quarta-feira, dezembro 28, 2022

As ironias de um terror "woke exploitation" no filme 'Noites Brutais'


Este humilde blogueiro adora escrever e falar sobre filmes porque eles não são meros produtos de entretenimento. São verdadeiros sismógrafos que detectam as mudanças do imaginário e sensibilidades de cada época. O terror indie “Noites Brutais” (Barbarian, 2022) é um quebra-cabeças irônico que, de um lado, ambienta-se em dois aspectos da globalização: uma Detroit desindustrializada e a nossa confiança cega em plataformas digitais como Airbnb ou Uber. E do outro, a transformação da matriz do terror com o subgênero “terror de gênero” ou “woke exploitation” no qual o Mal emerge agora da masculinidade tóxica.  Tess e Keith são vítimas possivelmente de um golpe de reserva dupla de uma casa pelo Airbnb em um decadente e quase apocalíptico bairro periférico de Detroit. Lá descobrirão da pior maneira possível que a casa não é aquilo que parecer ser.

Algo de profundamente irônico esconde-se no terror indie Noite Brutais (Barbarian, 2022). Na superfície, temos um filme de terror autoconsciente de muitos clichês dos anos 80 e 90 com os quais brinca alegremente. Mas abaixo dessa superfície escondem-se ironias atuais e históricas. De um lado, empresas modernas que dependem da confiança cega dos usuários, como Airbnb e Uber – o que podem estar por trás de uma casa alugada ou um motorista requisitado por um aplicativo. 

Um exemplo de filme que explora esse nicho de terror contemporâneo é Spree (2020) no qual horror e precarização do trabalho e do próprio psiquismo voltam-se contra incautos usuários de um aplicativo de viagens que dá nome ao filme.

 Mas ainda mais profunda é a ironia de um filme que mais um exemplar do novo subgênero do chamado “terror de gênero” ser ambientado na decadente cidade de Detroit – com o seu fenômeno de gentrificação urbana e desindustrialização acelerada (outrora chamada de “capital do automóvel), ficou marcada como uma cidade pertencente ao “cinturão da ferrugem” com o declínio econômico, populacional e urbano.

O terror de gênero como subproduto cultural da globalização impulsionado pelos novos democratas e do politicamente correto – globalização que alterou a cadeia produtiva global em busca de mão de obra mais barata, deslocando as manufaturas para a Ásia. Deixando a América profunda subempregada e precarizada.

Noites Brutais é uma continuidade desse subgênero tributário dos movimentos indentitaristas e woke que ganha cada vez mais força (She Will, Men, Não! Não Olhe! etc.) no qual a masculinidade tóxica é a fonte de todo o Mal. Curiosamente, um subgênero que abandona a matriz edipiana que, até recentemente, era a fonte de todo o terror no cinema: dramas envolvendo culpa, incesto, a sedução da inocência, sexo culpado (sadomasoquista), a percepção do corpo fragmentada do corpo pelo infante pré-formação do ego (daí o porquê do fascínio pelos corpos despedaçados, vísceras e sangue no cinema de terror) etc. E, principalmente, o Mal e o Estranho como os nossos próprios impulsos aos quais deveremos renunciar na resolução do Édipo e na entrada ao mundo da Cultura.

Em Noites Brutais todos os personagens masculinos são tóxicos ou pusilânimes. Enquanto aqueles que tentam fazer alguma coisa para salvar a heroína são ingênuos ou simplesmente burros.  Restando à protagonista arrancar alguma força interior para sobreviver a uma verdadeira conspiração masculina malévola.

O fio do terror começa a ser puxado a partir de um aborrecimento comum numa economia de serviços centrados em plataformas tecnológicas e aplicativos: Tess (Georgina Campbell) e Keith (Bill Skarsgard – que, ironicamente, fez o palhaço Pennywise em It) se encontram vítimas de um golpe de reserva dupla de uma casa em um decadente e quase apocalíptico bairro periférico de Detroit – nas ruínas que cercam a única casa decente do bairro, mora apenas um sem-teto (Jaymes Butler) aparentemente desiquilibrado que aterroriza as ruas.



Outra ironia: Tess é uma pesquisadora de documentários que veio a uma entrevista de empregos para a produção liderada por uma diretora famosa no meio independente. Sem muito dinheiro, recorre a uma alternativa barata no Airbnb. Para naquela casa encontrar uma estranha porta que conduz a um porão. 

No terror clássico, esse porão seria as portas para os fantasmas do inconsciente originados de traumas edipianos. Bem diferente, em Noites Brutais Tess encontrará naquele porão o horror: do que é capaz a masculinidade tóxica e doentia.

O Filme

O escritor/diretor Zach Cregger prova ser um verdadeiro cineasta de terror com Noite Brutais, começando com um pesadelo que poderia acontecer com qualquer um de nós - um Airbnb com reserva dupla. A pesquisadora de documentários Tess chega à noite sob uma chuva torrencial em uma casinha em uma parte esquecida de Detroit, e um cara sonolento chamado Keith já está hospedado lá. Ele finalmente a convence a ficar até que eles liguem para o proprietário e resolvam o problema. 

A ótica de Tess é da mulher se colocando em uma desconfortável vulnerabilidade. Keith comprova no seu celular o comprovante de reserva feita em outro aplicativo, acalmando as desconfianças de Tess. Calma o suficiente para juntos abrirem uma garrafa de vinho deixada como boas-vindas pelo locador e relaxarem na noite anterior antes dos protagonistas descerem no caos e horror.



Porque logo chegará a hora de verificar o porão da casa, que, provavelmente, o leitor não gostaria de descer até lá ou passar por outra porta que pode ser aberta com um fio de corda.  Apesar do viés moderno do terror de gênero, o clichê clássico continua: como os protagonistas conseguem tomar as piores e improváveis decisões possíveis ao querer ultrapassar os limites de uma porta no fundo de um porão, aberta por uma corda através de um buraco na parede. Certamente não parece ser uma boa decisão para alguém quem tem um futuro pela frente em um novo emprego – num filme de terror toda curiosidade precisa ser punida!

A escolha de Bill Skarsgard, o ex-palhaço Pennywise de It, é uma prova que o elenco é parte vital numa produção cinematográfica: sua presença passa a ser tão perturbadora quanto o porão e seus corredores escuros – aqueles olhos circulares e sua presença imponente criam sequências tensas para Tess numa situação vulnerável.

Mais tarde, acrescenta-se o segundo plot narrativo, quando AJ (Just Long) aparece naquela casa. Ele é o locador que ignora tudo o que está acontecendo. Ele é um desprezível diretor de cinema envolvido em um escândalo de agressão sexual denunciado pelo #MeToo às voltas com a drenagem das suas contas bancárias com a contratação de advogados. Não resta uma alternativa para AJ a não ser vender aquela propriedade de Detroit.



Um terceiro plot narrativo será acrescentado, com mais masculinidade tóxica: um flashback dos anos 80-90 sobre um típico red neck pirado e sequestrador de mulheres em série, antigo morador daquela casa. Como esperado, aquele porão tem um histórico sinistro envolvendo os crimes sexuais do passado.

Noites Brutais é um típico exemplo de como os filmes são sismógrafos da História. Repósitórios do imaginário ou sensibilidade de uma época. No caso, um quebra-cabeças irônico de transformações culturais e econômicas das últimas décadas: a Detroit decadente como um símbolo da desindustrialização norte-americana gerada pela Globalização e o terror de gênero como componente ideológico desse movimento de transformação planetária – o neoliberalismo progressista.



Mas é no campo da psicanálise do gênero terror que Noites Brutais é mais interessante: a substituição da matriz edipiana pela dominação masculina do ponto de vista do identitarismo – o Mal não se origina mais dos porões do inconsciente com os fantasmas dos traumas passados. Mas dos relacionamentos de gêneros atuais, contaminados pela masculinidade tóxica.

Nesse aspecto há uma sensível perda da natureza universal do Mal, sempre presente na filmografia do gênero. Se no passado o Mal se originava nos traumas psíquicos ligados à sociedade patriarcal (a loucura familiar e social produzida pelo patriarca/burguês opressor) ou dominação de classes (Drácula e a aristocracia), agora tudo emerge de uma toxicidade que seria inerente à masculinidade. 

O discurso woke até fala em “sociedade patriarcal”, mas não como um produto histórico das origens do Capitalismo. Mas como dado cultural, ético ou moral, um tipo de mal renitente que somente pode ser enfrentado pela exposição, denúncias e por mulheres destemidas e resilientes como a protagonista Tess de Noites Brutais



   

Ficha Técnica

 

Título: Noites Brutais

 

Diretor: Zach Gregger

Roteiro: Zach Gregger

Elenco:  Georgina Campbell, Bill Skarsgard, Justin Long, Jaymes Butler

Produção: Boulderlight Pictures, Hammerstone Studios, Regency Enterprises

Distribuição: 20th Century Fox

Ano: 2022

País: EUA

 

 

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