sábado, junho 22, 2019

Do thriller ao horror gnóstico no filme "Um Grito na Noite"


Do título em português às sinopses, o filme holandês “Um Grito na Noite” (“Kristen”, 2015) parece mais do mesmo: um claustrofóbico thriller/horror sobre uma frágil mulher que, ao limpar a bagunça da festa de Ano Novo em um café, é ameaçada por telefone por um desconhecido que tenta invadir o estabelecimento para matá-la. Ela tem que descobrir quem está fazendo isso e o porquê? “Um Grito da Noite” parece mais um filme do subgênero “home invasion”. Mas tudo é uma aparência proposital do diretor Mark Weistra, enganando tanto o espectador quanto a protagonista – do horror de um corriqueiro thriller, aos poucos o tom da narrativa deriva para o fantástico e o surreal. O horror metafísico se impõe, com fortes elementos gnósticos: a inconsistência da realidade e um Demiurgo que apenas busca veneração das próprias vítimas.
Devo confessar que esse humilde blogueiro estava resistente em assistir e resenhar esse filme. Todas as sinopses que lia a respeito da produção holandesa Um Grito na Noite (Kristen, 2015), do roteirista e diretor Mark Weistra, mostravam mais do mesmo: a clássica narrativa de uma mulher frágil, sozinha, presa em um lugar isolado à noite, ameaçada por um stalker que sabe tudo sobre a vida da vítima, tirando vantagem disso. 
Um clichê repetido com inúmeras variações, seja na comédia (Esqueceram de Mim, 1990) ou do thriller ao terror como Sob Domínio do Medo (1971), Violência Gratuita (1997), O Quarto do Pânico ( 2002) ou O Intruso (2014). É o subgênero “home invasion”. Sempre a vítima são pessoas frágeis e vulneráveis – crianças, mulheres ou um indefeso professor de matemática em Sob o Domínio do Medo.
E o próprio título em português reforça esse aparente clichê.
Porém, nessa sexta-feira, decidi levar o filme em minha pen-drive para a Universidade – o dia da semana do meu tour de forcecom aulas manhã, tarde e noite. No meio tempo, assisti ao filme
E o filme é surpreendente, principalmente porque parece querer brincar com essa expectativa do clichê “home invasion”.  Com maestria narrativa, Mark Weistra vai aos poucos evoluindo a narrativa de um típico horror de thriller policial para o horror metafísico que progressivamente vai agregando elementos gnósticos. 
Por isso, é um filme difícil de ser resenhado sem incorrer em spoilers. Mas, pelo menos, o leitor não vai incorrer na falha desse escriba em querer julgar o produto pela embalagem...
Mark Weistra possuía uma loja de vídeos. Com o dinheiro, resolveu pagar seu projeto de fazer um filme de terror, seu gênero predileto – a história de uma jovem presa em um café, ameaçada por um maníaco que tenta invadir o estabelecimento. O local para a filmagem ele já tinha: o bar do sogro, pequeno e claustrofóbico.
Porém, o mais difícil foi a escolha do antagonista – deveria ser algo forte. Mas, como pensar em algo original em um subgênero tão revisitado? O insight veio de uma palestra sobre Deus que Weistra assistiu no Youtube: uma palestra sobre Deus como figurado no Antigo Testamento bíblico, especificamente descrito como um monstro egoísta e manipulador. Ou um Demiurgo, para o Gnosticismo clássico.


Niilismo e solidão

Pronto! Weistra tinha seu vilão: Deus ou a própria Morte personificados. Porém, o diretor mora na Holanda, um país calvinista que, segundo ele, “tem grande dificuldade de aceitar algo fora da vida real, com exceção da comédia”. Por isso, o truque de Um Grito na Noite: começar crível, realista, dentro dos cânones do “home invasion”, para ou poucos a narrativa mudar o tom para o fantástico e surreal – clique aqui para ler a entrevista com o diretor, em inglês.
Um Grito na Noite quer expressar o próprio niilismo e solidão do diretor. Para ele, sintomas da época atual – o medo, a experiência da vida e morte na qual pairam dúvidas sobre a existência de Deus. Mas de um deus Demiurgo, manipulador, que utiliza o poder da onisciência e onipresença não para a misericórdia e compaixão. Mas para a manipulação, com um único propósito: de ser reverenciado e adorado.
Um Grito na Noite é uma prova de como uma produção com orçamento limitado é capaz reinventar um subgênero com a originalidade de um simples insighte um excelente roteiro que aos poucos vai desconstruindo a realidade do protagonista e as expectativas do público que espera assistir mais um filme com os cânones do gênero.

O Filme

Kristen (Terence Schreurs) e seu namorado Ivan (Poal Cairo) estão na ressaca das comemorações do Ano Novo. Eles retornam de carro, depois de uma festa que “foi muita intensa” e que “foi longe demais” – são linhas de diálogos crípticas, fundamentais para a compreensão do final aberto proposto pelo diretor.
No primeiro dia do ano, Ivan vai ajudar Kristen a fazer uma faxina no café do pai dela, após a festa de Ano Novo. Enquanto Ivan arruma uma vaga para estacionar o carro, Kristen começa a limpeza em um estabelecimento sujo e desarrumado.


É noite, seu namorado demora para chegar e uma pessoa desconhecida liga insistentemente: a princípio, para saber a que horas o café reabriria. Para depois, Kristen descobrir que aquela voz sinistramente calma (de Ronald Top) sabe de todos os seus segredos – da relação conflituosa com o pai a um aborto não revelado para ninguém.
Agora aquela voz está na porta. Bate insistentemente para entrar. A cada telefonema, cresce o terror em Kristen. Ela liga para o seu namorado que demora para chegar, mas estranhamente não atende. 
Quem é aquela pessoa que conhece seus segredos mais íntimos? Por que a está atormentando? A voz ameaça “arrancar a alma do seu corpo” e de “ficar com ela para sempre”. A voz adverte que aquilo é “um jogo” e que no começo “todos reagem diferente”, mas no final “choram e imploram”. “Normalmente demoram algumas horas”, antevê em tom sombrio.
Kristen tenta ligar para a polícia, mas logo descobre que aquele maníaco parece ter grampeado as linhas telefônicas – consegue interceptar as ligações, alterar a voz e se passar por outras pessoas.
O pânico é total quando não só descobre seu gato morto como também passa a receber ligações do maníaco através do próprio celular do namorado – agora Ivan também corre perigo.
Ela está sozinha em um pesadelo com reviravoltas que aos poucos vão colocando em xeque a própria noção de realidade. É quando lentamente vamos acompanhando a mudança de tom da narrativa: de um típico thriller “home invasion” para a guinada ao fantástico e surreal.


O horror gnóstico – alerta de spoilers à frente

Um Grito na Noite consegue arrancar o máximo de criatividade de um roteiro circunscrito a um pequeno bar, com planos fechados, claustrofóbicos, com pequenas escadas, quartos recônditos com muitas caixas e entulhos empilhados por todos os lados.
Desde o início da trama, sabemos que tudo aquilo, de alguma maneira, não terminará bem: o filme abre com a protagonista escrevendo uma carta para o pai (Howard van Dodemont), no próprio café em que todo o drama se desenrolará, contando sobre “a noite em que foi morta”.
Pouco a pouco vamos descobrindo que há algo de sobrenatural naquela emboscada armada por um suposto stalker maníaco. Mas as coisas não derivam para um horror convencional – elementos gnósticos vão entrando na trama. Primeiro, há algo de inconsistente naquela realidade: o relógio na parede está parado e o dia nunca amanhece.
Mais tarde, acompanhamos também lenta revelação da natureza do antagonista: ele é a própria Morte, Deus ou simplesmente um Demiurgo que parece adorar “jogos” nos quais, ao final, sempre ganha, levando a alma do derrotado. E mais: exige que a vítima o encare, exigindo reverência e adoração.
Mark Weistra preferiu oferecer ao espectador um final aberto que sugere alguma espécie de looping temporal – o inferno é a repetição, como nos fala Stephen King?
De qualquer forma, não importa a interpretação, como o próprio diretor admite: Kristen e seu namorado já estavam mortos: algo de muita grave ocorreu naquele réveillon “intenso” e que foi “longe demais”.
Repleta de culpa (não só pelo aborto, mas também pela relação conflituosa com o pai), permanece presa a esse mundo acreditando ainda estar viva. E quer fazer a faxina no café do pai, como se limpasse a própria consciência. Mas a Morte (ou o Demiurgo) quer retirá-la da sua tela mental de culpa e tristeza para ficar com sua alma para sempre.
Mais do que isso. Quer ser adorado pelas pobres almas de todos os humanos. É a clássica exortação do Gnosticismo: após a morte, desperte da sua tela mental solipsista. Para estar alerta às emboscadas do Demiurgo para nos manter prisioneiros em seu próprio cosmos. 


Ficha Técnica 


Título: Um Grito na Noite (Kristen) 
DiretorMark Weistra
Roteiro:  Mark Weistra
Elenco:  Terence Schreurs, Poal Cairo, Ronald Top, Howard van Dodemont
Produção: Mark Weistra
Distribuição: Eurochannel
Ano: 2016
País: Holanda

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