
terça-feira, julho 08, 2014

Wilson Roberto Vieira Ferreira
Em que momento a Matemática, a ciência do raciocínio lógico e abstrato,
pode converter suas deduções rigorosas em surreais paradoxos visuais e lógicos?
Surrealismo e matemática não se opõem, mas
podem ser excelentes aliados. A férrea lógica matemática pode contribuir
eficazmente em desmascarar a falta de lógica dos esquemas de pensamento e o
funcionamento de sistemas opressivos. Muitos paradoxos, charadas e falácias
matemáticas constituem autênticas sátiras dos vícios de pensamento da nossa
cultura. Os romances matemáticos de Lewis Carroll e o insólito fascínio pelas
imagens de M.C. Escher acabaram criando a lógica do “non sense” presente tanto
em escritores como Kafka quanto em filósofos como Jean Baudrillard. Vamos
explorar as possibilidades de encontros entre o Surrealismo e a Matemática.
"Se tomar um círculo e acariciá-lo,
ele se torna um círculo vicioso"
(Ionesco)
A primeira vista surrealismo e matemática parecem coisas pouco afins, se
não totalmente contrárias. O racionalismo do discurso matemático e sua absoluta
sujeição a regras pré-estabelecidas não parece nem remotamente compatível com
um movimento onde é normal saltar todas as regras e gramáticas.
Apesar disso, vamos explorar as possibilidades de conexões entre ambos. A
primeira e mais óbvia: na medida em que o surrealismo supõe uma subversão da
linguagem convencional, e na medida em que a matemática é a mais “convencional”
das linguagens (no sentido de que conservar a lógica interna em função dos
pressupostos convencionais é sua própria essência), nada menos surpreendente do
que o surrealismo se sentir tentado a perturbar essa a ordem e precisão da
matemática.
O surrealismo matemático
popular
Podemos considerar o surrealismo popular da matemática em jogos de
palavras e chistes como, por exemplo, dizer que o número sete seja “cabalístico”
(sete pagas do Egito, sete anões, sete notas musicais etc.). Outros exemplos: “as
orgias perfeitas ocorrem em números ímpares” (dizia Marques de Sade na sua
paradoxal filosofia de racionalizar as perversões); “se a possibilidade de
sofrer um acidente aumenta com o tempo que passa na rua, portanto quanto mais
rápido for, menor é a probabilidade de ter um acidente”; “20% das pessoas
morrem por fumar. Portanto, 80% morrem por não fumar. Por isso, está
demonstrado que não fumar é pior do que fumar”; “Um pé em água fervendo, o
outro pé na água congelada. Na média, você está passando bem”.
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Kurt Gödel: todo conjunto matemático possui uma cilada lógica |
Também a dimensão fonética da linguagem matemática pode contribuir para
sua subversão, já que números, relações, matrizes, funções etc. pretendem
transformar a matemática na linguagem mais pura, natural e exata. Por exemplo:
6662 = “besta quadrada”. Ou o exemplo duplamente surrealista e escatológico
na equação proposta pelo matemático espanhol Carlo Frabetti: 2P2 + K2iA
+ A2 X1KDT = “dois peidos mascados e amassados por um cadete”.
Paradoxos
surrealistas
Outra possibilidade menos óbvia e menos frequente, mas muito mais
interessante, é de que a matemática não seja meramente o cenário de uma
travessura surrealista, mas seu instrumento. Quer dizer utilizar a própria
matemática respeitando sua lógica e pressupostos até o momento em que os
resultados sejam desconcertantes e antirracionais.
Mesmo lógicos e matemáticos chegam a paradoxos surrealistas como o caso
do matemático austríaco Kurt Gödel (1906-1978). Ele demonstrou que um conjunto
matemático estanque de axiomas e postulados deve ter necessariamente um erro
lógico, com uma inconsistência real ou, no mínimo, um caso intratável. Um
exemplo é o do barbeiro: numa cidade em que só há um barbeiro e que este
barbeia todos os que não podem se barbear sozinhos, ele próprio faz sua barba?
Caso faça, não faz. Caso não a faça, então faz.
Outra cilada lógica desse tipo (a racionalidade conduz ao seu inverso) é
aquela que diz “Eu sou João, um mentiroso” que contém uma contradição interna –
se ele é mentiroso, não se chama João; se estiver falando a verdade, logo ele
não é mentiroso e a afirmação é verdadeira...
Se um sistema tiver axiomas e pressupostos poderosos, sempre haverá uma
questão que poderá ser colocada em seu interior que não poderá ser respondida.
Lewis Carroll e a
matemática demente
Lewis Carroll, famoso pelo livro Alice
No País das Maravilhas, era também professor na Universidade de Oxford e
dedicou-se a vários ramos da matemática, em especial ao estudo da lógica. Além
do livro Matemática Demente (composto por deliciosos contos
matemático-humorísticos onde Carroll pretendia ensinar matemática através dos
seus paradoxos), muitos consideram Alice um romance matemático: através das charadas, paradoxos, trocadilhos, paroxismos
e sátiras, Carroll mostrou o ilógico e irracional por trás do mundo dos adultos
a partir dos próprios pressupostos da racionalidade.
Destacamos aqui o capítulo 5 (Conselho de uma Lagarta)
Nesta cena em Alice está diminuta e deseja
aumentar de tamanho. A Lagarta a aconselha a comer um pedaço de cogumelo e
Alice cresce demais, com a cabeça saindo por cima das folhas das árvores mais
altas da floresta. Uma Pomba que passa assusta-se ao ver Alice e a acusa de ser
uma Cobra, pois as Cobras têm pescoços compridos. Alice afirma que é apenas uma
menina e começa uma discussão entre elas sobre a natureza real da garota. Apesar
de no mundo real ser impossível confundir uma menina com uma cobra, no País das
Maravilhas a Pomba está perfeitamente certa do que afirma, baseada na lógica
matemática.
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"Queda D'Água" de Escher |
Sherry Turkle em O
Segundo Eu comenta o paradoxo matemático de Carroll “O que a tartaruga
disse a Aquiles”: Aquiles conversa com a tartaruga sobre um fonógrafo perfeito.
Mas se o fonógrafo chegar a uma certa altura do som destruirá a si mesmo. Logo,
todo fonógrafo tem que ser imperfeito. Se for não tocará a nota que irá
destruí-lo. Se for, forçosamente terá que ser limitado.
Nesse sentido, surrealismo e matemática não se opõem,
mas podem ser excelentes aliados. A fatal lógica matemática pode contribuir
eficazmente a desmascarar a falta de lógica dos esquemas de pensamento e a
atuação de sistemas opressivos. Muitos paradoxos, charadas e falácias
matemáticas constituem autênticas sátiras dos vícios de pensamento da nossa
cultura.
É a chamada “lógica do non sense” utilizada tanto por
escritores como Kafka até filósofos como Jean Baudrillard onde o filósofo
francês tematizava o vanish point de
todos os sistemas, a hipertelia (de hiper – sobre, além, fora das medidas - e telos – resultado, final, conclusão): a
natureza “maligna”ou “perversa” dos sistemas tecnológicos que chegam a um tal
grau de complexidade que se tornariam inúteis e inertes. Uma patafísica dos
sistemas!
Os mundos ocultos de Escher
No terreno gráfico, a contribuição
matemático-surrealista pode ser tão inquietante como no literário como
demonstra a obra do artista holandês M.C. Escher (1898-1972). A partir de 1937,
Escher experimentará os limites dos desenhos de perspectiva e mosaicos
utilizando 17 grupos de simetrias para conseguir criar quase inverossímeis
figuras humanas, de animais e de seres fantásticos e depois integrando esses
mosaicos em composições mais complexas, onde distintos planos da realidade se
interseccionam de forma alucinante.
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Os castelos de Escher (esquerda) e Magritte (direita) |
Se o mosaico lhe servia como base para expressar
estranhas passagens entre o mundo plano e tridimensional, suas estruturas
impossíveis (Belvedere, Subindo e
Descendo, Queda d’Água) põem em evidencia a natureza ilusória da
tridimensionalidade das figuras em perspectiva; mas, por outro lado, sugere –
com uma intensidade irracional – a iminência de um mundo tetradimensional onde
os possíveis giros, composições e montagens são inconcebíveis em nosso
universo.
Não é difícil detectar em um pintor surrealista como
Magritte influências escherianas que vão além da mera coincidência temática
como a existente em obras como Castelo
sobre os Pirineus e O Castelo no Ar
de Escher.
Esse é o grande paradoxo proposto por Escher e é a
chave do seu insólito fascínio: faz nos lembrar que a perspectiva é a mera
matematização do espaço e uma ilusão tridimensional produzida por uma imagem
plana. Escher sugere uma nova dimensão ao esconder a terceira e insinuar a
quarta. Demonstra como a tridimensionalidade é subjetiva e virtual e que se
desgarra entre a bidimensionalidade (objetiva) do papel e a
tetradimensionalidade que remete diretamente à geometria não euclidiana. A
perspectiva é ao mesmo tempo abolida e transcendida.
O tópico surrealista (e gnóstico) do homem preso em
um mundo inverossímel encontra em Escher sua expressão mais intensa e
sugestiva. Portanto, o protagonista escheriano (que é o observador das suas
obras) é igual ao protagonista dos relatos de Lewis Carroll (que é o leitor):
estão em um mundo cuja realidade convencional é colocada em xeque para colocar
em evidencia outra realidade mais profunda e complexa que está escondida.