quinta-feira, outubro 20, 2022

'O Telefone do Sr. Harrigan': há certas ligações que jamais podem ser atendidas


Certamente o conto de Stephen King “Mr. Harrigan’s Phone” (sobre o fantasma de um recém-falecido que se comunica através de um telefone com o amigo que deixou entre os vivos) inspirou-se na bizarra invenção de Thomas Edison em 1920: uma espécie de “disque fantasma” ou “telefone espiritual” para os mortos poderem se comunicar com os vivos. Um exemplo de como o Oculto misturou-se com a Ciência no início da Era da Informação. A produção Netflix “O Telefone do Sr. Harrigan (2022) adapta o conto de Stephen King indo muito além do sobrenatural: mais do que informar, os meios de comunicação acabaram se tornando reflexos dos nossos próprios fantasmas interiores. 
 

De todas as forças que compõem o cosmos, a eletricidade é aquela que mais define a modernidade. Uma força que até hoje está envolta em mistério. Todas as dinâmicas físicas da civilização como velocidade, peso, gravidade, movimento já foram dissecados pela ciência e, por isso, não despertam mais tanto a nossa imaginação.

Mas com a eletricidade sempre foi muito diferente: um mundo invisível de campos eletromagnéticos e frequências que ainda desperta mistérios. Mesmo que faça parte do nosso cotidiano através dos dispositivos áudios e visuais como rádio, cinema e TV.

Por exemplo, para o pesquisador alemão, convertido ao budismo tibetano, Anagarika Govinda, conhecemos as leis que tornam a eletricidade útil na nossa civilização, porém não sabemos a sua origem e a real natureza dessa força – leia DAVIS, Erik, TechGnosis, Myth, Magic and Mysticism in the Age os Information, 2004.

Não é à toa que o inventor e empresário norte-americano bem-sucedido Thomas Edison (1847-1931), conhecido por centenas de patentes de invenções como o fonógrafo e a câmera cinematográfica, além de criar a versão eficiente da lâmpada incandescente, partilhava da visão esotérica ou animista da eletricidade - Por isso o espiritualismo se tornou a primeira religião da Era da Eletricidade e da Informação.

Não só partilhava como também construiu um dispositivo para conversar com os mortos – o telefone espiritual, uma espécie de “disque-fantasma”. Em 1920, ele disse à The American Magazine: "Estou trabalhando há algum tempo construindo um aparato para ver se é possível que personalidades que deixaram a Terra se comuniquem conosco". Outros mais tarde se referiram a esse dispositivo como seu "telefone espiritual" - clique aqui.

Certamente o escritor Stephen King inspirou-se nessa surpreendente conjunção entre misticismo e os primórdios da Era da Informação para escrever o seu conto “Mr. Harrigan’s Phone”, uma pequena e maravilhosa história de fantasma. Agora adaptada para a telinha na produção original Netflix O Telefone do Sr. Harrigan (2022), com roteiro e direção de John Lee Hancock.

Um conto sobre um smartphone que se transforme num canal de comunicação com o além-morte. Embora haja pavor o suficiente na história de um jovem protagonista que inadvertidamente descobre que o fantasma de um velho capitalista recluso está atento à sua vida através de um celular, Stephen King inclina-se muito mais para o drama do que o horror – uma história de amadurecimento, moralidade e amizade.

Uma amizade improvável entre um garoto chamado Craig (Jaeden Martell) o bilionário recluso Mr. Harrigan (Donald Sutherland), um capitalista cruel que, em sua vida, não hesitou um segundo em destruir a vida de pessoas que cruzaram seu caminho como adversários.

O drama nasce do vínculo durável (até depois da morte) a partir de uma amizade improvável que nasce de um encontro fatídico.

É justamente essa a posição desconfortável em que se encontrou John Lee Hancock na adaptação para a Netflix: além de ter que estender um pequeno conto para um longa-metragem, os elementos sobrenaturais demoram para aflorar, concentrando-se mais no interior do psiquismo do protagonista Craig. Ainda assim, o sobrenatural nesse conto parece ser mais um pretexto para discutir a questão moral da vingança.

Por isso O Telefone do Sr. Harrigan não é um conto exatamente cinematográfico, pelo menos para aqueles que procuram experiências assustadoras. O resultado, é um filme de queima lenta. 



Além disso, adaptação do conto de Stephen King preenche o primeiro ato com uma reflexão contundente sobre a dependência da tecnologia: o momento em que o velho Sr. Harrigan, ainda fortemente centrado em uma cultura tecnológica em seu grande casarão numa pequena cidade, no Maine, EUA, toma contato pela primeira vez com um smartphone. Trazido pelo seu jovem amigo, sem saber esse presente selará o seu futuro.

O Filme

O Telefone do Sr. Harrigan nos apresenta Craig na infância (Colin O’Brien): morando com o pai, viúvo, acompanhamos suas reflexões interiores, com voz em off, apresentando sua pequena cidade e seus personagens – principalmente o bilionário recluso Sr. Harrigan, com uma má fama ao estilo do avarento Sr. Scrooge do conto de Natal de Charles Dickens. 

O rico Sr. Harrigan contrata Craig para ler para ele, porque os olhos do velho estão cansados pela idade avançada. O que se torna um complemento financeiro para o pai viúvo (Joe Tippett), já preocupado em custear a futura universidade para o filho.

Harrigan é um homem profundamente analógico. que não possui TV e nem rádio, mesmo que às vezes goste de ouvir suas músicas de “Country Western” no carro. 



Craig não só ganha a vida lendo clássicos da literatura como “Heart of Darkness”, de Joseph Conrad, mas quando eles discutem os temas dos livros depois. É uma amizade que contribui para o conhecimento e amadurecimento de Craig e um agradável final de vida para o Sr. Harrigan. Apesar da sua aparência afável, Harrigan guarda um ar severo e implacável de alguém que claramente destruiu muitas pessoas em sua escalada no mundo corporativo e das finanças. 

Ele encoraja Craig a ser também implacável e decisivo, seja enfrentando um valentão do ensino médio ou se aproximando de uma garota que ele gosta na escola. Ele dá confiança a Craig, e, em troca, lhe dá algum conforto no final da vida.

E o Sr. Harrigan também lhe dá um bilhete de loteria. Quando Craig recebe 3.000 dólares desse bilhete de raspadinha, decide pegar um pouco desse dinheiro para presenteá-lo com um Iphone, apresentando ele um desconhecido mundo digital. A princípio, Harrigan se recusa, até que o garoto mostra o quanto o experiente Harrigan pode ficar no topo do mercado com as últimas notícias financeiras em tempo real. 

Não demora muito para que o próprio Harrigan seja fisgado pelo telefone, permitindo diálogos verdadeiramente arrepiantes sobre o perigo de desistir da realidade pela vida de um smartphone. Enquanto Harrigan fala sobre como esses dispositivos serão usados ​​para notícias falsas e desinformação (ele está “assustado com esse aparelho”), o filme se transforma em um conto de advertência sobre o domínio da vida digital sobre o mundo real.



“Não acho que isso é apenas uma porta de entrada, onde o primeiro jogo é grátis... a Internet sabe o que eu quero! O que vai acontecer quando isso começar a espalhar fake news... Todos deveriam ter medo dessa geringonça”. 

Harrigan desconfia dos sites informativos porque não têm publicidade, ao contrário dos jornais analógicos, que vivem exclusivamente dos anúncios. Então, vivem do quê. O que querem de nós?

Mas, apesar da desconfiança, Harrigan vicia-se no aparelho até a morte. Ao ver Harrigan em seu caixão, no velório, Craig não resiste e coloca o Iphone no bolso do defunto. Quem sabe, numa inconsciente esperança de manter algum laço simbólico com Harrigan no pós-morte.

Assustado, Craig percebe que esse laço vai muito para além do simbólico. Transforma-se em um canal de comunicação real através do qual o fantasma de Harrigan pode ajudá-lo a se vingar de todos os adversários de Craig. Para começar, o valentão da escola que o agrediu.

O filme nunca realmente se torna assustador. É um conto moral de amadurecimento e das diferenças geracionais, mesmo quando um fantasma cruza com o mundo dos vivos através de um telefone celular. Uma reflexão sobre o que é crescer com o peso da morte pairando sobre sua cabeça e sobre como pensamentos sombrios poderiam ter repercussões horríveis se tivéssemos o poder de torná-los realidade.

Em O Telefone do Sr. Harrigan, mortalidade e moralidade convergem da seguinte maneira: o dano moral da vingança será um fardo pesado demais para carregar para o resto da vida. Como o Sr. Harrigan o fez por toda vida, até terminar os seus dias solitário. 

O elemento sobrenatural do filme conta ainda com uma ambiguidade fundamental: tudo pode ser real. Por outro lado, as mortes após as ligações com o além podem apenas ser meras coincidências e as supostas mensagens de Harrigan através do Iphone para Craig apenas uma brincadeira de mal gosto de alguém que hackeou o dispositivo. 

O principal tanto no conto de Stephen King como no filme é que são narrativas que ainda ecoam todo o misticismo e esoterismo que envolveu os primórdios da Era da Informação. Talvez porque mais do que informar, os meios de comunicação acabam se tornando de reflexos dos nossos próprios fantasmas interiores.


 

Ficha Técnica

 

Título: O Telefone do Sr. Harrigan

 

Diretor: John Lee Hancock

Roteiro: John Lee Hancock baseado em conto de Stephen King

Elenco:  Donald Sutherland, Jaeden Martell, Joe Tippett

Produção: Blumhouse Productions

Distribuição: Netflix

Ano: 2022

País: EUA

 

 

Postagens Relacionadas

 

Edison versus Tesla: o mistério do dispositivo para conversar com os mortos

 

 

O Conto "Neblina Sobre Xebico": Espiritualismo e Horror no Início da Era da informação

 

 

A vida antes das redes sociais no filme "Denise Está Chamando"

 

 

Curta da Semana: "La Boca Del León" - o primeiro exorcismo telefônico do cinema

 

 

Tecnologia do Blogger.

 
Design by Free WordPress Themes | Bloggerized by Lasantha - Premium Blogger Themes | Bluehost Review