segunda-feira, dezembro 13, 2010
Wilson Roberto Vieira Ferreira
"Poder Além da Vida" (Peaceful Warrior, 2006), baseado num best-seller da área de Auto-Ajuda, é uma oportunidade didática para estabelecer as diferenças entre Gnose e Auto-Conhecimento. Se toda ideologia tem o seu momento de verdade, a atitude gnóstica presente em alguns conceitos da Auto-Ajuda (como, por exemplo, a certeza de que tudo que precisamos já está dentro de nós) demonstra o momento de verdade desse ideário, que depois se perde no esforço de adaptar à força o indivíduo à realidade das instituições e corporações.
“Poder Além da Vida” passaria despercebido por este blog se o filme não fosse uma ótima e didática oportunidade de estabelecer uma distinção entre Gnose e Auto-conhecimento. Dos filmes sobre estórias de desafios superados e lições de vida, este filme está acima da média por apresentar, na primeira metade da narrativa, sérios elementos sobre Gnose e Gnosticismo. Porém, da metade até o final a narrativa desmorona para o
ideário do Auto-conhecimento e da Auto-Ajuda. Passam, então, a dominar a trama frases do teor como “o guerreiro nunca desiste”, fazendo-nos lembrar do Sr. Miyagi do filme “Karatê Kid”.
A estória gira em torno do ginasta Dan (Scott Mechlowicz) que tem tudo que um jovem pode querer na vida: medalhas, garotas, amigos, baladas, tudo pago pelos pais ricos que custeiam seus estudos e a carreira esportiva. Ele prepara-se para as classificatórias visando as Olimpíadas. Aparentemente feliz, é incomodado por insônias e, quando consegue dormir, as noites são dominadas por estranhos pesadelos onde vê-se a si mesmo caindo dos aparelhos de ginástica e suas pernas quebrando-se em vários pedaços. Até que um dia, numa das andanças de moto pelas madrugadas insones, para num posto de gasolina e conhece Sócrates (Nick Nolte). Sente-se atraído pela enigmática figura que passa questionar sua felicidade e valores e confrontar seu estilo de vida materialista e superficial.
Essa primeira parte do filme é interessante por apresentar diversos conteúdos de procedência gnóstica e simbolismo arquetípicos que remetem ao estado alterado de consciência basilidiano, isto é, a abertura para a gnose por meio do estado de suspensão mental.
Vimos em postagem anterior (veja links abaixo) que a cinematografia contemporânea vem trabalhando com três tipos de protagonistas que, segundo Nelson Brissac Peixoto (“Cenários em Ruínas”, Brasiliense, 1987), são estórias míticas de constituição da subjetividade pós-moderna: O Detetive, o Viajante e o Estrangeiro. Na primeira parte do filme “Poder Além da Vida” percebemos claramente que o protagonista é o Viajante. Dan tem aparentemente uma vida confortável e feliz. Mas algo está errado. A recorrente insônia é um sintoma de uma verdade que é esquecida por uma mente repleta de ruídos que não o permite enxergar o seu interior.
Frases de Sócrates como: “Diria que talvez esteja dormindo. É possível viver a vida toda sem estar acordado” ou “Quero que pare de reunir informações do seu exterior e comece a reunir informações em seu interior. As pessoas temem o que há por dentro. É o único lugar em que encontrarão o que precisam”, são tiradas da mitologia gnóstica que também estão presentes dentro do ideário das filosofias de Auto-ajuda. Como diria o filósofo Theodor Adorno, toda ideologia tem o seu momento de verdade.
Socrates começa, inclusive, a questionar Dan sobre a validade em buscar uma medalha de ouro nas Olimpíadas. Seus treinamentos são exclusivamente para a ginástica e não para a vida, desafia Sócrates. Inquirido por Dan, Sócrates diz desconhecer o significado das Olimpíadas. Afinal, ele não assiste à TV.
A imagem simbólica recorrente na primeira parte do filme é a queda: o medo do protagonista cair (do aparelho de ginástica, do alto de uma torre, de uma ponte, no teto do ginásio etc). É o simbolismo da gnose do personagem O Viajante: a queda é o momento simbólico de esvaziamento da mente, de concentração no momento (como Socrates demonstrará na prática para Dan ao empurrá-lo de uma ponte), do silenciamento da racionalidade e da linguagem. Cair significa perder tudo, deixar para trás tudo aquilo que é externo e que invade a mente. “Às vezes é preciso perder a cabeça antes de pensar racionalmente”, diz Sócrates no alto da cobertura do ginásio de esportes.
A partir dessa primeira experiência de queda real, Dan aprende a se concentrar no momento, esvaziar a mente a aguçar a percepção. Ele vai instrumentalizar essa técnica na ginástica, numa demonstração no aparelho cavalo com alça que impressionará ao técnico e toda a equipe. Vitorioso, corre para Sócrates para relatar a aplicação prática do “truque da mente”. Em resposta Sócrates desconstrói o otimismo pragmático de Dan: os ensinamentos nada têm a ver com a ginástica, vitórias, medalhas ou Olimpíadas. Nada é truque ou mágica, mas questionamento radical de valores, do seu estilo de vida e metas.
Retorno à Ordem: a Auto-Ajuda
Até esse momento, o filme “Poder Além da Vida” encontra-se acima da média dos filmes do gênero. A partir da metade da estória vemos, enfim, o filme retornar à ordem e tornar-se uma peça de divulgação do ideário da Auto-Ajuda.
A meta olímpica de Dan é recuperada. Sócrates começa a treinar Dan como um “Peaceful Warrior”, uma espécie de guerreiro silencioso e em paz com seu interior. Retomam-se todos os clichês dos filmes de lutadores ou guerreiros que se preparam espiritualmente para grandes embates: Dan deve começar por baixo, limpando o chão e os banheiros do posto de gasolina (qualquer semelhança com as práticas corporativas para a introjeção da hierarquia NÃO é mera coincidência) para aprender os valores da humildade e desprendimento.
E, finalmente, a sequência que marcará a diferença entre a Gnose e o Auto-conhecimento. A certa altura da estória, Sócrates fala que Dan finalmente está preparado para algo que ele pretende mostrar. Submete Dan a uma caminhada de três horas em florestas íngrimes, até chegar ao ponto final. Lá não há nada de especial para ser visto, a não ser a paisagem, flores e uma pedra ao lado de Dan. Lição: não importa o objetivo, o importante é a jornada, fala Sócrates para o atônito Dan.
Pois bem, esse é o mote que justifica a guinada da segunda metade do filme: se Sócrates questionava o vazio e futilidade da Vida de Dan, onde o apego materialista à Ginástica e medalhas olímpicas fazia parte de uma mente “cheia de ruídos”, na segunda metade temos o princípio conciliador de que, no final, os meios justificam os fins. Não importa o quão vazio é o sonho por medalhas de ouro: o que importa é se tornar um “Peaceful Warrior” que aprenderá muitas lições na jornada.
Essa guinada é ainda reforçada pelo acidente de moto que Dan sofre, tornando-se praticamente incapaz para o esporte. O que temos, a partir daí, é o desafio da superação para o guerreiro: de evento vazio e fútil, os jogos olímpicos tornam-se imbuídos de grande importância para o crescimento espiritual do protagonista.
Gnose significa uma radical forma de iluminação e transcendência que implica num confronto com o status quo. É o que distingue esse filme de “Vanilla Sky” (2001) ou “O Pagamento” (Paycheck, 2003), filmes que também exploram o arquétipo do Viajante: a experiência de queda (literal em ambos os filmes) e a gnose a partir do esvaziamento da mente e da racionalidade implicam no confronto com instituições e poderes do cosmos físico (em "Vanilla Sky" o confronto com a corporação Life Extension e em O Pagamento a luta contra a conspiração da empresa Allcom).
Sabemos que os Jogos Olímpicos na atualidade não é exatamente o tipo de oportunidade para grandes lições espiritualistas ou místicas, com tantos interesses de patrocinadores ou da indústria química de dopings em jogo. É nesse ponto que encontramos o ponto de distinção entre a filosofia da Gnose e todo o ideário da Auto-ajuda e Auto-conhecimento: aqui o que temos é uma forma de adaptação do indivíduo às exigências do Todo (instrumentalização de filosofias místicas ou espiritualistas às demandas corporativas de management), enquanto a Gnose implica em transcendência a partir da ruptura com os elos que nos prendem às demandas de reprodução ou funcionamentos do cosmos físico.
Disso decorre que a Gnose tem um forte componente político ao ter, como consequência, o questionamento de poderes e instituições.
Como bem apresenta o filme “Poder Além da Vida”, esse componente da Gnose é despolitizado. E a bela e poética imagem do Viajante onde o percurso é mais importante do que a chegada é esvaziada na prática: os meios justificam os fins. No final, a iluminação espiritual tem que se render às finalidades do mundo material (medalhas de ouro, vitórias), por mais vazias e corruptas que pareçam.
Como teologia secularizada que é a filosofia de Auto-Ajuda, o indivíduo só poder ser a fonte de erros e vícios, pois a verdade está sempre no Todo (Deus, instituições, corporações etc). No filme, Sócrates explicitamente fala que se fosse seu treinador, não haveria sexo, álcool e carne vermelha na vida de Dan. Dito e feito. Após uma noitada com bebida e sexo, Dan é imediatamente punido: sofre o acidente de moto quase fatal que por pouco encerra sua carreira esportiva. Essa punição é o que marca a guinada do filme para a filosofia de Auto-Ajuda.
Ficha Técnica
Título Original: Peaceful Warrior
Direção: Victor Salva
Roteiro: Kevin Bernhardt, baseado no livro de Dan Millman
Elenco: Nick Nolte, Scott Mechlowicz, Amy Smart, Tim DeKay, Ashton Holmes, Paul Wesley
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"Cinema Secreto: Cinegnose" é um Blog dedicado à divulgação e discussões sobre pesquisas e insights em torno das relações entre Gnosticismo, Sincromisticismo, Semiótica e Psicanálise com Cinema e cultura pop.
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No Oitavo Aniversário o Cinegnose atualiza lista com 101 filmes: CosmoGnósticos, PsicoGnósticos, TecnoGnósticos, AstroGnósticos e CronoGnósticos.
Esse humilde blogueiro participou do Hangout Gnóstico da Sociedade Gnóstica Internacional de Curitiba (PR) em 03/03 desse ano onde pude descrever a trajetória do blog "Cinema Secreto: Cinegnose" e a sua contribuição no campo da pesquisa das conexões entre Cinema e Gnosticismo.
Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, organizado pelo Prof. Dr. Ciro Marcondes Filho e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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