segunda-feira, julho 11, 2011

Filme "2033": Quando a Religião vai do Ópio à Libertação

A ficção científica mexicana "2033" (2009) é o sintoma do mal estar-estar de um país arrasado pela violência do narcotráfico e pelo desastre econômico após anos de políticas neoliberais.  E surpreende ao retratar a religião não como o ópio mas como instrumento de resistência e libertação.

Indicado pelo leitor desse humilde blog Nelson Jonas, a ficção científica mexicana “2033”, embora carregada de clichês das sci-fi norte-americanas, desempenha o importante papel de ser o contraponto crítico de uma época. Se no seminal neoliberalismo da década de 80 de Margareth Thatcher e Ronald Reagan tivemos filmes como “Robocop” (1987 – ambientado em uma Detroit onde o Departamento de Polícia era privatizado pela empresa OCP criando um sistema político corrupto envolvendo um cartel de drogas), no filme 2033 temos um México pós-experiência neoliberal onde o Estado foi reduzido a sua forma fascista (repressiva e policial) e as grandes corporações bancam um apartheid sócio-econômico.

Ao lado disso o filme aborda o tema da Religião. Se nas sci-fi distópicas como “O Livro de Eli” (The Book of Eli, 2010 – já analisado nesse blog, veja links abaixo) a religião é apresentada como o “ópio” do povo nas mãos dos poderosos, no filme mexicano ela desempenha o surpreendente papel de resistência e libertação. Isso porque no sistema fascista pós-neoliberal o ópio ideológico passam a ser as drogas produzidas por uma poderosa corporação farmacêutica.

O filme “2033” é a estreia do diretor Francisco Laresgoiti, fundador da produtora La Casa de Cine e conhecido como diretor de vídeos publicitários, curtas e vídeos experimentais.  A narrativa se passa na Cidade do México de 2003, agora conhecida como Villa Paraíso. Um Estado convertido em mero aparelho policial e repressivo controla a sociedade, bancado por corporações de telecomunicações, farmacêuticas, energia e Cryo-pausa (onde intelectuais, cientistas e políticos são guardados em armazéns congelados para que suas mentes sejam reprogramadas para posteriormente serem úteis aos sistema).

O enorme desenvolvimento tecnológico apenas fez aprofundar a divisão social: nos subúrbios vivem os pobres que são caçados por esporte pelos ricos como fossem animais. Ao mesmo tempo, os cidadãos são “pacificados” pela bebida viciante chamada “pactia” cujo principio ativo é uma droga chamada “Tecpanol” produzida pela corporação farmacêutica Phaarmax.  Dessa forma, temos um retrato distópico: enquanto os cidadãos são oprimidos quimicamente, os pobres o são pela miséria e violência (uma interpretação do México atual?).

O protagonista é Pablo (Claudio Lafarga), um jovem profissional do mercado financeiro, arrogante e submerso em um mundo de luxo, drogas e álcool. Ele terá sua vida transformada ao conhecer um sacerdote misterioso conhecido como “Padre Miguel” (Marco Antonio Treviño) que mostrará para ele a verdade.

Padre Miguel lidera os “fanáticos”, “religiosos” ou “crentes”. A autonomia eclesiática foi abolida e a prática religiosa é reprimida. Juntos formam um grupo de resistência para derrubar o regime.

Fármaco-política versus Religião

O diretor Laresgoiti afirma que o filme “2033” pretende ser “uma visão real do que pode acontecer em meu país onde persistem os excessos no âmbito econômico, político e social”.  Sabemos que as consequência das experiências neoliberais no México desde a incorporação do país ao Nafta (Tratado de Livre Comércio da América do Norte) em 1992 têm sido nefastas: liquidação das empresas públicas por meio de privatizações, sucateamento do Estado e crescimento da pobreza com a ampliação das indústrias “maquiladoras” (industrias onde processo industrial ou de serviço é destinado à transformação, elaboração ou reparação de mercadorias vindas de fora do país, importadas temporariamente para sua exportação posterior).

O resultado final desse “estado mínimo” é o crescimento endêmico do narcotráfico que se utiliza da corrupção de um Estado pauperizado para servir de rota que abastece o mercado do vizinho EUA (ainda mais facilitado pelas desérticas fronteiras entre os dois países).

Embora o filme “2033” nos faça lembrar do clássico “1984”, nesse filme o Estado não segue a linha totalitária do “Big Brother” de Orwell: aqui, o Estado privatizou as funções de manipulação ideológica através da Pharmaax e limitou-se à função de repressão física. A bebida Pactia dispensa um Estado que imponha o medo através de dispositivos de vigilância. Todos são “pacificados” quimicamente e seguem a suas vidas obedientes, como zumbis produtivos (o lema de Villa Paraíso é “Produza, Consuma e Seja Feliz”).

Em postagem anterior (veja links abaixo) cogitamos a existência de uma fármaco-política com a banalização do consumo de antidepressivos impulsionado pelo lobby midiático da indústria farmacêutica.

Nesse contexto a religião passa a ser dispensável e indesejável para o Estado por se tornar a forma de identidade das massas excluídas nos guetos dos subúrbios. No filme “2033” a religião parece retornar às próprias origens do Cristianismo como grupo subversivo de resistência ao império romano. Sabemos que o Cristianismo surge nas tensões sociais na Palestina sob o jugo dos romanos em 64 A.C. As mensagens de amor ao próximo, perdão, compaixão e desapego ao materialismo trazidas por Jesus ameaçavam o domínio romano (que nunca fora completo na Palestina).

Na narrativa de “2033” o líder “Padre Miguel” encarna essa natureza progressista e, porque não dizer, gnóstica da religião: ir além da consolação ao propor um novo paradigma ético e moral que desafie uma ordem existente ao nos fazer despertar para a possibilidade de um outro mundo.

Dessa maneira, o filme se enquadra nas distopias pós-modernas: o futuro é representado não como algo diverso, mas como um desdobramento ou potencialização das tendências do presente: Neoliberalismo, privatização do Estado e a dependência fármaco-química.

É crucial em “2033” como a catarse religiosa é substituída pela catarse química como uma projeção dos tempos atuais. No filme apresenta como a Phaarmax, sob a aparência de ser um centro de medicina para altruísticos estudos da anatomia humana, na verdade pesquisam os mecanismos neuronais que produzem o fenômeno da consciência para posterior intervenção química (qualquer semelhança com a agenda neurocientífica atual não será mera coincidência). Dessa maneira, a religião como instrumento ideológico fica dispensável. O que liberta a catarse religiosa para o seu gnóstico papel: o de despertar.

Sintoma e documento

Cinematograficamente falando, 2033 apresenta muitos problemas. O acúmulo de clichês das mais antigas que remontam a “Mad Max” até referências claras  a Gattaca, Minority Report, THX 1138 tornam o filme um pastiche estético. Efeitos especiais são requintados mas mal realizados (a infografia está mal integrada aos cenários reais como, por exemplo, nas tomadas aéreas desfocadas onde os prédios em CGI se destacam focados). A fotografia é mal aproveitada ou sem padrão (muitas vezes falta profundidade de campo e uso da cor é heterogêneo com mudanças bruscas de matiz numa mesma sequência). Sem falar no protagonista Pablo, sem aprofundamento psicológico. O que é lamentável pois sua transformação íntima (de yuppie materialista do mundo financeiro à ativista da causa dos “religiosos”) inexplicavelmente não ganha destaque no filme. Em poucos planos a narrativa resolve o seu processo de conscientização. Muitos críticos mexicanos apontam tecnicamente o filme como falho e mal feito (veja, por exemplo, “Filmaffinity” em http://www.filmaffinity.com/es/reviews/1/867250.html).

Talvez, por isso, a grande virtude de “2033” é ser, ao mesmo tempo, o sintoma do mal estar-estar de um país arrasado pela violência do narcotráfico  e o documento de uma projeção política das consequências do desastre econômico mexicano após anos de políticas neoliberais.

Ficha Técnica

  • Título: 2033
  • Direção: Francisco Laresgoiti
  • Roteiro: Jordi Mariscal
  • Elenco: Claudio Lafarga, Sandra Echeverria, Raúl Méndez, Marco Antonio Treviño, Alonso Echánove, José Carlos Rodriguz e Ariane Pellicer
  • Produção: La Casa de Cine
  • Distribuição: Cinema Epoch (EUA – 2011)
  • Ano: 2009
  • País: México




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