sábado, junho 04, 2016

Em "Regressão" Religião e Ciência trazem medo e histeria



Com o filme “Regressão” (Regression, 2015) o diretor Alejandro Amenábar retorna ao seu tema predileto de filmes como “Abre Los Ojos” ou “Os Outros”: as ilusões criadas pela nossa percepção. Um detetive e um psicólogo investigam o caso de uma jovem vítima de abuso sexual pelo seu pai. A aplicação de terapia de regressão por hipnose revela evidencias de uma seita secreta de cultos satânicos envolvendo estupros, raptos e sacrifícios. O que transforma uma pequena comunidade em vítima do medo e histeria coletiva. Mas Amenábar nos mostra outro tipo de regressão: como a Religião e, principalmente a Ciência, que deveriam ser instrumentos de verdade ou esperança, transformam-se em incitadores do medo, ignorância e histeria. Filme sugerido pelo nosso leitor Felipe Resende.

No final dos anos 1980 e começo dos 90 uma onda de notícias sobre supostos abusos (estupros, assassinatos, sequestros etc.) envolvendo rituais satânicos varreu a mídia dos EUA. Pânico e suspeitas se espalharam por diversas pequenas cidades, alimentado por programas sensacionalistas que sugeriam a existência de alguma espécie de rede de seitas secretas satanistas que estaria crescendo naquele país. Tão rapidamente como a onda de medo surgiu, de uma hora para outra desapareceu com a mudança de pauta da grande mídia.

O que mais impressiona nesses “efeitos de manadas” criados por ondas de histerias coletivas é o retrocesso que se verifica em diversos âmbitos, mas principalmente no campo científico. Justamente aquele que deveria ser a luz que iluminaria as trevas da ignorância e do medo.

É sobre isso que trata o filme Regressão de Alejandro Amenábar (Os Outros), baseado em um caso real ocorrido em 1990 na cidade de Hoyer, Minessota. Um investigador de polícia tenta resolver o caso de uma adolescente que teria sido abusada sexualmente pelo seu pai. Mas o caso logo se transforma em revelações sobre uma seita satanista com rituais de sacrifícios, inclusive envolvendo bebês.

O pai e a avó alcoólatra são interrogados sobre as assustadoras denúncias da adolescente, mas dizem nada se lembrar. Para auxiliar nas investigações que consigam arrancar uma confissão dos familiares, o detetive convoca um psicólogo especializado em extrair memórias traumáticas através da terapia hipnótica de regressão.

Depois de mais de um século de psicanálise e dos estudos empíricos no campo dos estudos da recepção em comunicação de massas, o tema das memórias deixou ser encarado como relatos que devem ser levados ao pé da letra como verdades.

Na Psicanálise Freud descobriu que as memórias das pacientes neuróticas que vinham à tona por meio da hipnose eram na verdade fantasias. E nos estudos de recepção, a descoberta de que somente ouvimos o que queremos ouvir ou vemos apenas o que queremos ver: nossa memória sobre conteúdos de comunicação é sempre seletiva – lembramos somente de detalhes que confirmam nossas convicções pré-existentes.

 O filme Regressão mostra como em momentos de crise em uma pequena comunidade, Ciência, Igreja e Polícia, que em tese deveriam ser instituições que deveriam nos proteger, voltam-se contra a própria sociedade ao se  transformarem em mecanismos que só alimentam o medo e a ignorância – simplesmente acabam ignorando todos os seus próprios avanços, regredindo para os seus estágios mais primitivos e sombrios.


O Filme


Bruce Kenner (Ethan Hawke) é um detetive arrogante e provincial designado para investigar o caso de Angela (Emma Watson), uma adolescente de 17 anos que fugiu da casa dos pais para se esconder em uma igreja de um evangelista ultraconservador, o reverendo Beaumont. Segundo ela, foi vítima de abuso sexual pelo seu pai que, juntamente com sua avó (de cara uma figura estranha e suspeita – alcoólatra e com a casa cheia de gatos) fariam parte de uma seita satânica.

Para provar, ela tem uma cruz invertida supostamente desenhada com uma faca em sua pele em uma das sessões de abuso ritualístico.

O caso quebra a pacata rotina da comunidade que começa a acreditar nos testemunhos cada vez mais horríveis de Angela gravados em sessões de regressão hipnótica feitos pelo psicólogo professor Kenneth Raines (David Thewlis) – uma seita onde membros da comunidade vestem robes pretos e vermelhos, liderados pela avó-bruxa onde bebês e crianças inocentes seriam abatidos em um velho celeiro enferrujado.

Está claro desde o início que o diretor Almenabar quer combinar um drama sobre até onde pode chegar uma histeria de massa com os clichês básicos de um thriller de terror – cruzes invertidas, encapuzados satanistas com rostos pintados, mantras de invocação ao demônio etc.

O fato é que todos daquela pequena comunidade deixam de ver o seu próximo como antes – principalmente o detetive Bruce Keener, envolvido pela carência manipuladora que se esconde por trás da vítima Angela: todos tornam-se suspeitos, sentindo-se a todo momento vigiado por anônimos nas ruas.

Regressão da Ciência e Religião


Amenábar retorna nesse filme ao seu tema predileto: thrillers focalizados em jogos das ilusões da percepção como em Abre Los Ojos (1997) ou Os Outros (2001). Dessa vez, sobre os temas das memórias, regressões e hipnose.

Fica notável no filme como o arrogante detetive sabichão se alia ao psicólogo e acadêmico professor Raines que em pouco tempo também passará a se imaginar também como um detetive, enquanto o reverendo Beaumont vê em tudo aquilo a confirmação do que mais acredita: em uma conspiração satânica da qual só a fé em Deus (e a sua igreja) poderá salvar.

É também notável o simbolismo que Regressão explora: aos poucos Ciência e Religião vão se despindo dos seus aspectos mais civilizatórios e avançados e começam a regredir.

A religião abandona a ética civilizatória cristã da tolerância, compaixão e amor ao próximo para voltar à violência da lei do Talião – a igualdade entre o crime e a punição.

E no campo científico, tanto o detetive como o psicólogo passam a acreditar na literalidade dos relatos extraídos das regressões hipnóticas tanto de Angela quanto do seu pai.


Memórias e fantasias – alerta de spoilers


Porém, há muito tempo as ciências da mente deixaram para trás a literalidade nas interpretações das memórias. Por exemplo, em plena era vitoriana do final do século XIX Freud construiu toda a sua teoria das neuroses a partir da reviravolta nas experiências clínicas com pacientes submetidos a hipnose.

Freud descobriu que todos os relatos de pacientes sobre incidentes ocorridos na infância (as chamadas cenas da sedução, a primitiva ‑ onde a criança teria testemunhado o coito parental – e a da castração) jamais aconteceram. As cenas foram fantasiadas. A partir dessas três fantasias, mais tarde Freud iria construir a teoria do Complexo de Édipo.

E, mais ainda, indicaram a presença de uma vida sexual ativa na infância (ao contrário do que se acreditava nos meios científicos da época, onde a sexualidade era considerada uma atividade especificamente adulta e voltada para a procriação). Mas uma estranha vida sexual, dominada por fantasias perversas e por nenhuma clareza na definição da identidade sexual.

Enquanto na era vitoriana de Freud as memórias eram fantasias alimentadas pela atmosfera de uma ordem patriarcal repressiva, hoje as fantasias são induzidas pela própria terapia ou pela mídia, como Amenábar sugere brilhantemente em uma sequência: a “receita secreta” (droga com a qual seriam dopados as vítimas dos rituais) que veio à tona tanto pela hipnose como pelos pesadelos do paranoico detetive nada mais era do que o slogan de uma campanha publicitária de uma marca de sopa instantânea.

Portanto, o título do filme, “Regressão”, parece ser irônico: não se trata apenas da terapia por hipnose, mas também como Ciência e Religião podem regredir ao ponto em que se tornam ferramentas que induzem e alimentam a histeria coletiva, o medo e a ignorância.

É emblemática a cena onde, após todas as mentiras serem reveladas, o detetive Bruce Keener e o psicólogo Kenneth Raines estão sentados em um bar, perplexos e frustrados, olhando para a TV acompanhando um telejornal onde Angela denuncia a suposta conspiração satanista: “a pior parte é que nós acreditamos”, lamenta o psicólogo.


Ficha Técnica


Título: Regressão
Diretor: Alejandro Amenábar
Roteiro:  Alejandro Amenábar
Elenco:  Ethan Hawke, David Thewlis, Emma Watson, Lothaire Bluteau
Produção: FilmNation Entertainment, Mod Producciones, First Generation Films
Distribuição: Elevation Pctures
Ano: 2015
País: Canadá, Espanha

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