sábado, março 12, 2011

Filme "Cisne Negro": o Drama do Artista Privado de Sua Arte

O filme “Cisne Negro” é brilhante ao criar uma fábula sobre drama mítico gnóstico : a interioridade humana (Luz, espontaneidade etc.) sendo explorada por um cosmos essencialmente corrompido que não permite a transcendência.  As necessidades mercadológicas de uma companhia de balé que transforma o autossacrifício público do artista no palco como um espetáculo. A plateia extasiada acredita estar diante da arte. Não percebe que, na verdade, está diante de uma exposição sensacionalista de aberrações em um parque de variedades.

Como encontrar perfeição artística e transcendência se os meios para alcança-las são corruptos e falhos por natureza? Esse parece ser o pressuposto do diretor Darren Aronofsky para a estória do balé soturno de Natalie Portman em “O Cisne Negro” (Black Swan, 2010). Muito mais do que um mergulho através do lado escuro da mente da protagonista Nina, Aronofsky narra de forma dura, seca e, em muitos momentos, violenta a forma como a indústria do entretenimento explora a espontaneidade humana (emoções, sentimentos, paixões) para colocar em movimento as estruturas rígidas e sem vida do mundo do showbiz.

A dinâmica dessa indústria exige sempre algo novo e excitante para ser apresentado, e essa novidade, cada vez mais, manifesta-se como um verdadeiro desnudamento ou sacrifício emocional do ator diante de uma plateia sedenta por novas emoções.

Darren Aronofsky parece familiarizado com temas gnósticos, como no filme “A Fonte da Vida” (The Foutain, 2006 – filme analisado nesse Blog) com muita simbologia alquímica. Aqui em “O Cisne Negro” ele aborda outro tema mítico gnóstico: o aprisionamento do ser humano em um universo essencialmente corrupto e inautêntico.  Prisioneiro nesse cosmos, o seu artífice (o Demiurgo) objetiva extrair da humanidade a Luz na vã esperança de tornar a sua criação uma obra autêntica.


Em postagens anteriores (veja links abaixo) traçamos uma história gnóstica da espontaneidade na indústria do entretenimento. Na oportunidade, buscamos entender as diferentes formas de prospecção e captura do “espontâneo” no ser humano (alegria, boa-fé, disposição, brilho, vitalidade, confiança etc., isto é, sentimentos e disposições que põem em movimento nossas vidas) para dar vida, emoção e sentimento a formas vazias e inertes da indústria do entretenimento.

Vimos que os métodos dessa busca são cada vez mais invasivos ao longo da história: do “brilho” das celebridades, a instrumentalização da espontaneidade de crianças e animais no cinema e TV até as formas mais perversas de sacrifício emocional do ator diante de um público sedento por dramas humanos bizarros e sensacionais. O novo, sempre o novo para evitar a paralisia e a implosão de um universo inautêntico.

É tendo como cenário esse tema gnóstico que encontramos a riqueza da discussão proposta por Aronofsky em “O Cisne Negro”.

Mas em primeiro lugar vamos à estória. Nina (Natalie Portman) entra numa espiral decisiva da sua vida. Bailarina da companhia New York City Ballet e já marcada pelas privações do ofício é consumida pela dança e pelo controle sufocante da sua mãe Erica (Barbara Hershey). Quando o diretor artístico Thomas Leroy (Vincent Cassel) decide substituir a veterana prima bailarina Beth (Winona Ryder), Nina é a sua primeira escolha para a nova temporada do Lago dos Cisnes. Mas Nina tem uma competidora: uma nova bailarina chamada Lily (Mila Kunis) que também impressiona Leroy. A nova montagem do Lago dos Cisnes exige que uma bailarina personifique, ao mesmo tempo, os cisnes branco (inocência e graça) e negro (sensualidade e astúcia). Nina enquadra-se perfeitamente no personagem do cisne branco enquanto Lily é a personificação do Cisne Negro. É o início de uma rivalidade que levará Nina a mergulhar em seu lado mais sombrio

É importante prestarmos atenção no contexto em que se encontra a New York City Ballet no filme. Logo no início do filme, vemos nos camarins bailarinas comentando que a companhia está quebrada. “Na verdade, ninguém vem mais ao balé e ponto. Só é preciso experimentar algo novo. Algo, não. Alguém novo!”, diz uma das bailarinas.

A Gestão do Medo

O problema colocado para o diretor artístico Leroy está claro: aposentar a prima bailarina veterana e promover uma nova “Swan Queen”. É a questão existencial da indústria do entretenimento: a busca incessante pela novidade. Mas não basta algo novo, mas alguém novo. Um novo elemento espontâneo e excitante que atualize o clássico Lago dos Cisnes. Como diz os posters na entrada do teatro: “Nova Temporada dos Clássicos”.

Nina luta para se libertar da opressão materna.
Porém,cairá numa forma de opressão
mais sutil e invasiva
Para conseguir isso, Leroy deve ser um manipulador para extrair o máximo das suas bailarinas, nem que, para tanto, tenha que arrancar da intimidade das personalidades delas os elementos espontâneos que possam dar vida aos personagens da peça no palco.

Leroy é o espírito das modernas gestões corporativas das relações humanas no trabalho: a gestão do medo, isto é, táticas para incitar o medo, paranoia e competitividade para que o stress seja o potencializador da produtividade. E essas táticas ignoram os limites éticos entre o público e o privado, a vida pessoal e o trabalho. Por isso, trás dos bastidores, Leroy vai jogar uma contra a outra, Nina e Lily.

Para conseguir o brilho, a fagulha ou a espontaneidade necessária para atualizar uma montagem clássica de balé, Leroy não respeitará qualquer limite ético. Ele sabe que Nina é reprimida sexualmente (devido à presença opressora da mãe, ex-bailarina frustrada que guarda um sentimento de piedade destrutiva com a filha). Obcecada pela técnica, Nina ignora o espontâneo e o criativo na dança. Nina sabe disso, e luta para se libertar da opressão materna. Leroy vai manipular ao nível da paranoia esse ponto fraco de Nina.

Porém, na companhia de balé ela cai em uma nova forma de opressão, ainda mais invasiva e sutil do que a opressão materna: a cobrança da apresentação dos sentimentos para alcançar as “emoções autênticas” no espetáculo. Ao artista moderno é cobrado que ele não apenas interprete personagens ou papéis, mas que ele faça um processo de imersão no personagem, passando a interpretar a si mesmo (representar o próprio psiquismo e a intimidade do artista) como forma de dar “autenticidade” à atuação no palco.

O resultado pode ser tanto a condição esquizofrênica do ator (a identidade se dilui na variedade de personas arquetípicas necessárias para dar vida a diferentes personagens) ou o ator que interpreta a si mesmo.

O artista privado de sua arte

O pesquisador norte-americano Richard Sennett em seu livro “O Declínio do Homem Público” faz uma interessante diferenciação entre apresentação e representação dos sentimentos na sociedade moderna.
“A representação de estados de sentimentos na sociedade intimista faz com que a substância de uma emoção dependa daquela pessoa que está projetando. A apresentação do sentimento é impessoal, no sentido de que a morte tem uma significação independentemente de quem está morrendo. A representação para uma outra pessoa daquilo que está acontecendo consigo mesma é idiossincrática; ao contar a uma pessoa a respeito da morte na família, quando mais o orador vir o que a morte faz seus ouvintes sentirem, mais intenso se tornará para ele o acontecimento (...) O trabalho de apresentar uma emoção é aparentado ao trabalho que um ator faz: tornar manifesto para outrem um matiz ou um estado de sentimento, que terá um sentido assim que tiver recebido uma forma. Uma vez que esse sentimento tem uma forma convencionalizada, pode ser expresso repetidas vezes. O ator profissional, que aprende a ter um bom desempenho noite após noite, é o padrão” (SENNETT, Richard. O Declínio do Homem Público. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 382.)
Leroy manipula Nina no sentido de que seu drama privado (a relação opressiva com a mãe) torne-se a energia para encarnar o cisne negro. Na conceituação de Sennett, Nina não apresentou, mas representou sua intimidade para dar força à representação do personagem do Lago dos Cisnes.

Leroy (Vincent Cassel): manipulará Nina até
o autossacrifício
Por isso sua atuação resume-se a uma noite: Nina fere-se mortalmente em um duelo íntimo com seus próprios fantasmas. Esse duelo final e mortal dá a ela a espontaneidade que Leroy buscava na atuação: o autossacrifício do artista diante da plateia extasiada. Por isso, o trabalho do artista deixa de ser perene para tornar-se efêmero, assim como sua celebridade e reconhecimento. É a obsolescência planejada do artista. 

Assim como Leroy aposenta a prima bailarina anterior (Beth), à Nina também estará reservado esse destino: após consumir-se diante do público até a morte, será esquecida.

Para Sennett, é a precarização do ofício de um ator destituído de sua arte: diante da necessidade continua por novidades excitantes, a indústria do entretenimento chega à última fronteira na exploração do artista: a diluição das fronteiras entre público e privado, alucinação e realidade, ator e personagem. Todos os fantasmas, idiossincrasias, dilemas e tormentos da vida privada do artista doravante serão explorados como combustível para os personagens ficcionais tornarem-se “realistas” e “autênticos”.

O filme “O Cisne Negro” é brilhante ao criar uma fábula de um drama gnóstico : a interioridade humana (Luz, espontaneidade etc.) sendo explorada por um cosmos essencialmente corrompido que não permite a transcendência.  As necessidades mercadológicas de uma companhia de balé que transforma o autossacrifício público do artista no palco como um espetáculo. A plateia extasiada acredita estar diante da arte. Não percebe que, na verdade, estão diante de uma exposição sensacionalistas de aberrações em um parque de variedades.

Ficha Técnica:
  • Título: O Cisne Negro (Black Swan)
  • Diretor:Darren Aronofsky
  • Roteiro: Mark Heyman e Andres Heinz
  • Elenco: Natalie Portman, Mila Kunis, Vincent Cassel, Barbara Hershey, Winona Ryder
  • Produção: Fox Searchlight Pictures, Protozoa Pictures, Phoenix Pictures
  • Distribuição: 20th Century Fox Film Corporation
  • País: EUA
  • Ano: 2010


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