sexta-feira, abril 08, 2011

Mídia tenta racionalizar a presença do Mal no Massacre em Realengo

Diante do massacre de adolescentes cometido por um jovem armado com dois revólveres em uma escola do bairro do Realengo no Rio de Janeiro (um fato tão cruel, arbitrário e aparentemente sem sentido), a mídia tenta buscar uma causa lógica. Como sempre, o que a mídia chama de informação é, na verdade, a tentativa de encaixar fatos tão irredutíveis a “plots” ou “roteiros” pré-estabelecidos.  Tenta expurgar a presença do Mal na realidade. Porém, uma criminologista e um antropólogo foram vozes alternativas dentro dessa estratégia midiática de dissuasão.

Um psiquiatra forense vai à TV e declara que o atirador sofria de “cisão mental”; o  jornal Folha de São Paulo on line informou que “irmã do atirador diz que ele era ligado ao Islamismo e não saia muito de casa” (07/04/2011 às 10h53); o site do Jornal Extra das Organizações Globo às 11h37 do mesmo dia noticiou que o atirador “se interessava por assuntos ligados ao terrorismo”; em vários telejornais do dia pessoas próximas ao atirador declararam que ele era “fechado” e “só vivia na Internet”.

Por todos os lados vemos o tradicional esforço midiático para, diante da irrupção de fatos irracionais, aleatórios ou arbitrários, racionalizar ou dar algum sentido para o fato, muitas vez de forma atabalhoada (vide o caso da “barriga” jornalística do cão caramelo na tragédia nas serras fluminenses). Psicólogos e especialistas são mobilizados em cima da hora para tentar dar uma explicação lógica diante das câmeras. Quase sempre esses especialistas mal conseguem esconder a perplexidade (com os olhos “vidrados” para as câmeras) e a cara de surpresa enquanto se esforçam em teorizar falando o óbvio.

Motivos místico-religiosos? Internet? Esquizofrenia? Um nerd que fazia pesquisas sobre bombas, armas e islamismo na Internet?

Porém, duas vozes escaparam desse rolo compressor racionalizante que pretende neutralizar a presença do Mal: a criminóloga Ivana Casoy e o antropólogo Roberto Albergaria (Doutor em Antropologia pela Universidade Paris VII).

Em uma entrevista na bancada do Jornal Hoje Ivana tentou associar essa tragédia a um fenômeno de “globalização”.  Não conseguiu desenvolver mais o raciocínio porque os entrevistadores estavam ávidos por uma descrição do “perfil de uma mente criminosa”.


Já no site “Terra Magazine”  Roberto Albergaria foi direto ao cerne da questão:
“Esse tipo de ato é bem característico do que os franceses chamam de "a violência pós-moderna". Ela é caracterizada por duas coisas: a confusão entre o real e o imaginário (cada vez mais é o imaginário que vem da televisão) e a ausência de sentido. São atos completamente arbitrários. Antigamente, era matar pra ter dinheiro, matar para ser herói, etc. Nos livros sobre a violência pós-moderna, fala-se na destruição pela destruição. Não adianta buscar sentido. O que eu estou sentindo na mídia o tempo todo é as pessoas buscarem um sentido. Claro, a sociedade precisa de um sentido, precisa encaixá-lo como psicótico, como vítima do preconceito contra os doentes mentais...” (http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI5054138-EI6594,00-Antropologo+Midia+usa+religiao+para+explicar+um+ato+sem+sentido.html)
A “parte maldita”

Jean Baudrillard (1927 - 2007)
Em postagens anteriores (veja links abaixo) viemos desenvolvendo a tese de que a mídia busca a “racionalização do Mal”.  Pessoas e acontecimentos extremos têm que ser encaixados dentro de “plots” ou roteiros pré-estabelecidos pela mídia, que tenta expurgar aquilo que o pesquisador francês Jean Baudrillard (1929 – 2007) chamava de “parte maldita” da realidade: o Mal.

Como um bom pensador gnóstico (a matriz filosófica da sua pesquisa científica provém do gnosticismo Cátaro), Baudrillard acreditava que o mundo estava cheio de sentimentos positivos e de sentimentalidade ingênua. Já não sabemos nomear o Mal, procuramos uma série de eufemismos, teorias e racionalizações para eliminar essa parte maldita do nosso cosmos:
“A energia da parte maldita, a violência da parte maldita é a do princípio do Mal. Sob a transparência do consenso, a opacidade do mal, sua tenacidade, obsessão, irredutibilidade, energia inversa sempre ativa no desajuste das coisas, na ultrapassagem das causas, no excesso e no paradoxo, na estranheza radical, nos atratores estranhos, nos encadeamentos inarticulados” (BAUDRILLARD, Jean. A Transparência do Mal – ensaios sobre fenômenos extremos, Campinas: Papirus, 1990, p. 114).
O Mal (o aleatório, o incerto, o caótico) é parte constitutiva da própria realidade. O Bem e o Mal são as duas partes que não encontram conciliação ou síntese dialética: são simbolicamente reversíveis e ironicamente complementares: a Paz produz a Guerra, a utilidade produz a inutilidade, a riqueza produz a pobreza e assim por diante.

A partir do momento em que toda a cultura (ciência, mídia, tecnologia etc.) tenta expurgar, racionalizar ou simplesmente denegar o Mal, o resultado é a catástrofe, ou, como definia Baudrillard, o surgimento de fatos “supracondutores”, a irrupção do Mal na sua forma mais irracional, explosiva e arbitrariamente cruel.
“Todos [os fatos supracondutores] são formas virais, fascinantes, indiferentes, multiplicados pela virulência das imagens, pois a mídia moderna tem em si uma potência viral, e sua virulência é contagiosa. Estamos numa cultura de irradiação dos corpos e dos espíritos pelos sinais e imagens e, se essa cultura produz os mais belos efeitos, como admirar-se de que ela produza também os vírus mais mortíferos” (IDEM, p. 44).
É notável o componente performático ou de "acting" nesses
fatos "supracondutores" (Foto: o atirador dos
atentados da Virginia Tech University (EUA) em 2007)
É notável o componente performático na conduta do atirador do Realengo (não só ele, mas de todos os casos nos EUA e Europa). Se ele vai ao local determinado a dar cabo da sua própria vida, seu suicídio deve ter um componente de drama ou acting. Há algo mais além da premeditação dos armamentos, suplementos de balas e carregadores automáticos: há o cálculo midiático. Assim como os vídeos virais hiperbólicos na Internet, seu gesto igualmente é pensado como viral, desde o início destinado e pensado para as ondas concêntricas das mídias.

O “ascetismo mundano”

Pesquisadores como o historiador norte-americano Richard Sennet (veja o livro O Declínio do Homem Público, São Paulo: Companhia das Letras, 1987) já chamaram a atenção para um traço novo na cultura globalizada: o “ascetismo mundano”. Se no passado um monge flagelava a si mesmo diante de Deus na privacidade da sua cela como prova de renúncia e sacrifício, hoje esse ritual de imolação e auto-sacrifício  já possui um traço narcísico e performático: tem que ser voltado para a disseminação viral através das mídias.

Para Baudrillard, esses fatos “supracondutores” (desencadeamentos intempestivos e intercontinentais) já não atingem somente Estados ou indivíduos, mas afetam totalmente as “estruturas transversais”: o dinheiro (crashs financeiros globais), sexo (a AIDS), a informação (o excesso que a reverte no contrário) e a comunicação (que não consegue mais reportar eventos, mas, agora, irrupções virais).

É claro que o psiquismo do atirador do massacre do Realengo é patológico. Porém, é um tipo de patologia que tem a marca da sua época: a época da repercussão viral através das mídias de toda e qualquer patologia, anomalia ou perversão que outrora se manifestavam na esfera privada ou na tragédia íntima da família.

Ao buscar a informação do sentido dos fatos, das causas e da suposta racionalidade mecânica dos acontecimentos, mais e mais o ambiente midiático produz ironicamente seu oposto: o Mal. Fatos que vão além das suas causas e indivíduos enlouquecidos que, assim como a mídia, procuram um “plot” ou uma “narrativa” para si mesmos onde possam encaixar seu ritual particular de imolação e auto-sacrifício. O elemento performático desses fatos “supracondutores” é o encontro dessas racionalizações do Mal do atirador e da própria mídia. 

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