quinta-feira, junho 01, 2023

Em 'Tin & Tina' a religião é uma assustadora arma contra o futuro


“A Bíblia não precisa ser satirizada. Ela já totalmente louca”, dizia o cartunista cult Robert Crumb. Não é à toa: a forma como crentes tomam ao pé-da-letra uma obra tão metafórica, simbólica e alegórica pode ter consequências assustadoras. Esse é o tema do terror espanhol “Tin & Tina” (2023, disponível na Netflix). Após um trágico aborto espontâneo, Lola e Adolfo adotam um adorável casal de gêmeos de um orfanato católico fundamentalista no interior da Espanha. Assim como a Espanha (estamos em 1981, no país que saiu recentemente da ditadura franquista), o casal tenta olhar com otimismo para o futuro. Mas o passado não resolvido pode retornar como um pesadelo: a religião, que pode se transformar numa arma que impede qualquer ideia de futuro.

Em 2010, quando o cultuado cartunista underground Robert Crumb estava lançado o “Livro do Gênesis Ilustrado”, ele justificou da seguinte maneira a sua escolha em transformar o livro bíblico numa HQ: “A ideia de milhões de pessoas tomando a Bíblia tão seriamente é totalmente louca. A Bíblia não precisa ser satirizada. Ela já é totalmente louca”.

Crumb referia-se ao fato de pessoas no século XXI interpretarem literalmente textos da Antiguidade tão simbólicos, metafóricos e alegóricos como os das histórias bíblicas: anjos exterminadores, espadas flamejantes, demônios acorrentados em abismos por mil anos, elementos do céu derretendo sobre a Terra, pragas, dilúvios, cidades destruídas por fogo e enxofre etc. E, claro, a recorrente ira desproporcional de Deus. 

E as coisas ainda mais complicam quando teólogos (ou até mesmo teóricos da conspiração) tentam fazer uma hermenêutica profunda, tentando encontrar verdades cifradas ou previsões escatológicas.

Não é por menos que a Bíblia acabou se transformando numa arma de controle de corações e mentes, como bem lembrado no filme pós-apocalíptico O Livro de Eli (2010): Gary Oldman faz um misto de prefeito e gangster, que vê na Bíblia um conjunto de palavras com poder persuasivo mágico suficiente para influenciar as mentes de uma cidade inteira, conseguindo ainda mais poder de influência e controle. 

E o problema fica ainda pior quando crianças são apresentadas, desde a tenra idade como fazem, por exemplo, as Testemunhas de Jeová, a esses textos de complexidade literária – naturalmente vão interpretar como contos de fadas literais... e continuam na vida adulta. Trazendo graves consequências cognitivas e políticas: indivíduos vulneráveis ao medo e a toda e qualquer forma de manipulação de massas.

Baseado no curta-metragem de 2013 premiado (Lights Out), Tin & Tina, do diretor Rubin Stein, é uma produção espanhola acompanhando uma história que se desenrola em 1981. Num período de transição entre o fim da ditadura franquista e o início do regime democrático – acompanhamos o desenrolar dos acontecimentos em imagens fragmentadas de TV ao fundo.

Em primeiro plano, assistimos à estória de recém-casados que decidem adotar um casal de gêmeos de um orfanato administrado por uma rígida madre superiora, dentro dos muros de uma vida monástica. Na qual tudo o que as crianças leem e aprendem é essencialmente a Bíblia Sagrada. 



Tin & Tina lentamente vai construindo um perturbador terror psicológico, com alusões a clássicos como O Bebê de Rosemary e até mesmo A Profecia. É sob essa imagerie do terror neogótico dos anos 1970 (e com uma excelente direção de arte e reconstituição de época), que o diretor Rubin Stein cria dois eixos de tensão que acompanharão todo o filme.

O primeiro, os fatos dos gêmeos aparentemente jamais terem saído dos limites dos muros do orfanato: tudo do que sabem veio da Bíblia. Ou pior, acreditam na literalidade dos acontecimentos bíblicos. Como, por exemplo, interpretarão imagens da TV e uma vida laica cuja mãe é ateia e o pai ignora a necessidade de uma religião?

E a segunda tensão, entre passado e futuro. Assim como a Espanha, os pais querem esquecer o passado e pensar apenas no futuro. Porém, os pais trouxeram para a sua casa uma amostra do passado franquista e religiosamente reacionário – a ditadura franquista da repressão política e manipulação religiosa.

E o resultado é aterrorizante.

O Filme

  Tin & Tina segue um jovem casal, Lola (Milena Smit) e Adolfo (Jaime Lorente), que, após o casamento, perdem seus filhos (eles estavam esperando gêmeos) durante a gravidez de Lola. No hospital, recebem a infeliz notícia de que, devido a um procedimento médico, Lola nunca poderá ter seus próprios filhos. Isso deixa a casa deles vazia, que é a mesma casa em que Adolfo cresceu, em um pequeno vilarejo no interior da Espanha.



Lola tem se sentido deprimida com a solidão – o marido é piloto de avião e constantemente está fora de casa. Adolfo convence Lola a ir com ele ao orfanato local, administrado por freiras católicas para que elas possam adotar. Lola é inicialmente contra a ideia – ela é ateia.

No entanto, Lola vê dois irmãos, Tin (Carlos González Morollón) e Tina (Anastasia Russo), que cantam lindamente, além de tocar o órgão da igreja local. Eles são crianças albinas. A princípio os rejeita, mas lembra que ela própria viveu esse histórico de rejeição – na infância, perdeu parte de uma perna, passando a andar com uma prótese mecânica. 

Na viagem de carro para casa, torna-se evidente que as crianças são muito religiosas. Eles viveram uma vida muito rigorosa e isolada, então todos precisam se ajustar a essa nova situação – para se ter uma ideia, o lema do orfanato é “sem castigo não há salvação”. Absorve o pior da literalidade do Velho Testamento bíblico.

Chegando em casa, abrem suas malas, contendo crucifixos (que espalharão pela casa para se protegerem do “anjo exterminador”) e edições da Bíblia. As principais situações de terror psicológico (aquele tipo de terror imprevisível no qual muito das consequências são antecipadas na mente do espectador) vêm da interpretação literal que Tin e Tina têm da Bíblia. Isso criará situações inesperadas e angustiantes. Principalmente porque as crianças não entendem as consequências das suas ações – paradoxalmente, tornaram-se pequenos seres amorais de tanto acreditar nos contos bíblicos.

O jovem casal Tin e Tina parece a versão dobrada do personagem Damien de A Profecia. Na verdade, estão mais confusos por decorrência da lavagem cerebral que receberam da educação fundamentalista católica do que qualquer outra coisa.

Mas as coisas mudam (ou pioram) quando um milagre acontece: Lola engravida de novo. É quando o filme cada vez mais parece se aproximar do tema e atmosfera de O Bebê de Rosemary, de Roman Polanski.



Somada a ausência física e emocional do marido (ou está viajando ou diante da TV assistindo aos jogos da Copa do Mundo na Espanha de 1982), Lola terá que lidar sozinha com suspeita crescente de que as crianças têm a ver com algum tipo de agenda demoníaca - principalmente quando flagra Tin e Tina tentando batizar o bebê recém-nascido na piscina para “purificar” sua alma.

Em muitas linhas de diálogo, o marido Adolfo insiste na mensagem de que o casal deve pensar no futuro. Sempre tendo como fundo, imagens da TV com notícias da jovem democracia espanhola pós ditadura franquista. No entanto, estão ali, diante deles, o passado da Espanha: os jovens Tin e Tina, vítimas da lavagem cerebral do passado conservador que os faz interpretar literalmente os versículos bíblicos. Fazendo-os involuntariamente criar situações aterrorizantes para os pais.



Tin e Tina trazem uma mensagem para o futuro: o passado persiste e continuará como um peso enquanto não for redimido. Continuará assombrando como um fantasma o futuro. Até um ponto em que o futuro deixa de ser o futuro – uma espécie de eterno retorno.

A mensagem do filme é tanto política (como observamos na atualidade, a ascensão do extremismo de direita nas democracias europeias – o caso de racismo contra o jogador Vini Jr. no futebol espanhol é uma evidência da ascensão dos “ultras” de extrema-direita entre as torcidas dos clubes na “La Liga”) quando existencial – não há futuro enquanto o passado não for redimido.


 

Ficha Técnica 

Título: Tin & Tina

Diretor: Rubin Stein

Roteiro: Rubin Stein

Elenco: Milena Smit, Jaime Lorenti, Carlos Gonzalez Morollón, Anastasia Russo

Produção: Tin & Tina La Pelicula AEIE

Distribuição:  Netflix

Ano: 2023

País: Espanha

 


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