sábado, agosto 06, 2011

O Herói Alquímico no filme "Sinédoque, Nova York"

O filme "Sinédoque, Nova York" aprofunda ainda mais a simbologia gnóstica e alquímica dos trabalhos anteriores de Charlie Kaufman como roteirista. Narra a jornada do herói que busca a individuação numa cultura marcada pelo medo do anonimato e da insignificância do gesto individual. Através de uma verdadeira jornada alquímica de transformação busca a verdade numa sociedade inautêntica.

“Sinédoque, Nova York” é o primeiro filme como diretor de Charlie Kaufmann, roteirista de filmes anteriores como “Quero ser John Malkovich”(Being John Malkovich, 1999), “Adaptação” (Adaptation, 2002) e “Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças”(Eternal Sunshine of the Spotless Mind, 2004). Tal como nesses filmes extravagantemente conceituais, aqui, como diretor, Kaufmann tem a plena liberdade em desenvolver todos os simbolismos lançados nos trabalhos passados.

Os trabalhos de Kaufman como roteirista já transitavam por simbolismos de inspiração na mitologia gnóstica como a discussão da reencarnação como uma prisão para o espírito no cosmos físico em “Quero Ser John Malkovich” (veja links abaixo) e o indivíduo prisioneiro em um mundo mental cujas memórias são manipuladas por um Demiurgo tecnognóstico em “Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças”.

Dessa vez, e com plena liberdade, Kaufman aprofunda ainda mais todos esses simbolismos ao empreender uma jornada alquímica no sentido dado pelo psicanalista Jung. Em entrevistas, Charlie Kaufman tem salientado que não pretende fazer filmes que tentam transpor para a tela as imagens dos sonhos, mas, ao contrário, explorar a vida interior dos protagonistas por meio de narrativas oníricas.  Em outras palavras, ele pretende transpor a narrativa onírica composta por metáforas e metonímias (condensações e deslocamentos, como dizia Freud) para a narrativa fílmica. Daí o nome do filme “Sinédoque” que é uma forma de linguagem metonímica como veremos adiante.


“Sinédoque, Nova York” trata de um protagonista que busca autenticidade em um mundo inautêntico. É um filme sobre o fracasso, sobre a luta de um protagonista para deixar a sua marca em um mundo cheio de pessoas que são mais talentosas, bonitas, glamorosas e desejáveis do que o resto de nós. A narrativa de Kaufman sobre os estágios de transformação psicológica do protagonista são claramente inspirados nos arquetípicos estados alquímicos de transformação da matéria (nigredo, rubedo e albedo). Se o diretor, desde os seus trabalhos como roteirista, bebia nas fontes da psicanálise gnóstica junguiana, nesse filme é explícita a aproximação com a metáfora alquímica de Jung para o processo de individuação humana.

O filme nos conta a estória de um diretor de teatro, Caden Cotard (Philip Seymour Hoffman) casado com uma talentosa pintora Adele (Catherine Keeler). Os dois moram em Nova York com sua filha de quatro anos Olive (Sadie Goldstein). Vivem uma vida envoltos em uma melancolia depressiva dentro de uma casa propositalmente de aparência frágil com cômodos pequenos e atmosfera opressiva. Visitam uma terapeuta de casais onde Adele confessa sua fantasia de que somente seria feliz se Caden morresse para, enfim, poder viver uma nova vida sem culpas.

A peça que Caden dirige se tranforma em sucesso, mas a sua vida cai em pedaços: Adele finalmente tem seu talento reconhecido e vai para Berlin levando sua filha Olive e uma amiga junkie. Só, hipocondríaco e com feridas que começam a surgir no seu corpo, Caden fica para trás. Enquanto isso, Adele e Olive transformam-se em estrelas na mídia alemã, líderes de tendências em moda e comportamento.

Até que um dia ele recebe pelo correio a notícia de que recebera o Prêmio da Fundação MacArthur (premiação em dinheiro para subvencionar trabalhos inovadores e criativos). Então decide trabalhar em uma produção teatral monumental. Diz para a terapeuta com uma sinceridade funesta que pretende criar “algo grande e verdadeiro, colocar o meu verdadeiro Eu em alguma coisa”

A gigantesca produção teatral de Cadem:
um laboratório alquímico
Dentro de armazém impossivelmente enorme pretende criar uma réplica exata do bairro em que mora em Nova York, dirigindo milhares de atores, orientando-os em separados para reproduzirem vinhetas realistas. Quer reproduzir na ficção teatral no interior de uma gigantesca cenografia a sua própria vida até que ficção e não-ficção se confundam. Como o mapa gigante do conto de Jorge Luis Borges "O Rigor da Ciência" (1935) onde a representação (o mapa) de tão minuciosa assume as dimensões da realidade a ponto de substituí-la.

Os Estados Alquímicos

O pesquisador Eric G.Wilson em seu livro “Secret Cinema: gnostic visions in film” desenvolve a noção de “cinema alquímico” dentro do conjunto de filmes hollywoodianos que se inspiram na mitologia gnóstica. Para ele, ao longo da sua história o cinema criou dois tipos de heróis: o “extrovertido” que tenta intervir e alterar o mundo exterior e o “introvertido” que através da contemplação cultiva valores internos. Diferente disso, o “cinema alquímico” pratica a “centroversão”: busca integrar o mundo interior e exterior através de um processo de transformação íntima através dos estados alquímicos de transformação da matéria.

Apesar das diferenças nas instruções dos alquimistas desde a antiguidade, pode-se notar uma concordância no que se refere aos estágios do processo alquímico de transformação:

  • Nigredo (enegrecimento); o caos primário de indiferenciação. Seus símbolos são o oceano, a serpente ouroboros e o caduceu de Mercúrio. O estado psicológico é a melancolia, associada à influência de Saturno. Ao falar sobre o que representa a sua gigantesca produção teatral, Caden fala em “banho comum, porque estamos todos na mesma água, mergulhados em nosso próprio sangue menstrual e emissões noturnas”. A melancolia de Caden vê a realidade como um caos de indiferenciações, alienado de qualquer sentido;

  •  Albedo (enbranquecimento): Sob a influência da Lua o caos é estabilizado, imobilizado em um estado abstrato, ideal. É o momento em que Caden cria um simulacro de Nova York no estúdio gigantesco. Sonhos e fantasias tornam-se perigosos, podendo o herói tornar-se “lunático” e se perder em seus próprios sonhos. Isso parece ocorrer tando com Caden como para o próprio espectador que começa a confundir realidade e representação numa narrativa em abismo (atores que representam personagens reais que representam que são atores...)

  • Rubedo (enrubescimento): a esse estado ideal e congelado é injetado o sangue, o Sol, a vida. O microcosmo encontra sua conexão com o macrocosmo. Caden encontra, ao final, a energia vital que mobiliza dos os atores na sua “sinédoque” teatral (a parte que representa o todo): paradoxalmente, o que mobiliza a vida é a morte. “Tive uma ideia, e se todos morressem”, fala Caden ao final reconhecendo a impossibilidade de dirigir a vida como no teatro. 

Ao transformar a sua gigantesca produção teatral num verdadeiro laboratório alquímico onde procura a reddenção em meio ao caos das relações humanas, Caden se diferencia do caminho escolhido por Adele para dar conta da melancolia: ela vai procurar a redenção através da imagem, da fama, do estrelato e do sucesso midiático.

A angústia da individuação nas redes de comunicação

O estados alquímicos correspondem aos
estágios psíquicos da individuação
A melancolia e a angústia atual surge num paradoxal dificuldade de individuação: embora as redes de comunicação atuais mobilizem uma fantasia narcísica de onipotência (a esperança de ter um gesto ou palavra ecoado pelas redes sociais), por outro lado cresce a angústia em relação à qualidade, duração e significado dos atos individuais.

Ter filhos, escrever um livro e plantar uma árvore (a marca individual deixada para a posteridade) torna-se cada vez mais improvável numa época que, ironicamente, convivemos com a mais fantástica rede de mídias, comunicação e informação da História. Cresce a percepção melancólica, o medo de morrer anônimo, sem um gesto significativo, sem o reconhecimento da posteridade.

“Sinédoque, Nova York” é notável em apresentar os dois caminhos para o problema da individuação contemporânea: a redenção através da imagem, do gesto hiperbólico que busca repercussão midiática; ou através da jornada alquímica, da sinédoque que Caden cria num verdadeiro laboratório alquímico em que se transformou o gigantesco estúdio. Adele quis encontrar um atalho para o mal estar da individuação através da fama midiática. Ao contrário, Caden mergulha fundo no caos, na angústia da indiferenciação, numa gigantesca peça de teatro sem público onde todos reencenam a si mesmos como em uma enorme sessão de psicanálise.

Cadem é o herói alquímico: ele não quer transformar o mundo e nem embarcar em um mergulho interior solipsista ou alto-indulgente. Busca um terceiro caminho, o tertium quid, redimir a matéria e encontrar a integração cósmica que é o princípio do gnosticismo hermético: “Acima como abaixo” ou o que está no mundo menor (microcosmo) reflete o que está no mundo maior (macrocosmo).

Como Charlie Kaufman descobre ao final com Caden, é na consciência que vivemos para morrer onde encontramos o significado do gesto individual: cada detalhe, cada ação reflete um sentido maior que nos escapa (como Caden descobriu ao tentar inutilmente dirigir milhares de atores). Ironicamente, é nessa ignorância que reside a nossa liberdade.

Ficha Técnica


  • Título: Sinédoque, Nova York (Synecdoche, New York)
  • Diretor: Charlie Kaufman
  • Roteiro: Charlie Kaufman
  • Elenco: Philip Seymour Hoffman, Samantha Morton, Michelle Williams, Catherine Keener, Tom Noonan, Dianne Wiest
  • Produção: Likely Story, Sidney Kimmel Enternainment
  • Distribuição: Imagem Filmes
  • País: EUA
  • Ano: 2008





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