quarta-feira, junho 24, 2020

A hiper-realidade da banalidade do mal em "O Ato de Matar"


O holocausto nazista, com suas milhões de vítimas, foi imortalizado por centenas de filmes e documentários. Porém, o genocídio político ocorrido na Indonésia entre 1965 e 1966, no qual foram massacradas mais de um milhão de pessoas (famílias inteiras, entre mulheres e crianças), é pouco conhecido – um expurgo político perpetrado por paramilitares e milícias em nome da luta contra a suposta ameaça comunista. “O Ato de Matar” (“The Act of Killing”, 2012, de Josh Oppenheimer) é um documentário cujas câmeras mostram como os líderes daquele genocídio ainda gozam do status de heróis e continuam atuantes sob o atual regime de extrema-direita. Tão orgulhosos que resolveram, durante as filmagens, fazer um outro filme dentro do próprio documentário: eles próprios reencenaram seus massacres, enquanto emulavam gêneros hollywoodianos como filmes de gangsteres e musicais. Criando um curioso efeito metalinguístico - um surrealismo medonho ao som de "Born Free".  Como a banalidade do mal pode se tornar hiper-real. 

 

A palavra “gangster” vem da palavra inglesa “gang” que designa membros de uma quadrilha de criminosos. Sua origem veio do período da chamada “Lei Seca” de 1920 a 1933, na qual surgiram diversas quadrilhas que faziam contrabando de álcool – mais tarde alcançaram grande nível de organização e autonomia liderados por criminosos famosos como Al Capone (Chicago) e Lucky Luciano (Nova York).

No cinema, tornaram-se personagens famosos do gênero policial ou “filmes de gangsters”. Sempre morriam no final (como deve ser o vilão), mas a suas figurações como personagens ricos, elegantes, poderosos, cercado de mulheres e rajadas de metralhadora, deram a ambiguidade necessária para se tornarem populares: odiados, mas, ao mesmo tempo, temidos e admirados.

Gangsters hollywoodianos alcançaram o mundo até seus filmes chegarem na Indonésia, nos anos 1960. Lá, a palavra gangster ganhou uma nova, por assim dizer, etimologia: “homem livre”. E tornou-se uma justificativa para o expurgo político nos anos 1965-66, na verdade um genocídio, sob o regime de extrema-direita de Suharto.

Mais de um milhão de pessoas foram cruelmente assassinados: famílias inteiras acusadas de serem “comunistas” – membros de sindicatos, fazendeiros pobres, intelectuais de esquerda e políticos de oposição, além de chineses étnicos.

Ignorado pelo Ocidente, dentro da lógica da Guerra Fria (o regime Suharto era pró-Ocidente), o genocídio foi perpetrado por verdadeiras milícias que se consideram “gangsters”, ou “homens livres” – para se opor aos comunistas que iriam acabar com a “liberdade”.

Principalmente a liberdade de ver filmes hollywoodianos, que davam boa bilheteria nos cinemas locais, muito dinheiro para essas milícias, além de servirem modelos para sua autoimagem: queriam ser como os gangsters do cinema ao som das músicas de Elvis Presley – serem ricos, poderosos e matarem mulheres e crianças “comunistas” sem culpa. Como se a vida fosse uma película cinematográfica.


Esse é o arrepiante e absurdo documentário O Ato de Matar (2012) de Josh Oppenheimer, produzido pelo lendário cineasta Werner Herzog (Aguirre, a Cólera dos Deuses, Fitzcarraldo, Nosferatu): ficamos chocados ao ver como esses “homens livres” foram celebrados e apoiados pelo governo local e pela mídia – em programas de TV falavam abertamente sobre suas técnicas de matar “mais humanas” sem a brutalidade necessária, enquanto o público aplaudia.

Mas O Ato de Matar não é um documentário comum – é um documentário “em processo” ou um meta-documentário: os próprios algozes da época, como o infame Anwar Congo, vêm na filmagem de Josh Oppenheimer a oportunidade de reencenarem as chacinas e os violentos interrogatórios para as câmeras. Começam a dirigir seu próprio filme dentro do documentário, assumindo os personagens dos seus filmes hollywoodianos tão amados – principalmente os filmes de gangsters e os nazi-exploited.

Para eles, com uma clara vantagem: não eram meros atores, eles fizeram tudo aquilo! 

Essa inesperada proposta metalinguística de O Ato de Matar mostra as complexas relações atuais entre ficção e realidade – aquilo que chamamos de “hiper-realidade”. Se os nazistas estetizaram a política com mitologias e rituais, também os gangsters indonésios estetizaram o genocídio com a estética hollywoodiana. Para seus atos se revestirem da mesma amoralidade dos gangsters da ficção. 

Para tentarem se blindar da culpa. Mas os fantasmas de milhares de mortos os perseguem...



O Filme

Além do tema da tragédia histórica esquecida pela paranoia anticomunista da Guerra Fria, Joshua Oppenheimer e sua codiretora Christine Cynn tiveram que imergir num submundo de grupos paramilitares ainda atuantes na Indonésia, agora também sob o governo de extrema-direita de Duterte.

Porém, encontraram fontes extremamente cooperativas e entusiasmadas com o fato de serem objeto do documentário. Principalmente a estrela principal: Anwar Congo, responsável direto por mais de mil assassinatos, com técnicas que orgulhosamente descreve e performa para as câmeras – mais “humanas” e eficientes, sem espalhar tanto sangue pelo chão.

Há momentos hilariantes, como quando o vice-presidente da Indonésia participa da reunião da milícia “Juventude Pancasila” e elogia com entusiasmo o contínuo serviço leal ao país, enfatizando que a nação necessita de mercenários políticos como eles para a segurança e manutenção do regime – o documentário mostra flagrantes de como os milicianos extorquem dinheiro dos pequenos comerciantes. Em outras palavras, como “vendem proteção” ao comércio local.

A extorsão é mostrada pelas câmeras e eles se mostram orgulhosas – sentem-se como gangsters nos filmes americanos. Intimidam pequenos comerciantes que não têm outra alternativa, senão dar dinheiro em espécie.

Acompanhamos o crescente entusiasmo de Anwar Congo e seus colegas, a ponto de decidirem fazer um filme dentro do documentário – maquiagens, efeitos especiais cenográficos e figurino (ainda bem que com baixo orçamento) irão reproduzir cabeças decepadas, estrangulamentos etc. Enquanto outro líder paramilitar chamado Herman Koto procura extras nas ruas locais para atuarem como “mães comunistas” e “crianças comunistas” que serão assassinadas e estupradas nas cenas do filme dentro do documentário de Oppenheimer.

Temos exemplos finais da famosa expressão “banalidade do mal” – eles realmente não pensam no que se comprometeram ou no que estão fazendo. Não têm a menor vergonha disso.



Um outro líder, já aposentado e que se transformou num empresário, Haji Anif, (mas que é convocado por Anwar Congo para atuar no filme), justifica a relatividade do conceito de “crime contra a humanidade”: “quando Bush estava no poder, Guantânamo estava certo... as Convenções de Genebra podem estar certas hoje, mas amanhã serão as de Jacarta... a definição de ‘crimes de guerra’ é feita pelos vencedores”, reflete orgulhoso. Uma afirmação que faria qualquer adepto da teoria da luta de classes concordar. 

O que Anif revela é mais um exemplo da estratégia de apropriação da extrema-direita: apropria-se a velha máxima do materialismo histórico marxista (“a ideologia dominante será sempre a ideologia da classe dominante”), porém de forma cínica e com os sinais trocados.

Mas Anwar Congo é a grande estrela do documentário. Ele não aprece se sentir culpado pelos seus incontáveis assassinatos. E até mostra de bom grado como matou famílias inteiras durante a operação paramilitar. Quando havia muito sangue no chão, improvisou um método menos sangrento para matar através de um laço de arame. Para ele, memórias dos “bons e velhos tempos”.

Não apresenta remorsos ou arrependimentos, e até decide fazer o filme com a “ajuda” do diretor Oppenheimer em que defenderá suas convicções. Ele trabalhará como diretor e ator principal. Quer mostrar detalhes como, por exemplo, os violentos interrogatórios com os comunistas e mostrar o rio onde descartavam os corpos. Muitos deles com cabeças decepadas.



Meta-produção ultrajante – alerta de spoilers à frente

Uma delas, assombra os sonhos de Anwar até hoje: o porquê daquela cabeça não ter fechado os olhos, mesmo depois do corpo ter sido jogado para fora do seu carro em movimento...

Quando essa meta-produção ultrajante começa e prossegue dentro do documentário, muitos momentos memoráveis ​​diante e atrás da câmera nos surpreendem com seu absurdo sombrio. 

As terríveis cenas baseadas nos assassinatos de Anwar são alegremente decoradas com os gêneros favoritos do líder miliciano, incluindo filmes musicais, de gangsters, nazi-exploited etc. 

O surrealismo medonho gerado a partir da justaposição entre grosseria e crueldade, eventualmente culminará num final musical de cair o queixo, ao som do tema musical “Born Free” – para eles, a própria essência da vida de um gangster-paramilitar-miliciano. Só mesmo vendo para acreditar... 



Enquanto nos horrorizamos com a corrupção maligna incrustada na sociedade indonésia e a vulgaridade ultrajante da produção cinematográfica de Answar Congo, Oppenheimer sabiamente deixa seu herói e a sociedade ao redor contarem livremente suas histórias -mantém o espírito de um observador objetivo, enquanto Anwar empurra O Ato de Matar para o puro humor negro, terrivelmente absurda e assustadoramente humana.

O final é apoteótico: Anwar, junto com seus pequenos netos, assista na TV ao vídeo da sua bizarra produção composta por personagens vestidos com ternos e chapéus ao estilo dos filmes clássicos noir sobre detetives e gangsteres, – podemos observar atentamente o seu rosto ao ser confrontado com as memórias de suas monstruosidades.

Anwar treme diante das imagens: ver a si mesmo e seus amigos milicianos perpetrando massacres (nem que seja através de uma estética brega-pastiche que muitas vezes nos provoca risos) o deixa silencioso, atônito e emocionalmente abalado.

O efeito metalinguístico e a maneira como a realidade mergulha na ficção em O Ato de Matar nos deixa dúvidas se a reação de Anwar Congo é 100% genuína – um crítico sul-coreano disse que se for tudo encenação, Anwar deveria merecer o Oscar de Melhor Ator.

A virtude de O Ato de Matar é não só mostrar um dantesco e pouco conhecido genocídio, que jamais ganhou a notoriedade midiática do holocausto nazista na Segunda Guerra Mundial, mas revelar mais detalhes sobre a moderna “banalidade do mal”.

De como a imagerie hollywoodiana (que os paramilitares tanto temiam que os comunistas os roubassem deles) servia de mecanismo psíquico de racionalização. Criar um auto distanciamento irônico diante de todos os gritos de mulheres e crianças vítimas da paranoia anticomunista. 

Mas no final, entre os bizarros números musicais e o heroísmo de heróis cinematográficos, ainda estão lá espreitando os fantasmas de suas vítimas, em cada recanto do inconsciente. 

E certamente, após a morte, descobrirão que os fantasmas das suas vítimas ansiosamente os aguardam no outro mundo...


 

Ficha Técnica 

Título: O Ato de Matar

Diretor: Josh Oppenheimer, Christine Cynn

Roteiro: Joshua Oppenheimer

Elenco: Anwar Congo, Herman Koto, Haji Anif, Safit Pardede

Produção: Final Cut for Real, Piraya Films

Distribuição:  Drafthouse Films

Ano: 2012

País: Reino Unido, Dinamarca, Noruega

 

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