domingo, junho 26, 2011

A Carne de Excrementos Humanos: o Resto e o Mal

A reciclagem universal de detritos passou a ser a nossa tarefa histórica onde a própria espécie humana passou a produzir-se a si própria como detrito e a levar a cabo em si mesma esse trabalho de dejeção. É o sintoma de um sistema que tenta extirpar o Mal ao reciclar os restos ao convertê-los em mercadorias. A ideologia de raciclagem é la pièce de résistance do discurso ecologicamente correto.

Peço desculpas aos leitores pelo tema tão desagradável neste humilde blog especializado em cinema, cultura pop e gnosticismo. Mas, acreditem, se usarmos o método de investigação do agente Kevin de “MIB – Homens de Preto” (discutido em postagem anterior – veja links abaixo) onde ele buscava a verdade sobre os extraterrestres em tabloides sensacionalistas, veremos que essa bizarra notícia é muito mais do que um fato pitoresco do mundo científico. Pelo caráter de artefato experimental é um sintoma do destino final do discurso ecológico, convertido agora em fundamentalismo tecnomístico.

Se no passado o discurso ecológico denunciava a poluição e a destruição do meio ambiente como efeitos da lógica reprodutiva e de exploração do capital, agora a agenda da necessidade de reciclagem dos restos produzidos pela civilização industrial e de consumo torna-se a pedra de toque de um reformismo ambientalista. Seu objetivo é não só o ideológico (as intenções altruístas e socialmente corretas do capital), mas, principalmente, a reciclagem econômica: transformar os “restos” em novas “commodities”  para o mercado.

Mas antes de tudo vamos à notícia. Segundo matéria da redação da revista “Galileu”, o cientista japonês Mitsuyuki Ikeda teria criado “uma terceira via para quem é vegetariano e não gosta de carne de soja: carne feita de excremento humano”.  Segundo Ikeda, o objetivo é que a carne seja comercializada regularmente e vire um produto disponível a todos.
 

E como ela é feita?
Ikeda pega placas de lodo do esgoto, que contêm muitas fezes humanas. Delas ele retira as proteínas e os lipídios, que passam por um processo intenso de calor no qual todas as bactérias vivas morrem. À mistura, é adicionado um intensificador de reação. Para que o produto final tenha gosto de carne, coloca-se proteína de soja e molho de carne (normal)”. ("Carne Feita de Fezes Humanas" disponível em: http://revistagalileu.globo.com/Revista/Common/0,,EMI241874-17770,00-CARNE+FEITA+DE+FEZES+HUMANAS.html)
O problema da fome mundial não é de
produçãomas da distribuição comandada
pelasleis do mercado
O primeiro benefício da “carne” já é em si uma peça ideológica: “uma solução para a crise de alimentos global”. Crise de alimentos de quem cara pálida? Sabemos que o problema alimentar mundial não é de produção (as décadas de tecnologia agroindustrial potencialmente superaram a demanda mundial por alimentos), mas de distribuição (político): as leis do mercado não permitem a igualdade na distribuição de alimentos (superproduções são destruídas para se manter o valor de mercado determinado pela produção artificial da escassez).

Os esforços científicos do Dr. Ikeda já comprometem, de saída, sua heroica determinação contra a fome mundial: a própria exotismo da tecnologia da produção da “carne de cocô” (“Shit Burger”) determinará uma valor diferenciado no mercado, semelhante ao que ocorre com a alimentação dita “natural”, cara  e feita para poucos.

A Reciclagem do Mal

Mas há algo de mais profundo, um verdadeiro sintoma de um sistema que, através de uma compulsão cirúrgica, procura eliminar todos os traços de negatividade, anomalia e da existência do Mal. A compulsão pela “reciclagem” (la pièce de résistance da ecologia corporativa) chega ao paroxismo quando transforma o próprio ser humano em detrito que necessita ser reciclado.

Graças às matrizes gnósticas do seu pensamento, o filósofo Jean Baudrillard talvez tenha sido o autor que mais seriamente se confrontou com a existência ontológica do Mal e as consequências políticas de uma sociedade que, graças a todo um esforço tecnológico, tenta extirpá-lo da existência.

Para ele, a “reciclagem universal de detritos” é a mais recente peça ideológica que procura eliminar a presença do Mal do nosso horizonte existencial, para que os restos produzidos pela concentração industrial e urbana não denunciem a irracionalidade do todo.
“O pior é que, ao longo dessa reciclagem universal dos detritos, que passou a ser nossa tarefa histórica, a espécie humana começa a produzir-se a si própria como detrito e a levar a cabo em si mesma esse trabalho de dejecção. O pior não é sermos submersos pelos detritos da concentração industrial e urbana, é termo-nos transformado em detritos. É que a Natureza, o mundo natural, se torne residual, insignificante, incomodo, que não saibamos desembaraçar-nos dele. Produzindo estruturas altamente industrializadas, sistemas urbanos, industriais, técnicos, de alta definição, concentrando implacavelmente os programas, as funções, os modelos, transformando tudo o resto em detrito, resíduo, em vestígio inútil” (BAUDRILLARD, Jean. “A Ecologia Maléfica” In: A Ilusão do Fim, Lisboa: Terramar, 1992, p. 117)
A existencial do Mal (aqui pensado não no sentido moral, mas ontológico, isto é, como a própria imperfeição cósmica onde eventos produzem o seu sentido inverso – a paz produz a guerra, os alimentos a fome e o mercado a escassez) em nossas sociedades é a criação do “resto” que necessita urgentemente ser reciclado para que a sua mera existência não denuncie a irracionalidade de todo um sistema econômico que produz continuamente “excrementos”.

Das garrafas pets a baterias e componentes de computadores encerrados em contêineres e enterrados em países africanos, agora são os próprios seres humanos que são produzidos como restos: Imigrantes, deportados, desaparecidos, ghost people,  de todas espécie e sorte. Necessitam igualmente ser “reciclados” para que desapareçam de vez.

A necessidade da reciclagem do humano está em toda parte: idosos disfuncionais ao sistema (e à previdência estatal) são reciclados na previdência privada e nos programas de terceira idade; a doença e a morte são recicladas pela tecnologia médica que maquia os sintomas e prolonga artificialmente a vida; os corpos cansados e a velhice são reciclados pela cirurgia plástica e pelas academias anabolizadas; o psiquismo cansado pelo atrito com a realidade é reciclado pelos avatares das redes virtuais que produzem novos egos hiper-reais; desempregados no sistema formal de trabalho são reciclados pelo “empreendedorismo” onde, “patrões de si mesmos”, produzirão novas empresas que, por sua vez, produzirão mais excrementos: a falência e insolvência.

Por todos os lados o Mal se reproduz, o sistema produz excrementos que não podem retornar à Natureza, mas necessitam ser reciclados como commodities. Quanto mais os excrementos humanos têm interditada a sua integração final à Natureza, mais necessitam ser reciclados  e autofagicamente reintegrados ao sistema como mercadoria. Temos, então, o estágio final e paradoxal: o próprio ser humano pensado como um dejeto igualmente reciclável.

A boa e idílica Natureza produz o Mal: o incerto, a entropia, o acaso, o esgotamento, a destruição, a doença etc. Ao contrário, os sistemas econômicos e culturais negam essa natureza maligna, apesar de, igualmente, produzirem o Mal, o resto e o excremento. A ideologia da reciclagem é a última estratégia (fatal) de tentativa de extração cirúrgica do Mal da realidade. Objetos e materiais não degradáveis (plástico, pilhas, baterias, pneus etc.) reciclados como mercadorias para serem reintegrados ao sistema econômico. A última fronteira, portanto, é o próprio ser humano visto como excremento disfuncional que necessita ser reciclado, não para retornar à Natureza, mas para ser reintegrado ao sistema econômico como mercadoria.

O Horror diante da antropofagia

A euforia do Dr. Ikeda vista acima é bem diferente do horror do personagem de Charlton Heston no filme “No Mundo de 2020” (Soylent Green, 1973). No filme ele faz um policial de Nova York que, ao investigar a morte de um rico empresário das indústrias Soylent Corporation, acaba descobrindo uma verdade estarrecedora: a principal fonte de alimento do planeta (o “soylent green”) era um composto feito a partir da reciclagem de mortos humanos. Toda essa sociedade do futuro, na verdade, era antropofágica (desculpas pelo spoyler).

Parece que estranhamente a realidade aproxima-se dessa ficção, mas com uma diferença: se no filme “No Mundo de 2020” experimentamos o horror irônico da narrativa (o alimento ainda era de cor verde para dar uma conotação ecologicamente correta), agora testemunhamos a ingênua amoralidade do Dr. Ikeda.

Quem sabe toda essa notícia e o vídeo disponível no Youtube (veja abaixo) sejam meros virais ou uma elaborada “pegadinha” dessas que rondam a Internet. Se for, a mera formulação da piada seria, igualmente, outro sintoma irônico da percepção de que o fundamentalismo ecologicamente correto cada vez mais se torna um discurso ideológico.




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