quinta-feira, janeiro 26, 2023

O terror reverso no filme 'It Comes at Night'


Uma família sobrevivente de uma pandemia que matou grande parte da população se abrigou em uma cabana remota para estocar água e comida, armados e desconfiados de qualquer um que se aproxime. Quantas vezes já vimos variações desse plot, com zumbis saindo de surpresa da floresta? Mas em “It Comes at Night” (2017) as coisas não são assim: os vilões não são mais zumbis ou ameaças pandêmicas, mas vem de dentro para fora - perdas, o luto, a dor, o medo, a desconfiança e a paranoia. No limiar entre civilização e caos, uma família mantém exigentes protocolos de segurança para criar algum senso de ordem e estabilidade. Até chegar uma jovem família desesperada em busca de refúgio, que fará emergir um vilão ainda mais mortal: o terror reverso.

 

Uma família desesperada armada até os dentes em uma cabana numa floresta remota, sobreviventes de algum tipo de pandemia que eliminou grande parte da população na qual quem sobreviveu fez estoque de víveres e passam a desconfiar até da própria sombra.

Quantas vezes já vimos variações desse argumento básico sobre filmes sobre apocalipses pandêmicos - sincronicamente, com um número crescente de produções até explodir a pandemia real da Covid-19, dando margens a diversas especulações sobre a crise sanitária global como um fenômeno de agenda setting conveniente ao “reset global” do Capitalismo – sobre isso, clique aqui e aqui.

O que não pode também ser deixado de mencionar, a escalada de filmes apocalípticos sobre pandemias biológicas ou digitais faz lembrar o conceito de “realismo capitalista” do pensador Mark Fisher: é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do Capitalismo. Uma tática de propaganda como profecia autorrealizável do Capitalismo como a única alternativa possível – tanto é que nesses filmes pós-apocalíticos os sobreviventes fazem de tudo para recuperar a velha ordem através de novas ordens que emulam a ordem classista capitalista.

Porém, no filme It Comes at Night (2017) nenhum zumbi vem cambaleando pela floresta e não somos sacudidos por falsos sustos ou reviravoltas impactantes da trama. O tropo da família sobrevivente que tenta se proteger de uma possível ameaça externa vinda de uma densa floresta, em uma cabana cheia de espingardas e revólveres, além de máscaras antigás, está dado para o espectador. Porém, é uma falsa pista que quebra a expectativa comum nesse tipo de gênero.



It Comes at Night é um filme curioso e inventivo (constrói o pavor com truques mínimos – basicamente com movimentos de câmeras, corredores com longas sombras e um design de áudio que nos dá sensações táteis) no qual os vilões não é nem o fim do mundo e nem pessoas que possam contaminar outras. Na verdade, os vilões são as perdas, o luto, a dor, o medo, a desconfiança e a paranoia. Contra as quais, armas não têm o menor valor de proteção.

Incerto e emocionalmente cru, o filme acompanha uma família reclusa em uma cabana remota tentando obedecer rígidos protocolos de segurança que criaram para, pelo menos, terem uma sensação de segurança e tranquilidade diante do caos lá fora.

O pai Paul (Joel Edgerton) tem regras muito rígidas que são obedecidas uniformemente pelo filho Travis (Kelvin Harrison Jr.), seu cão chamado Stanley e pela mãe Sarah (Carmen Ejogo). Todas as janelas da casa estão fechadas com tábuas e só há uma saída, por duas portas trancadas, uma das quais pintada de vermelho vivo. Se eles precisam sair por qualquer motivo, eles vão em pares e nunca saem à noite.

A genialidade do filme de Trey Edward Shults é que a narrativa constrói um tipo de terror de dentro para fora, fazendo o inverso do cânone do gênero. 



Acima de tudo, It Comes at Night é um filme em que os verdadeiros elementos do medo vêm de dentro, não de fora. Claro, não é exatamente um conceito novo – as genialidades de George A. Romero, John Carpenter e Stanley Kubrick criaram os modelos cinematográficos para essa elaborada estratégia narrativa. 

Shults vai até essas fontes, mas nunca sentimos que o diretor está prestando alguma homenagem consciente – notável, principalmente quando consideramos que o diretor não tem tanta quilometragem em filmes de terror – It Comes at Night é o seu segundo filme. 

De certa forma, é um filme de terror reverso, que parece querer nos dizer que o mundo exterior não é o elemento mais assustador, mas sim a desconfiança e a paranoia que realmente serão sua ruína. O verdadeiro inimigo já está lá dentro.

O Filme

Como muitos filmes de terror, “It Comes at Night” abre com uma morte. Um senhor mais velho, claramente muito doente, se despede de sua família e leva um tiro na cabeça antes que seu genro e neto queimem seu corpo em uma vala aberta na floresta.

Ele é o pai de Sarah, mais uma vítima de algum tipo de pandemia que devastou a população. Um tipo de doença que mata a vítima em um dia, deixando os sobreviventes procurando comida e não confiando em ninguém. O corpo fica com imensas feridas, os olhos ficam pretos enquanto vomita sangue. Isso até parece um riff de The Walking Dead. Mas nada é o que parece.



É importante que a versão de Shults sobre o fim do mundo comece não com um ataque de mortos-vivos, mas com o tipo de evento que distorce para sempre a trajetória da vida de um jovem: a morte do avô do filho Travis, de apenas 17 anos. 

Logo após a queima do corpo do avô, a família acorda com um barulho na “sala da eclusa de ar” entre as duas portas que nunca devem ser abertas. Alguém, ou alguma coisa, está na casa. Depois de uma violenta briga, eles descobrem que seu invasor se chama Will (Christopher Abbott), e ele só está procurando água para sua família, esposa Kim (Riley Keough) e filho Andrew (Griff Robert Faulkner), que estão em outro casa abandonada a quilômetros de distância. Eles têm comida que pode entrar na negociação. Não, eles não estão doentes. E, no entanto, há algo na história deles que não bate certo. O que mantém o patriarca Paul em constante estado de alerta e em crescente desconfiança.

Acompanhamos o esforço de Paul e sua esposa Sarah em preservar algum senso de normalidade em circunstâncias difíceis. Eles não estão lutando apenas para salvar a família, mas manter uma civilização – um senso de ordem, dignidade, de estabilidade – que está sempre no limiar do colapso.

Mas será que o mundo não foi sempre assim, mesmo antes do fim? 



Por isso, It Comes at Night cria uma espécie de terror reverso, de dentro para fora. Os protocolos de segurança criadas por Paul (um ex-professor de História, especializado no Império Romano), sob o objetivo de criar normalidade, previsibilidade e proteção, com o tempo criam o inverso: situações difíceis e tensas que só açodam a desconfiança e paranoia entre todos.

A chegada do grupo de estranhos naquela cabana ao invés de gerar colaboração, cria relações assimétricas de comandos e privilégios. Somado às armas (que parecem mais usadas para se defender de vilões imaginários que nunca se concretizam), mostra que o fim do mundo não é o suficiente para nos fazer refletir que tudo acabou por causa de uma civilização “realista” com sua desigualdade e agressividade.


Essa é a ironia do protagonista ser um ex-professor de História: parece que ele não aprendeu nada com essa disciplina.

 


 

Ficha Técnica

 

Título: It Comes at Night

 

Diretor: Trey Edward Shults

Roteiro: Trey Edward Shults

Elenco:  Joel Edgerton, Christopher Abott, Carmen Ejogo, Riley Keough, Kelvin Rarrison Jr

Produção: Animal Kingdom, A24

Distribuição: Diamond Films

Ano: 2017

País: EUA

 

 

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