quinta-feira, outubro 28, 2021

'Departamento de Conspirações': será que a própria série é um inside job do Estado Profundo?


A série de animação adulta da Netflix “Departamento de Conspirações” (“Inside Job”, 2021-) navega pelo atual mar revolto das teorias das conspirações. Principalmente depois que elas foram apropriadas pela extrema direita “alt-right” e se transformaram em ferramenta política de desinformação. A série tem um difícil desafio: transformar reptilianos e governos das sombras em uma espécie de meta-humor – fazer paródias em cima de algo que, em si, já são paródias. Ou melhor, psyops para neutralizar o perigo do crescente número de pessoas que historicamente começaram a contestar versões oficiais. “Departamento de Conspirações” lembra a “Hipótese Fox Mulder”: por que o governo, ao mesmo tempo que encobre o fenômeno OVNI, também permite que se faça tantos filmes sobre o assunto? Para que todos pensem que é coisa de cinema e, quando surgirem notícias verdadeiras, ninguém acreditar. Será que a própria série é um “inside job” do “Estado Profundo”?

Um governo das sombras secretamente domina o mundo? Pouso na Lua? Mentira! E a verdade do 11 de Setembro?

Esse humilde blogueiro mais uma vez vai lançar mão da chamada “Hipótese Fox Mulder”. 

Para aqueles leitores ainda não familiarizados com esse conceito, vamos explicar mais uma vez: em um dos episódios da série Arquivo X vemos o agente especial do FBI, Fox William Mulder, participando como convidado especial de um congresso de Ufologia. A certa altura, alguém lhe pergunta o motivo pelo qual ao mesmo tempo em que o governo dos EUA tenta esconder o fenômeno também permite que Hollywood produza tantos filmes sobre invasões alienígenas e OVNIs. E Mulder responde: “para que todos pensem que o fenômeno UFO é do mundo da ficção, coisa de cinema. Por isso, quando surgem notícias verdadeiras, ninguém acredita”.

A mesma hipótese poderia ser aplicada às conhecidas “teorias da conspiração”. Desde o seminal filme Capricórnio Um (1977), Hollywood flerta com o tema: de uma viagem para Marte encenada num estúdio, passando por Mel Gibson vendo todas as suas teorias conspiratórias tornando-se realidade em Teoria da Conspiração (1997) até chegarmos ao patriota Tom Hanks fazendo um CEO de uma gigante tecnológica com sombrios projetos para dominar o mundo em O Círculo (2017).

Principalmente quando olhamos para a história desse conceito. Pelo menos desde o século XVII até a década de 1950, as teorias da conspiração foram uma forma amplamente aceita de entender o mundo e, muitas vezes, as versões oficiais dos eventos. Eles eram articulados por elites e geralmente tinham como alvo inimigos externos ou subversivos que supostamente tentavam minar o Estado. Foi apenas durante o final dos anos 1950 e início dos 1960 que as teorias da conspiração começaram a se tornar uma forma estigmatizada de explicar grandes eventos.

Um efeito colateral desse movimento do mainstream para as margens da sociedade foi que as teorias da conspiração começaram a visar principalmente as elites sociais e políticas. Eles não estão mais preocupados com alegadas conspirações contra o Estado, mas com aquelas orquestradas pelo Estado.

O assassinato de Kennedy foi a primeiro momento em que as teorias da conspiração acusaram o Estado de tramar o mal secretamente e forneceram relatos alternativos que foram então rotulados de teorias da conspiração, como em documento de 1967 da CIA chamado “Concerning Criticism of the Warren Report” – que mostra a preocupação com o crescimento do número de pessoas que contestavam a versão oficial de que o assassino de Kennedy, Lee Oswald, agiu sozinho.



Mais uma vez a Hipótese Fox Mulder entra em cena quando a extrema-direita “alt-right” apropria-se do discurso conspiratória para fazer verdadeiras parodias das teorias da conspiração com coisas hiperbólicas como QAnon ou Pizzagate.

A série de animação adulta Netflix Departamento de Conspirações (Inside Job, 2021- ), criado por Shion Takeuchi (Gravity Falls) junto com o produtor executivo Alex Hirsch, é mais uma peça nessa longa história de décadas de psyops para desmoralizar narrativas que se oponham àquelas do Estado apoiadas pela grande mídia.

Departamento de Conspirações surge na esteira dos fenômenos das fake news, pós-verdades, memes auto-imunes e outras variações das rotuladas “teorias conspiratórias”. Se a apropriação alt-right já se constituíam em meta-conspirações (paródias, hipérboles etc.), a animação Netflix já faz uma cópia da cópia da cópia de conspirações, levando tudo ao paroxismo.

Numa quantidade alucinante de alusões com muitos triângulos, governos das sombras com membros vestindo sombrios capuzes, sacrifício ritual de animais para controlar o sistema financeiro, reptilianos disfarçados de celebridades pop, presidentes manchurianos etc., Departamento de Conspirações faz paródia de outras paródias de conspirações ao estilo cínico e cáustico de animações como Rick and Morty.




Mas parece que o título em português não faz jus à ambiguidade do título original: toda a série é ambientada numa organização do Estado Profundo (ou “Governo Paralelo”, como queiram) chamada Cognito Inc., com a função criar conspirações e manipular mídia e opinião pública para encobri-las. Ela faz um “trabalho interno”. Mas, e se a própria série for também um inside job? – com o humor metalinguístico (cópia da cópia das parodias alt-right), levar as teorias da conspiração ao deboche hiper-realista.

Afinal, originalmente não foi essa a função ideológica da apropriação alt-right de narrativas que sempre foram contra o status quo?

A Série

Reagan Ridley (Lizzy Caplan) é um cientista brilhante, porém disfuncional e insegura da Cognito Inc., que executa a vontade de um governo paralelo que controla secretamente o mundo. Ela está a caminho de liderar uma equipe de colegas de trabalho talentosos, mas muitas vezes dispersos e desatentos: o bioquímico sempre “high” Andre (Bobby Lee), a atrevida manipuladora de mídia Gigi (Tisha Campbell), o híbrido homem-golfinho/supersoldado Glenn, aquele que “ofereceu seu DNA à Pátria”, (John DiMaggio) e um estranho cogumelo com poderes psíquicos, que veio diretamente da Terra Oca, Myc (Brett Gelman) – “teoria da Terra Oca”, teoria conspiratória do regime nazista.

Mas JR (Andy Daly), o CEO da Cognito, nomeia um bajulador, que veio diretamente das secretas confrarias da Universidade de Yale chamado Brett Hand (Clark Duke) para co-liderar a equipe com Reagan. 




Departamento de Conspirações deixa claro que a promoção de Brett foi inteiramente baseada no fato de ser um cara branco, bajulador e heterossexual. A série se esforça para mostrar que a personalidade extrovertida e amigável de Brett é exatamente o que falta à crônica sociopatia de Reagan. 

Além disso, Reagan está sobrecarregada com os problemas da sua mãe, Tamiko (Suzy Nakamura) e, particularmente, de seu pai, Rand Ridley (Christian Slater), co-fundador e ex-CEO da Cognito Inc. Aposentado pelo seu alcoolismo crônico e paranoia que o tornou totalmente disfuncional.

O episódio piloto envolve a substituição do presidente “incompetente” por uma versão de robô com a qual a Cognito Inc. poderá realmente controlar o Governo.  Claro que funcionará mal, transformando-se na primeira IA senciente e autônoma e que se transforma num misto de Candidato Manchuriano e Exterminador do Futuro. E o que é irônico: virá um Trump ciborgue, adotando programas isolacionista como colocar os EUA dentro de um gigantesco cubo...

Piadas como essas insinuam uma premissa com grande potencial para a série. Porém, com o desenrolar dos episódios a narrativa vai se concentrando no desenvolvimento de cada personagem e seus conflitos no trabalho – principalmente Reagan, que a cada episódio se revela um poço de traumas e neuroses: odeia pessoas e, principalmente, abraços...




Aos poucos a premissa do piloto transforma-se em mero cenário para os conflitos, deixando os propósitos da Cognito Inc. muito vagos, gerando no espectador um gosto de “quero mais”. 

Fala-se muito do ódio contra a cidade e o povo de Atlântida; mais tarde é revelado que os Illuminatis são um grupo rival da Cognito Inc. Esses temas têm aparições rápidas e parecem muito mais interessantes do que as disputas pessoais dos personagens nas quais a série se concentra principalmente. Transformando Departamento de Conspirações em uma espécie de The Office do Estado Profundo.

Talvez a segunda temporada possa realmente mergulhar no âmago das capacidades da Cognito Inc., mas a estreia gira principalmente em torno dos danos emocionais e conflitos de Reagan (e em uma extensão um pouco menor, de Brett) com seus pais, onde as interações pessoais e o papel da empresa em geral é potencialmente muito mais intrigante. A luta de Reagan por respeito e poder em uma burocracia absurda e caótica se torna secundária em relação à montanha-russa emocional entre pai e filha, que parece um desperdício de um show repleto de tanto potencial absurdo.

Ou talvez a apropriação das teorias conspiratórias pela alt-right e o seu barulho nas mídias sociais com o meta-rótulo de “fake news” e “pós-verdades” seja exatamente isso: virou um ruído de pano de fundo. 

Esse é o verdadeiro inside job: reduzir a potencial virulência histórica das “teorias da conspiração” (desde que deixaram de ser maquinadas pelo mainstream e se voltaram contra o Estado) para se transformar em “coisa de cinema”, como sugeria o intrépido agente especial do FBI, Fox Mulder.


 

Ficha Técnica 

Título: Departamento de Conspirações (série de animação)

Criadores: Alex Hirsch, Shion Takeuchi

Roteiro: Alex Hirsch, Scott Miles

Elenco: Lizzy Caplan, Christian Slater, Clark Duke, Tisha Campbell, Andy Dalli

Produção: Nepton Studios, Netflix Animation

Distribuição:  Netflix

Ano: 2021

País: EUA

 

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