segunda-feira, março 15, 2021

Covid exploitation: o Mal e o demasiado humano em 'Host' e 'Safer at Home'


Se a Web 1.0 nos deu a “Bruxa de Blair” (1999) e o subgênero “found footage”, a Web 2.0 lança a “covid exploitation”: uma série de filmes que, em meio à pandemia global, exploram as mazelas humanas que aparecem na comunicação espectral: redes sociais e vídeo chats que simulam as relações presenciais em meio ao isolamento social. O diretor britânico Rob Savage e o americano Will Wernick despontam como principais expoentes nesse subgênero. Os filmes “Host” (2020) e “Safer at Home” (2021) são narrativas metalinguísticas através das janelas de web chats – em “Host” uma entidade mortal invade uma espécie de Tábua de Oija virtual pelo Zoom; e em “Safer at Home”, a nova variante Covid-22 mata milhões enquanto jovens comemoram aniversário pelo Zoom consumindo uma droga sintética que virou febre durante a pandemia nos EUA. Então a paranoia, medo e suspeita de crime toma o lugar da festa através do vídeo chat. 

O diretor britânico Rob Savage vem se constituindo no principal expoente do novo subgênero fílmico covid exploitation. Nesse um ano de pandemia, acompanhamos a sua ascensão em filmes como Corona Zombies (mortos pela Covid viram zumbis vingativos), Coronavirus: The Movie (produção hindu), Corona: Fear is a Virus (em meio à pandemia, um grupo fica preso num elevador no Canadá), A Casa da Praia (uma pandemia que vem do oceano), a série Slborn (uma pequena comunidade numa ilha observa indiferente a pandemia global pela TV) ou o curta Apocalypse Norway (um grupo de adolescentes numa área costeira remota ignora a chegada de um vírus apocalíptico na Europa).

Mas os filmes de Rob Savage e Will Wernick, respectivamente Host (2020) e Safer at Home (2021), se destacam: suas narrativas são uma verdadeira metalinguagem sobre o destino dos relacionamentos humanos num contexto de isolamento social e medo mediado pela Internet, redes sociais e plataformas de vídeo conferências, chats e webnars. Uma paisagem relacional que o pesquisador Ciro Marcondes Filho chamava de “comunicação espectral”.

A comunicação com a alteridade, o outro, desaparece para ser substituída pela mediação por espectros: o rosto é substituído pelo avatar, juntamos as frases do outro e simulamos sua presença através de informações que reunimos na memória e a intensidade da vivência não é mais através dos sentidos presenciais (audição, tato, olfato etc.) – é substituída pela quantidade de redes nas quais participamos (“rede oscilatória”) e como o nosso ego passa a ser um nó de relações – Leia MARCONDES FILHO, Ciro. O Princípio da Razão Durante: O conceito de comunicação e a epistemologia metapórica, Paulus, 2010.

O relacionamento entre telas de computadores mobiliza exclusivamente sinalizações e informações (ícones, imagens, dados) – nos fundimos com a tela mas essencialmente não nos comunicamos: não há um acontecimento, que é por natureza presencial.



Portanto, como fazer um filme na atual crise pandêmica que força a todos o isolamento social? Qual acontecimento poderia ocorrer quando nos relacionamos por meio próteses comunicacionais que simulam situações presenciais? Que realidade por existir nessa situação espectral e simulatória? Rob Savage e Will Wernick nos dão duas respostas: pela invasão do Mal e do sobrenatural como contaminação viral (Host); e o medo e a paranoia que invadem uma festa de aniversário mediada pela plataforma Zoom (Safer at Home).

 Essa variação da covid exploitation, como thrillers filmados em vídeo chats em tempo real, é uma solução criativa econômica e logística de produção: atores que atuam respeitando as medidas de isolamento atuando em uma plataforma que resolve a logística de um set de filmagem. Filmes curtos, em torno de uma hora. É talvez o tempo máximo de rendimento de um intenso exercício metalinguagem, como fosse um filme dentro de um filme: a simples filmagem do que ocorre na interface de um vídeo chat.


'Safer at Home'

Os Filmes

Host é um filme de terror de apenas 56 minutos sobre uma reunião de amigos no Zoom assombrada por alguma entidade sobrenatural. 

Seis amigos se conectam ao Zoom para uma sessão de chat de vídeo, liderada por uma espiritualista escocesa chamada Seylan (Seylan Baxter). Ninguém no chat, além de Seylan, está levando esse ritual a sério, embora Haley (Haley Bishop), repreende o grupo, tentando fazer com que seus amigos pareçam respeitosos. Naturalmente, é apenas uma questão de minutos até que as melhores amigas de Haley riam – toda vez que Seylan enuncia a expressão “plano astral” alguém da turma entorna mais um gole de vinho. 

Estamos na clássica situação amigos que se encontram para fazer o “jogo do copo” ou Mesa Ouija, só que agora virtual – a combinação curiosidade e sarcasmo nunca faz as coisas acabarem bem. Mesmo se você rir, ainda estará sozinho na sua casa diante da tela do computador, à espera de que algo salte de uma porta, armário ou de uma escada perigosamente mal iluminada.

É justamente por essa combinação que o Mal entrará: a tela e a mediação de uma plataforma dão uma sensação de segurança e não envolvimento. Afinal, bastar apertar a tecla “esc” e cair fora... o quê pode dar errado? 

Host faz uma curiosa analogia entre o Plano Astral e a Internet. O Mal opera por contágio, assim como nas redes digitais memes, fake news, pós-verdades etc. também se propagam de maneira viral. Aliás, discutíamos em postagem anterior o livro “Dark Star Rising”, de Gary Lachmann, como o desenvolvimento da Internet transformou-se numa via importantíssima para o desenvolvimento da Magia do Caos – como a rede tornou-se o próprio substituto do Plano Astral através do qual a “política do Caos” transformou-se em ferramenta política sincromística que conduziu Trump e a extrema-direita ao poder – clique aqui.

Lá fora há o vírus Covid-19. Mas através das redes que nos ajudam a mantermos isolados circula o Mal propagando-se também como fosse um vírus. Dessa maneira, a curiosidade do argumento de Rob Savage é a, por assim dizer, materialidade da situação virtual: a aparente distancia e segurança que a mediação tecnológica nos proporciona (estamos isolados uns dos outros, protegidos por uma situação virtual ou espectral) pode ser o meio através do qual o Mal pode viralizar. 


'Host'


Justamente por essa falsa segurança: todos da Mesa Ouija virtual acham que tudo é mais uma brincadeira inconsequente. Qualquer coisa, basta puxar o fio da tomada. A comunicação espectral turva as três âncoras com o mundo real: finitude, temporalidade e senso de fragilidade corporalEssas âncoras representam a base toda ética ou moral. Sem elas, o que temos é o crescimento da amoralidade, a partir do momento que nesta interface tecnológicas os limites entre o Eu e o Outro se esfumam para produzir, em seu lugar, indiferença.

‘Safer at Home’: droga e paranoia

Esses temas repetem-se em Safer at Home de Will Wernick. Apenas o sobrenatural é substituído por uma droga recreativa chamada Molly, que virou febre nos EUA durante o isolamento social na pandemia: uma droga sintética semelhante a um estimulante como MDMA. Produz sentimentos de energia aumentada, prazer, calor emocional e percepções alteradas de tempo e espaço.

Safer at Home se passa no futuro próximo, quando o país está sendo assolado por uma nova variante do coronavírus: a Covid-22. A montagem de abertura projeta um cenário trágico da negligência pandêmica inicial de Trump, com várias novas cepas COVID, toques de recolher e caos social, com mais de 30 milhões de americanos mortos pelo vírus em meados de 2022.

Apesar de tudo, é o aniversário de Evan (Dan J. Johnson). Seus amigos e parceiros estão comemorando da melhor maneira possível pelo Zoom. Sua namorada Jen (Jocelyn Hudon), com quem mora há algum tempo, tem uma surpresa relacionada a um teste de gravidez que ela está guardando para contar a ele mais tarde, embora ela não consiga resistir de contar a Austinite Harper (Alisa Allapach), a única solteira do grupo. 




Os outros são o casal gay nova-iorquino Ben (Adwin Brown) e Liam (Daniel Robaire); e em LA (como Evan), Oliver (Michael Kupisk) e sua nova namorada Mia (Emma Lahana), que recentemente escapou de um relacionamento abusivo. É Ollie que mandou pacotes de lembrancinhas para todos, incluindo Ecstasy, que (depois de superar a resistência do nervoso Ben) todos administram.

O calor emocional e prazer aumentam nas trocas de conversas, a ponto de um dos casais começar a se tornar um tanto impróprio diante da webcam. Mas o medo de que essas drogas não sejam exatamente como anunciadas logo surge, já que alguns começam a experimentar paranoia, ansiedade e raiva. 

De fato, um dos casais começa a ter uma briga aos gritos que resulta em danos graves - acidentalmente, Jen tropeça e bate a cabeça na quina de um móvel e cai inconsciente em meio a uma poça de sangue. Mas como nem todo mundo (ou ninguém, na verdade) estava prestando atenção em sua tela no momento, o espectro da culpa criminal surge entre todos.

Chega ao momento que ninguém consegue mais distinguir a realidade das percepções de medo e paranoia.  Jen está morta mesmo? Parece pouco importar para Evan que, ao invés de chamar paramédicos, pensa em fugir para a rua (sempre carregando o celular para continuar no vídeo chat com os amigos da “festa”) e ser perseguido pela polícia que vigia o toque de recolher. Por que a polícia o persegue pelas ruas de LA? Será porque os vizinhos descobriram que foi ele que matou Jen num típico caso de abuso doméstico?


'Host'


Safer at Home sofre de alguns problemas de verossimilhança, muito mais do que Host: como o telefone ou laptop está sempre posicionado para criar a imagem perfeitamente centralizada ? Isso nem mesmo acontece quando você está tendo um chat de vídeo normal agora. 

Além disso, quando está sendo perseguido, você não corre com um smartphone filmando seu rosto. Especialmente durante as filmagens horizontais.  São, entre outras, cenas muito remotamente críveis.

Porém, nada comprometedor, como se Rob Savage esperasse do espectador a chamada suspensão da incredulidade, pacto básico entre espectador e qualquer obra ficcional.

Ao lado de outros filmes centrados em vídeo chats como Screenlife ou SearchingHost e Safer at Home são descendentes Web 2.0 do sucesso de Bruxa de Blair (Blair Witch Project, 1999), subproduto da Web 1.0 que inventou o subgênero found footage. O sucesso de Bruxa de Blair (primeiro sucesso viral a partir de chats e fóruns da primeira Internet) já apontava para a Web 2.0, onde a viralização ocorre dessa vez nas redes sociais e vídeo chats em dispositivos móveis.

Depois do found footage, agora a Web 2.0 nos entrega a covid exploitation – a exploração de todas as mazelas humanas da comunicação espectral.


 

Ficha Técnica 

Título: Host

Diretor: Rob Savage

Roteiro: Gemma Hurley, Rob Savage

Elenco: Haley Bishop, Jemma Moore, Emma Louise Webb, Radina Dandrova

Produção: Shadowhouse Films

Distribuição:  Shudder

Ano: 2020

País: Reino Unido

 

Ficha Técnica 

Título: Safer at Home

Diretor: Will Wernick

Roteiro: Will Wernick, Lia Bozonelis

Elenco: Allisa Allapach, Adwin Brown, Katie Hall, Jocely Hudon, Dan Johnson

Produção: 7930 Entertainment

Distribuição:  Vertical Entertainment

Ano: 2021

País: EUA

 

Postagens Relacionadas


O sobrenatural pode ser digital?



Em “Buscando...” as mesmas mídias com as quais nos comunicamos também nos dividem



A luta de classes zumbi em “Corona Zombies”: o primeiro filme baseado no coronavírus



“A Casa da Praia”: somos um pequeno ponto dentro de um universo indiferente


 

Tecnologia do Blogger.

 
Design by Free WordPress Themes | Bloggerized by Lasantha - Premium Blogger Themes | Bluehost Review