terça-feira, julho 15, 2014

Mídia esportiva sofre de transtorno semiótico bipolar

Entre as palavras e as coisas existe uma estrutura fixa, pronta, que tenta capturar a dinâmica das coisas para congela-las em mitos. Com a mídia esportiva não seria diferente: a cada Copa do Mundo entra em funcionamento um discurso bipolar pronto para explicar os fracassos do futebol brasileiro – ora nos falta racionalidade, organização e planejamento; ora precisamos retornar “às nossas raízes” sufocadas pela mesma “modernidade” defendida na Copa anterior. Essa mitologização do futebol teria duas funções: neutralizar o acaso e a incerteza, eliminando a natureza lúdica do esporte, e evaporar a História – deixar de fora desse discurso bipolar os fatores midiáticos e político-econômicos que parasitam o futebol.

Na postagem anterior discutíamos que a goleada acachapante sofrida pela Seleção no jogo contra a Alemanha tinha sido mais do que um evento, mas o sintoma de fatores de influência midiática (“efeito Heisenberg” e esquizofrenia midiática – clique aqui). Mas nessa discussão acabamos achando outra coisa: descobrimos que a imprensa esportiva parece ter um discurso pronto a cada fracasso do futebol brasileiro em copas.

Embora seja um discurso estruturado e fixo, também é dinâmico como fosse um pêndulo semiótico: ora os jornalistas especializados culpam as derrotas pelo atraso, desatualização e falta de “modernidade” do futebol brasileiro (que chamaremos de “fase 1”), ora falam de um excesso de pragmatismo que faria a Seleção abandonar suas “raízes” (“fase 2”).


A grande virtude da Semiótica, em especial da Semiologia do francês Roland Barthes que procurava denunciar as mitologias por trás dos discursos que fingem apenas descrever o mundo, é mostrar que entre as palavras e as coisas existe uma estrutura fixa, pronta, que tenta capturar a dinâmica das coisas para congela-las em mitos - leia BARTHES, Roland. Mitologias.

Seleção brasileira sob a pressão das
manifestações nas ruas?
Esse discurso ou mitologia sobre os fracassos do futebol brasileiro construída, como veremos abaixo, desde a década de 1970 ganhou novo élan a partir das grandes manifestações de rua iniciadas em junho do ano passado: hino nacional cantado à capela pelos jogadores na Copa das Confederações e comentaristas esportivos sugerindo que a Seleção sentia nos ombros uma suposta comoção nacionalista nas ruas. Isso foi o ponto de partida de um roteiro cuja conclusão vimos na goleada sofrida de 7 X 1 para a Alemanha.

Seleção alemã deu sentido ao discurso bipolar


Em todo discurso o sentido é construído por um código bipolar ou binário - homem/mulher, preto/branco, bom/mal, singular/plural, sinônimo/antônimo etc. Como não poderia deixar de ser, esse discurso lentamente construído nos últimos meses para se materializar na Copa do Mundo necessitava de uma oposição significante para que o discurso fechasse em si mesmo e comunicasse um sentido. A Seleção foi estereotipada como um time passional e ao mesmo tempo confiante na explosão da genialidade de um jogador, Neymar Jr. – a atualização da mitologia da “raiz” do futebol brasileiro na suposta “genialidade” e “espontaneidade” dos nossos jogadores. Mas precisava de um signo oposto para se tornar completo. E ele surgiu para a imprensa esportiva: a Alemanha.

Desde antes da Copa o noticiário começou a destacar o planejamento da Alemanha com a construção de um resort em Santa Cruz Cabrália (BA) e a comissão técnica alemã como referência em organização. Os alemães começavam a surgir como heróis civilizatórios ao trazer empregos e benefícios para a comunidade indígena local.

Seleção da Alemanha: os novos
"civilizadores" do Brasil
Iniciada a Copa, falou-se em “jogo coletivo”, “diversidade de talentos” nos alemães. De repente, o discurso da genialidade do craque no futebol brasileiro começou a ser chamado de “fase monotemática” (jornal O Globo 07/07) de um esquema dependente do individualismo. Surpreendentemente, a miscigenação racial (um dos pilares do discurso da “raiz da genialidade” do futebol brasileiro) passou a ser transferida para a seleção alemã, formada por jogadores de origem turca, africana, polonesa etc.

No meio da Copa, o canal SporTV e o programa Globo Esporte da TV Globo demonstraram seu fascínio pela organização e modernidade alemã ao fazer matéria especial sobre um software chamado Match Insights desenvolvido exclusivamente para a Confederação de Futebol Alemã para processar dados em tempo real e avaliar as situações dos jogos. Era evidente a construção do roteiro: de um lado os velhos assessores técnicos Parreira e Murtosa somados às emoções à flor da pele da Seleção; do outro a tecnologia, organização, frieza e planejamento alemães.

O roteiro do atual discurso do fracasso do futebol brasileiro (repito, escrito pela mídia especializada desde há um ano antes da Copa) pendeu para o outro lado do movimento do pêndulo: o do atraso, da desatualização em relação à “modernidade” do futebol estrangeiro.

Tal como o semiólogo francês Roland Barthes denunciava, esses discursos que supostamente apenas descrevem a realidade, na verdade constroem elaboradas mitologias. O propósito do mito é afastar a contingência da realidade, empobrecer, evaporar a História. No caso do discurso do fracasso da Seleção, afastar da própria natureza do esporte o acaso e o jogo e, ao mesmo tempo, evaporar a história da estrutura política do futebol em um discurso fatalista: o Brasil estaria predestinado a perder ou pelo atraso ou pelo esquecimento das suas supostas origens míticas. Nada a dizer sobre CBF, a promiscuidade entre empresários de jogadores e comissões técnicas e o monopólio midiático capaz de fazer a Seleção refém do “Efeito Heisenberg” – sobre isso clique aqui.

Para entender a montagem desse discurso que encontrou sua “confirmação” na desclassificação da Seleção, vamos colocar em perspectiva histórica a construção das suas duas fases.

Fase 1: o fim da era mítica dos tricampeões


Brasil X Holanda em 1974: o início
da semiótica bipolar da mídia
Se o tricampeonato na Copa do México em 1970 caiu como uma luva para o governo militar do general Médici e a ideologia política do “Brasil Grande”, a desclassificação da Seleção para a Holanda em 1974 destoou o script dos ideólogos do sistema da ditadura. De repente o discurso do futebol tricampeão baseado na genialidade do craque (a rapidez de Pelé, a malícia de Garrincha, a explosão de Jairzinho) já não mais funcionava. O Brasil almejava ser “Grande”, o chamado milagre econômico criava uma nova classe média ávida por consumo de valores e tecnologias estrangeiras.

Temos a construção da fase 1 do movimento pendular: ninguém tinha percebido, mas o futebol brasileiro teria ficado ultrapassado. Expressões como “laranja mecânica” para designar a temível Holanda, “futebol total”, “futebol força” etc. fez mudar a imagem dos europeus, outrora considerados “cinturas duras” pelo futebol tricampeão. Alemães e holandeses tinham treinamento, condicionamento, organização e planejamento. E nós, gênios mimados e boêmios. Os técnicos estavam mal informados e os jogadores autossuficientes acreditando que o drible e o “futebol arte” pudessem resolver tudo – leia “O Rei do futebol, vítima de ilusão, faleceu ontem”, Folha, 11/07/1974.

Em uma ditadura militar baseada na ideologia tecnocrática, nada mais lógico que um militar preparador físico chegar ao cargo de técnico: Claudio Coutinho. Depois de frequentar laboratórios de estresse humano da NASA e conhecer pessoalmente o famoso criador do Método Cooper de avaliação física, começa a aplicar no Flamengo e depois na Seleção conceitos como “jogador polivalente”, “overlapping”, “ponto futuro” e “ponto de explosão”. E sessões longas e exaustivas de condicionamento físico.

Fase 2: de volta às “raízes”


Claudio Coutinho: agora o Brasil
esqueceu as "raízes"
Com a desclassificação na Copa de 1978 na Argentina, temos a construção da fase 2 desse discurso pendular: agora, a Seleção estava “fora do estilo brasileiro”. Coutinho era acusado de “valorizar o esquema, em detrimento do alto nível dos nossos jogadores” – “O saldo negativo da seleção de Coutinho” (Folha, 24/07/1978). A “europeização” do futebol teria feito o Brasil esquecer suas raízes, o “futebol arte”.

Convertida novamente em uma seleção de craques com Zico, Sócrates, Falcão, Júnior e companhia, com as desclassificações de 1982 e 1986 com Telê Santana a imprensa especializada pula para o outro lado do pêndulo: o futebol arte leva a “autossuficiência”, “mania de triunfismo” e “indisciplina tática”. Agora, faltava pragmatismo e racionalidade.

Acusada de perder por “apenas jogar bonito”, a Seleção passa à chamada “Era Dunga” de futebol aguerrido e forte na marcação – o pragmatismo que teria faltado à “Era Telê”. Se na derrota na Copa de 1990 a imprensa especializada passou para a fase 2 (retornar às origens do futebol arte), a filosofia dessa vez foi mantida e bem sucedida na Copa de 1994. Embora a crítica especializada falasse em final sem espetáculo e um futebol feio cuja final foi decidida nos pênaltis, curvou-se ao “pragmatismo” da “Era Dunga” – leia “Conquista de título inédito consagra a era Dunga” (Folha, 18/07/1994).

Com a desclassificação na Copa 2006 a mídia especializada pendeu para a fase 1: o técnico Parreira que privilegiava um “esquema que não funcionava” e jogadores muito preocupados com “posse de bola”. E no fracasso de 2010 passa-se para a fase 2: o enaltecimento da Espanha com o futebol de “toque de bola”, “toque refinado” e “futebol bonito” que resgatava o que Brasil teria perdido. Passamos para o outro lado: o “futebol arte” deveria ser recuperado pelo Brasil. Os estrangeiros Holanda e Espanha teriam provado isso.

De volta à Fase 1
Brasil X Alemanha: de volta para o futuro

E agora em 2014 testemunhamos o retorno à fase 1 desse discurso da racionalização dos fracassos: estamos desorganizados, desatualizados (precisamos de um técnico estrangeiro com uma função civilizatória, assim como os alemães que trouxeram benefícios à comunidade indígena na Bahia) e somos muito passionais concentrados apenas no craque sem pensar no coletivo...

Assim como os sistemas mitológicos contemporâneos denunciados por Roland Barthes, esse discurso fixo que a mídia põe em funcionamento a cada Copa do Mundo teria duas funções bem definidas:

(a) Neutralizar do futebol a essência do jogo e do lúdico em todo esporte: o acaso. O discurso do jornalismo deve racionalizar, explicar, justificar. Se a graça do jogo é o desafio do talento contra o acaso, o elemento lúdico do jogo deve ser aprisionado nessa polarização entre ora a apologia da razão, ora o enaltecimento da emoção;

(b) Função ideológica de fazer evaporar a História: nessa polarização obsessiva entre razão e emoção, fica de fora o questionamento de estruturas historicamente criadas que parasitam o futebol – mídia e a organização político-econômica do esporte.

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