sábado, julho 23, 2011

Indústria do Entretenimento Não Consegue Assimilar M.C. Escher

Ao contrário das vanguardas artísticas que foram facilmente assimiladas pela estética videoclipe e publicitária, as imagens de Escher ainda causam estranheza. A indústria do entretenimento tenta enquadrá-las como curiosidades visuais expostas em instalações que mais lembram as "casas malucas" dos parques de diversões. O cinema talvez tenha sido o campo que melhor compreendeu a natureza recursiva das suas imagens.


Certa vez indagado se poderia dar uma definição para sua obra, Escher respondeu: “Eu busco mistérios. Sempre os jovens me perguntam se eu faço Op Art. Não sei o que é isso, Op Art. Esse é o trabalho que venho fazendo há 30 anos”.

Definitivamente, a obra do artista gráfico holandês Maurits Cornelius Escher (1898 – 1972) não é de fácil definição: arte matemática? Efeitos de ilusões de ótica? Surrealismo? Arquiteturas impossíveis? Geometrias absurdas?

O fato é que, ao contrário das vanguardas artísticas da primeira metade do século XX que foram rapidamente assimiladas pela estética publicitária e cultura pop audiovisual, o trabalho de Escher sofre uma assimilação lenta, indigesta. Dentro da indústria do entretenimento o destino de Escher é ter os seus trabalhos expostos em instalações que os traduzem como divertidas anomalias, ilusões de ótica curiosas, quebra-cabeças imaginários para o olhar ou mundos ou “arquiteturas impossíveis”. Ou, o que é pior, convertem as imagens de Escher em instalações que lembram as “casas malucas” ou “espelhos mágicos” dos parques de diversões.

Assim como as vanguardas artísticas, Escher desafiou a invenção renascentista do artifício do desenho em perspectiva que trazia, em germe, o Humanismo: o olhar que toma o homem como o centro que observa o Universo por um único ponto de vista espacial e temporal. A tela emoldurada como a analogia de uma janela de onde o homem soberano a tudo observa e onde todas as linhas convergem para um único ponto de fuga no horizonte.

Porém, as estratégias e os destinos foram diferentes.

Cubistas e dadaístas confrontaram o figurativismo da perspectiva com a linguagem da fragmentação: os pontos de vistas fragmentados da obra “Les Demoiselles d’Vignon” de Picasso ou os “ready mades” e “cut ups” dos dadaístas acabaram se materializando na estética videoclipe da MTV e na linguagem em hipertexto da Internet. Enquanto isso, surrealistas como Magritte e Dali criavam imagens oníricas para se contrapor ao humanismo cartesiano. Hoje, diariamente vemos a “imagerie” surrealista se materializando nos efeitos digitais dos vídeos publicitários.

Diferente deles, Escher buscou outro caminho. Ao invés das imagens oníricas e fragmentadas, ele explorou os paradoxos dos princípios geométricos e matemáticos da ilusão da perspectiva. Por isso, há algo que ainda incomoda na arte gráfica de Escher: dentro do cânone da representação figurativa Escher descobriu uma falha. Com ele aprendemos que se levarmos ao limite os princípios cartesianos da realidade (ponto de fuga, perspectiva tridimensional, perspectiva paralela etc.), encontramos a distorção, a anomalia, a anamorfose.  

Por isso, a indústria do entretenimento ainda não sabe o que fazer com Escher. No máximo, transformá-lo em curiosidade visual exposta em instalações, t-shirts ou referências intertextuais em filmes e games de computadores.

Instalação na exposição de M.C. Escher em São Paulo que
simula ilusão de ótica
Na medida em que encontrou uma anamolia na representação tridimensional no plano, Escher talvez tenha encontrado a ilusão daquilo que entendemos por “realidade”. Se a nossa percepção historicamente foi determinada pelas representações em espaços planos (da tela emoldurada na arte à tela dos computadores), talvez Escher tenha descoberto a ilusão dos modelos pelos quais traduzimos a realidade: imagens sem referenciais que nada conseguem representar a não ser a si mesmas, em um louco efeito recursivo, sem nenhuma referência com o “real”.

Recursão: imagens emaranhadas

Douglas Hofstadter no livro “Gödel, Escher, Bach: na Eternal Golden Braid” propõe chamar de “recursiva” as imagens de Escher como na célebre imagem da mão que desenha a mão onde uma linha desenha duas figuras sem deixar lugar para um fundo, abolindo a hierarquia figura-fundo da percepção.
“Emaranha ainda mais a hierarquia que se torna assustadora para a razão linear: como fazer a marcação e discernir entre causa e efeito, aquele que desenha e o que é desenhado, o operador e seu objeto? Essa figura parece a fixação em câmera lenta de um turbilhão ou causalidade circular. (...) Vamos falar de recursão quando se trata da própria energia que reentra do efeito na causa, ou quando o output alimenta o input em retorno” (BOUGNOUX, Daniel. Introdução às Ciências da Informação e da Comunicação. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 234-5).
Assim como na linguagem da computação onde cada problema contém a instância menor do mesmo problema, reduzindo-a até voltar à instância original, em Escher as linhas e formas descrevem movimentos de causalidade circular, onde a multiplicidade de pontos de vista não é dada pela fragmentação, colagem ou sobreposições, mas pela continuidade. Figura e Fundo, observador e observado, formam um emaranhado. A imagem não mais representa algum evento, objeto ou situação referencial. Ela remete a si mesma.

Dessa maneira, Escher rompe com o cânone ocidental do figurativo e da representação das imagens ao expor a ilusão: as imagens jamais representaram, elas são pura ilusão e feitiço!

Daí o fascínio de Escher ao visitar Alhambra, na Espanha, ao ver os mosaicos neste palácio de construção árabe: figuras entrelaçadas formando belos padrões geométricos e não figurativos já que o Islamismo proíbe essa natureza de representação pelo perigo do feitiço e da idolatria que as imagens podem evocar.

Escher vai pegar o princípio recursivo dos emaranhados geométricos e embutir no âmbito das representações e da ilusão figurativa ocidental. Se desde o início o poder católico ignorou as advertências do Velho Testamento bíblico sobre a idolatria das imagens e as colocou nos altares e catedrais como as verdadeiras representações figurativas do Divino, Escher expõe em seus enigmas o vazio de todas as representações: os códigos das imagens são intransitivos, não remetem a nada fora delas mesmas, seja o Divino ou o Real. São simulacros.

Escher e a recursividade no cinema

Talvez seja no cinema onde encontramos a melhor tradução da recursividade das imagens de Escher.  Embora na maioria das vezes as referências a Escher cumpram mais uma função estilística ou de intertextualidade (filmes como Labirinto, A Magia do Tempo – Labirinth, 1986 ou “A Origem” – Inception, 2010, entre outros videoclipes e desenhos animados), em muitos filmes se transformam em forte simbolismo que expressa a diluição das fronteiras entre ilusão e realidade e de eventos onde causa/efeito se encontra emaranhado em causalidades circulares.

Podemos selecionar dois exemplos: os filmes “O Pagamento” (Paycheck, 2003) e “A Passagem” (Stay, 2005).

Em “O Pagamento” (“sci fi” baseada em obra do escritor Philip K. Dick). Toda a trama gira em torno da empresa Allcom e a sua máquina secreta de prever o futuro, baseado em uma lente especial que reproduz a própria curvatura do continuum tempo/espaço do universo. Na verdade, é uma máquina recursiva de prever o futuro. Através de um mecanismo de profecia auto-realizadora o futuro previsto não acontece porque estava lá, mas por que a sua divulgação faz o futuro previsto acontecer de fato.

“Meu Deus, é o futuro. A máquina prevê a guerra, entramos em guerra para evitá-la. Prevê uma praga, juntamos todos os doentes e acabamos criando uma praga. Todo o futuro que ela prevê, fazemos acontecer. Perdemos todo o controle sobre nossas vidas. Ver o futuro nos destruirá. Se mostrar o futuro a alguém, ele não terá futuro”, diz perplexo o protagonista Jennings ao descobrir a verdadeira natureza do futuro. É a ironia final: o futuro dobra-se sobre si mesmo, criando um efeito recursivo.

Por isso, na iconografia do filme a figura do círculo se repete de diversas formas em diversas situações: bolas de “boading” chinesas, a repetição de cenas onde os protagonistas estão refletidos em superfícies curvas como bolas de cristal (referência a outra famosa gravura de Escher) etc.

No filme “A Passagem” transcorre duas narrativas paralelas que aos poucos se interpenetram: um acidente automobilístico na ponte do Brooklin que abre a primeira sequência e a estória do psiquiatra que tenta desesperadamente evitar o suicídio de seu paciente Henry. Sabemos que uma realidade é imaginária e a outra real. Mas qual? Ou será que ambas são oníricas?  Há muitas referências iconográficas do visual das obras de Escher: planos inclinados de escadarias focalizadas do alto, pessoas nestas escadarias mostrados duplicados ou triplicados. Muitas vezes podemos ver duas ou três pessoas caminhando lado a lado, vestindo as mesmas coisas e carregando os mesmos objetos (veja imagens abaixo).


Mas esse acúmulo de referências não se limita a um mero recurso estilístico, mas está diretamente associada à visão recursiva do tempo/espaço que o universo alternativo de Henry apresenta. Os eventos são cíclicos e a distinção causa e efeito não está muito clara na narrativa. A frase final do psiquiatra Sam (“se isso é um sonho, o mundo inteiro está dentro dele”) é síntese da simbologia recursiva do filme: quem está sonhando quem?

Portanto nesses dois filmes temos referências às imagens de Escher exploradas na sua radicalidade: a recursividade como a base da ilusão cartesiana da percepção não só dos protagonistas dos filmes, mas também a do próprio espectador diante narrativas emaranhadas onde a realidade é sempre instável e multifacetada.

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