terça-feira, abril 16, 2019

O destino da arte é a simulação no filme "Minha Obra-Prima"


No passado Renzo Nervi foi um pintor bem-sucedido. Hoje, não consegue vender um único quadro. Amargo, ressentido e à beira da indigência, ele recebe a ajuda de um amigo marchand dedicado a lucrar com a arte alheia. Até que um inesperado acidente proporciona a oportunidade inédita (e ilegal) de ganhar dinheiro em um mercado de arte onde o luxo e o esnobismo concorre com o artifício e a mentira.No filme argentino “Minha Obra-Prima” (“Mi Obra Maestra”, 2018) acompanhamos uma comédia farsesca de humor negro que apresenta o destino da arte no mundo pós-moderno: a simulação - simular o valor de uma obra como se fosse puramente artística, quando na verdade é tão vazia quanto um suspiro. Não se trata mais, como no passado, de dissimular a falsidade. Mas agora de simular qualquer vocação artística.
Theodor Adorno acreditava que a arte continha a alteridade e a transcendência. Como obra do espírito, a arte tendencialmente pretenderia ultrapassar a si mesma, criando uma tensão com a sociedade e o próprio espírito – a negação do Todo, social, político, econômico etc.
Como músico que era, além de filósofo (Adorno tocava violino), via essa natureza transcendente da arte na “Música Nova” – a música atonal de Schoenberg e o serialismo da nova música erudita como alternativa à integração da cultura de massas e Indústria Cultural.
Mas os tempos pós-modernos do pós-guerra integraram toda qualquer pretensão de “alteridade” ou “tensão” da arte: virou “intervenção” ou “performance” em exposições que se transformaram em “instalações artísticas”. Artistas “incompreendidos” ou “rebeldes” passaram a ter cotação no mercado, assessorados por “marchands” e donos de galerias de arte.
Então, o que é arte? Qual a diferença entre um quadro e um pôster publicitário? Ou entre a cópia e o original, já que tudo é “commoditie”, reprodução, cópia? Filmes como Cópia Fiel (2010) ou Velvet Buzzsaw (2019) são exemplos cinematográficos dessa desconstrução pós-moderna da arte, ao reduzi-la à ilusão, simulação, artifício, mentira.


Por isso, nada melhor do que assistir à comédia argentina farsesca e de humor negro Minha Obra-Prima (Mi Obra Maestra, 2018) sobre Renzo Nervi (Luis Brandoni), um pintor que já foi bem-sucedido nos anos 1980 em Buenos Aires, mas hoje não consegue vender um único quadro. Porém, um inesperado acidente proporciona a oportunidade inédita (e ilegal) de ganhar dinheiro em um mercado de arte onde o luxo e o esnobismo concorre com o artifício e a mentira.
Minha Obra-Prima continua com a visão ácida sobre os intelectuais argentinos do filme anterior (El Ciudadano Ilustre) da dupla de diretores Gastón Duprat e Mariano Cohn: como a burguesia (e principalmente os novos ricos em busca do verniz cultural) se movem em ambientes artísticos, voltando a fazer uma dura crítica ao banal na vida cultural.
Mas há também algo universal, sobre o destino da arte no mundo pós-moderno: como o processo de valorização do objeto artístico é uma simulação e não uma dissimulação – não se trata mais de falsificar uma obra assim como se imprime dinheiro falso. Mas simular o valor de uma obra como se fosse puramente artística, quando na verdade é tão vazia quanto um suspiro – resultado de um jogo de especulação, ausente de escrúpulos ou qualquer de qualquer vocação artística.

O Filme


Arturo Silva (Guillermo Francella) há décadas dedica-se a venda de obras de arte em sua galeria no Centro de Buenos Aires. Seu único interesse é lucrar com a arte alheia. Encantador e sempre com um discurso sedutor e persuasivo, desde vários anos mantém uma amizade com Renzo Nervi (Luis Brandoni) que se encontra nos últimos anos da sua vida – depois de uma carreira bem-sucedida, há anos não consegue vender uma única obra.
Sua paixão pela arte acabou resultando num estilo de vida prá lá de decadente: amargo, cínico, misantropo e autoindulgente parece que conscientemente prepara sua própria ruína, com um final a uma morte trágica parecida com os boêmios pintores impressionistas parisienses.


Os egos, as mesquinhezas e as misérias desses dois personagens os unem numa estranha amizade. Arturo tenta impulsionar novamente a carreira de Renzo até que Arturo logra associar-se a uma influente colecionadora de obras de arte internacional, Dudu (Andrea Frigerio).
Conseguem para Renzo uma encomenda para a confecção de um mural. Mas a autoindulgência e orgulho do pintor decadente falam mais alto: ele jamais aceitou fazer qualquer tela sob encomenda, como se sua arte fosse um mero produto. Mas estranhamente aceita, para depois sabotá-la, como mais um ato de protesto autodestrutivo.
Renzo está à beira da indigência, sustentado pelo seu único aluno, o espanhol Alex (Raúl Arévalo) – um personagem contrastante, comparado ao cinismo de Renzo e do seu amigo Arturo. Alex é idealista e admira a arte do autodestrutivo mentor.


“Argentina é um país singular” – Alerta de spoilers à frente


Tudo caminha para o desfecho inevitável: a morte trágica – Renzo é atropelado por um caminhão depois de displicentemente atravessar a rua, quase que pedindo para alguém abreviar seu sofrimento. No hospital, sugere para seu amigo Arturo a eutanásia.
Mas Arturo acaba tendo uma ideia muito melhor, seguindo seu instinto de especulador da arte alheia – por que não simular a morte de Renzo? Afinal, Van Gogh só alcançou a fama e suas obras o valor de milhões de dólares somente após a sua morte!


Com a ajuda da influência internacional de Dudu, Arturo da um incrível impulso “pós-morte” para as obras de Renzo – ganha exposições exclusivas em diversas capitais do mundo.
O marchand e o artista decadente criam o golpe perfeito: Renzo vive isolado numa região remota, produzindo cópias que emulam seu ápice criativo dos anos 1980. Tudo quadros “descobertos” em casas de parentes. Enquanto xeiques novos ricos compram lotes das suas obras a milhões de dólares.
Nível inédito de especulação artística: na “pós-morte” Renzo faz cópias “falsas” de si mesmo. De um ápice artístico do passado que só depois da própria morte passa a ter valor de mercado.
Se no passado a questão da arte era o confronto entre a cópia e o original artístico (a arte como um signo que ainda gozava de uma referência ou legitimidade socialmente sancionada), hoje o valor se desprende do campo da arte para entrar nas estratégias de simulação – dizer que existe alguma coisa (a morte de um gênio), quando na verdade só existe o vazio: o blefe.
A partir daí a narrativa desdobra esse blefe a um nível que, a certa altura, Renzo afirma: “Argentina é um país singular”.
A simulação como um blefe é a própria essência da comédia farsesca. Mas a amizade de um marchand com o artista é a própria definição do blefe pós-moderno na arte, como uma espécie de “cinismo esclarecido”, termo cunhado pelo filósofo Peter Sloterdijk: o cínico integrado aos seus postos e privilégios (gerentes, executivos, professores, jornalistas ou artistas) que mantêm um autodistanciamento irônico e melancólico sobre o que fazem, um sentimento de “inocência perdida”, de ironizar e depreciar a si mesmo e ao que faz (“é o que tem prá hoje”, dizem), uma falsa consciência conformista e sem sonhos diante do sistema de onde tira seus privilégios – leia SLOTERDIJK, Peter. Crítica da Razão Cínica, Estação Liberdade, 2012.
É a amoralidade e o pragmatismo de uma comédia farsesca, cujo gênero parece ser uma especialidade do cinema argentino.



Ficha Técnica 

Título: Minha Obra-Prima
Diretor: Gastón Duprat, Mariano Cohn
Roteiro:  Andrés Duprat, Gastón Duprat
Elenco:  Luis Brandoni, Guillermo Francella, Andrea Frigerio, Raul Arévalo
Produção: Arco Libre, Hei Films
Distribuição: A Contracorriente Films
Ano: 2018
País: Argentina

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