeu o pavilhão norte-americano para os seus apoiadores políticos no domingo. O que importa é a “coincidência significativa” reforçada pelo jornal New York Times: “bandeira americana é o novo símbolo da direita brasileira”. E também da classe média, para o qual foi voltado o evento da NFL – setores médios que apoiam o militarismo para solucionar a própria disforia. Enquanto isso, o telecatch do julgamento da “trama golpista” no STF é voltado para desmobilizar a esquerda através da Judicialização da política. A guerra híbrida brasileira foi ativada.
Na cidade de São Paulo, centro da Banca financeira do País (cidade
da famigerada “Faria Lima”), em pleno final de semana do feriado do Sete de
Setembro, duas gigantescas bandeiras dos EUA foram exibidas para as câmeras de
TV em dois eventos diferentes.
Na sexta-feira 5/9, a Arena Itaquerão (do Corinthians) recebeu em
seu gramado o Los Angeles Charges e o Kansas City Chiefs para disputar a NFL,
liga de futebol americano dos EUA. Na hora do hino das duas nações, foi exibida
uma bandeira norte-americana estendida no gramado, ao lado de uma brasileira.
Um evento promovido e financiado pela prefeitura de São Paulo.
A NFL assumiu a operação do estádio, devolvendo a Arena ao
Corinthians na segunda-feira, após reparos no gramado e “desenvelopar” o local.
E no domingo, em pleno dia da Independência do Brasil, em manifestação
na Avenida Paulista em ato pró-anistia, a extrema-direita estendeu outro
bandeirão dos EUA.
Para o vereador do PT de São Paulo Nabil Bonduki há uma
possível explicação para a origem da bandeira gigantesca: a bandeira seria a
mesma utilizada no evento da Liga de Futebol dos Estados Unidos no Itaquerão. Isso
porque ninguém tem em casa guarda uma bandeira dos EUA daquelas dimensões. É
muita coincidência que horas depois do evento esportivo promovido por uma
prefeitura bolsonarista, uma bandeira com as mesmas dimensões é estendida para
as TVs do mundo na Avenida Paulista.
Sabemos que não existe coincidência em política (principalmente em
semiótica). Há sincronismos.
Para começar os interessantes e curiosos sincronismos, esse jogo
entre o Los Angeles Charges e o Kansas City Chiefs pelo campeonato de futebol
americanos da NFL em São Paulo foi a segunda edição. No ano passado, a Arena do
Corinthians já tinha recebido outro jogo da Liga norte-americana. O que chama a
atenção, é que também o evento ocorreu às vésperas do feriado da Independência
do Brasil, dia 05/09.
Para além do simbolismo do futebol americano representar a
quintessência da ideologia do american way of life (para começar, a
contraposição ao futebol jogado com os pés – para os americanos, um esporte
“feminino”, diferente da masculinidade do esporte de choque com os membros
superiores com atletas protegidos por verdadeiras por armaduras esportivas), um
evento com ingressos caros (de 740 a 3.400 reais) cria um autêntico nódulo
ideológico: a prototípica classe média paulista conservadora americanizada e
fascinada por um país que “dá certo” e que tudo que vem de lá representaria
qualidade, profissionalismo e seriedade...
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Características estas que o niilismo político dessa classe social não
consegue achar no Brasil, um país que suposta e cronicamente não dá certo
porque corrupto e condenado ao “custo Brasil” dos impostos.
O que vimos nas telas foi constrangedor: uma plateia eminentemente
branca, a nata da classe média paulistana, cantando o hino nacional brasileiro
a todos pulmões como se fosse um pedido de ajuda: por favor, gringos! Nos
salvem.
Aqui e ali ouviu-se vaias na execução do hino nacional americano.
Numa clara alusão a protestos contra o tarifaço de Trump – ironicamente, São
Paulo está entre os estados da federação mais atingidos.
O que parece soar esquizoide: por um lado, protesta contra o
ataque à soberania brasileira; do outro, alegremente celebra a oportunidade de
ver ao vivo um produto americano que estava acostumado apenas a ver pela nas
telas de TV dos bares. Certamente,
vaiaram porque era “chique” parecer “informado” ou “antenado” com os
acontecimentos midiáticos.
Em nenhum canal esportivo viu-se sequer qualquer tentativa de
contextualização daquele evento. Afinal, o show da NFL ocorria no Estado mais
atingido pelo tarifaço dos EUA e num país sob ataque político deliberado de
Donald Trump como uma chantagem tarifária contra um governo que estaria
“radicalmente à esquerda”, segundo o mandatário norte-americano.
Pelo contrário, o evento esportivo era cercado por um inusitado
espírito ufanista. Como se, a partir daquele momento, o Brasil estivesse entrando
finalmente para o Ocidente civilizado: uma partida da célebre NFL ali, ao vivo,
em um estádio na Zona Leste, em São Paulo! Até celebraram um boato que a
cantora pop Taylor Swift estaria na Arena – ela é noiva do jogador Travis Kelce
do Kansas City Chiefs...
O que poderíamos chamar de “viralatismo” se concretizou 48 horas
depois na manifestação bolsonarista na Avenida Paulista em que a mesma(?)
bandeira dos EUA foi estendida pelos ativistas no ato em defesa da Anistia e
contra a “ditadura do STF”. O sentido de uma bandeira daquele tamanho estava nos
cartazes e faixas levantadas pelos manifestantes (muitas delas em inglês)
apelando por uma intervenção militar dos EUA no Brasil.
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Porém, acredito, esse sincronismo vai muito mais além do simples
sintoma de viralatismo cultural ou mesmo político. Como não existem
coincidências em política, há uma probabilidade bem alta de termos assistido a
uma ação (ou “ativação” como falam os marqueteiros) de guerra híbrida.
Para começar os cartazes e faixas na Avenida Paulista, escritos
caprichosamente em inglês (como vimos em postagem anterior, uma das
características da chamada “revolução popular híbrida” -RPH – das “primaveras”
que rodaram o planeta na era Obama-Biden – clique aqui): querem chamar a
atenção da mídia e opinião pública do Exterior, muito mais do que a mídia
tupiniquim. Mídia que, de resto, se não apoia explicitamente as manifestações,
as cobre com uma “objetividade oportunista”, como se tudo se encaixasse no
“xadrez da política” ou do “jogo democrático”.
Porém, o que chama a atenção é: de onde veio uma bandeira dos EUA
com aquelas dimensões? Difícil crer que um manifestante tenha guardado em casa,
cuidadosamente dobrada e condicionada em uma prateleira qualquer no fundo de
uma garagem ou na dispensa. Ou que tenham comprado na Shopee...
O bolsonarista prefeito Ricardo Nunes promoveu e bancou o evento
(pelo contexto, com grande simbolismo político) na Arena Corinthians, ainda com
direito a projeções de slides alusivos na fachada do prédio da prefeitura no
Centro de São Paulo.
Bandeiras dos EUA com as mesmas dimensões gigantescas aparecem em
dois lugares na mesma cidade em diferença de horas...
Como visto, não necessário muita imaginação conspiratória que
estamos diante de uma “coincidência” muito significativa.
Não por menos, o jornal New York Times, em reportagem publicada na
terça-feira (09/09), destacou que “bandeira americana do tamanho de uma quadra
de basquete é o novo símbolo da direita brasileira”.
"Tornou-se a imagem definidora dos enormes protestos do dia,
estampada nas redes sociais e nas primeiras páginas dos jornais", publicou
o jornal, numa explícita peça midiática que participa dessa “ativação” da
guerra híbrida brasileira – clique aqui.
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O não-acontecimento do julgamento da “trama golpista”
A “ativação” de guerra híbrida do feriado do Sete de Setembro em
São Paulo tinha como público-alvo principalmente os setores médios – aqueles
ávidos em não serem confundidos com pobres, fascinados por modelos de sucesso
meritocrático (como o “esporte do país que dá certo”, o futebol americano) e
simpáticos a soluções militares para a sua própria disforia.
Na ditadura militar, essa
mesma classe média foi cooptada pelos “enlatados” da indústria norte-americana
na TV e visitas de pastores eletrônicos em estádios lotados – como o do pastor
Billy Graham, em um Maracanã lotados em 1974. Hoje, o cimento ideológico é
pelos símbolos esportivos dos EUA.
Mas se durante a ditadura militar o combate à esquerda era humanisticamente
mais custoso (repressão física com a perseguição, sequestros, tortura e
assassinatos) transformando-se a principal marca do período de exceção, na
guerra híbrida o combate é mais simbólico, através da cooptação imaginária: inseri-la
no sistema sob a aparência de estar participando da luta contra o golpismo e da
defesa da Democracia.
Essa cooptação vem principalmente daquilo que denominamos como
“pedagogia do medo” – o medo paranoico de que algum tipo de golpe está sendo
tramado contra a Democracia brasileira por militares recalcitrantes e
renitentes que supostamente ainda não aceitaram a redemocratização do País.
Os chamados atos anti-democráticos do 08/01 (a invasão dos prédios
dos Três Poderes por bolsonaristas) e a revelação midiática da “trama do golpe”
e o atual julgamento do STF são o estado-da -arte dessa guerra híbrida.
Primeiro, por ocultar que o tão temido golpe militar já aconteceu.
Apenas que de forma híbrida: o impeachment da presidenta Dilma, Operação Lava
Jato, a prisão de Lula, a vitória eleitoral de Bolsonaro em 2018 e a conquista
da máquina do Estado inédita pelos militares.
Os sucessivos blefes do “a corda está sendo esticada” nos quatro
anos de Bolsonaro na presidência (criando crises e ameaças semanais através da
mídia cujo ápice foi a “Operação 7 de Setembro” em 2021 na qual o País viveu
sob uma suposta ameaça de um autogolpe de Estado de Bolsonaro)
Tudo isso para quê? Paralisia estratégica: fazer a esquerda morrer
de medo por melindrar “golpistas”... e entregar a sua sorte para o Judiciário –
“judicialização da política”, mais uma faceta da depreciação da Política, um
dos objetivos basilares da guerra híbrida, desde as Jornadas de Junho de 2013.
O resultado foi a desmobilização do campo progressista, achando
que abandonar as ruas e mobilizações de massa e cerrar frentes com o Judiciário
diante das telas de dispositivos seria a melhor alternativa para enfrentar o
espantalho de um golpe militar que já aconteceu.
Podemos listar quatro evidências de como esse hype midiático do
julgamento da “trama de golpe” pelo STF (simbolicamente reforçado pelas ameaças
de sanções econômicas, políticas e até militares pelos EUA de Trump) é um “telecatch”
– um não-acontecimento, isto é, um show midiático para transformar a práxis
política da esquerda: da militância aguerrida das ruas e defesa das pautas
sociais e trabalhistas para fazer frente à defesa da democracia formal.
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(a) Julgamento da “Trama Golpista” promovido como uma atração da
Netflix: é sintomático como a grande mídia e sites do campo progressista
promovem a semana decisiva do julgamento de Bolsonaro no STF como uma atração
de entretenimento: “pegue a sua pipoca”, “Saiba como ver STF ao vivo”, “Já
comprei pipoca para ver Bolsonaro”, “Julgamento de Bolsonaro no STF: data,
horário e onde assistir ao vivo”. Exortações e publicação do Expediente do evento
como fosse uma atração para o distinto público assistir confortavelmente em sua
poltrona.
(b) Golpe militar já aconteceu. Conquistou a máquina do Estado e o
IMAGINÁRIO: também representa um sintoma como expressões, jargões ou gírias
militares passaram a ser usados correntemente pelo jornalismo corporativo. Uma
preocupante militarização do imaginário – “Moraes: impunidade não é opção para
PACIFICAÇÃO” (expressão militar que quer dizer não um CONSENSO, mas a derrota
militar do oponente, criando o eufemismo da “pacificação). E outros como
“missão aceita, missão cumprida”, “viés ideológico” ou “dentro das quatro
linhas” (metáfora esportiva de Bolsonaro, usada correntemente por “colonistas”
em suas análises de conjuntura política).
(c) “Alto Comando do Exército era legalista”: esse é o ardil
semiótico essencial para fazer a coisa toda funcionar – como se estivesse sendo
julgado uma “organização criminosa” liderado por um capitão da reserva com
tendências terroristas. Ocultando uma operação psicológica militar de guerra
híbrida para desmobilizar a esquerda.
Sintetizado pela pérola analítica da “colonista” Andreia Sadi na
Globo News: “o Alto Comando era bolsonarista... porém, legalista!”. “Bolsonarismo
legalista” ou “bolsonarismo democrático” são as contradições de termos usados
como blocos retóricos de pensamento para a hipernormalização, principalmente do
próximo item...
(d) Se eram legalistas, por que não deram voz de prisão à Orcrim? Se
o Alto Comando do Exército supostamente lidou com uma organização criminosa,
liderada por um capitão da reserva que desafiava aquilo que é mais caro a uma organização
total militar (o respeito à hierarquia), por que não foi dada a imediata voz de
prisão?
Os “colonistas” e analistas do jornalismo corporativo, e até mesmo
a mídia progressista, silencia diante dessa questão. Porque a sua resposta pode
colocar em xeque todo esse telecatch: o imenso esforço de investimento
simbólico numa operação psicológica híbrida de, primeiro, conseguir polarizar a
política para destruir qualquer forma de consenso em uma esfera pública –
“pacificar”.
E, depois, por pressão da Faria Lima, buscar nesse momento
despolarizar a política, buscando uma “terceira via técnica”, sem “viés
ideológico”...
E a opção Tarcísio de Freitas (um engenheiro ex-militar) representa
o arriscado malabarismo semiótico que restou para a grande mídia.