sexta-feira, maio 01, 2015

"Tropa de Elite" e "Guerra ao Terror": o São Jorge do BOPE e um Dragão que nunca existiu, por Claudio Siqueira

O que há em comum entre os EUA, com seu exército que massacra o Oriente Médio sob o pretexto de “Guerra ao Terror” e o BOPE ocupando as favelas cariocas? Além de serem endossados pela mídia em reportagens tendenciosas e filmes como “Tropa de Elite” e “Guerra ao Terror”, ao mesmo tempo está presente, nas formas mais sutis, o arquétipo de São Jorge e o Dragão. Desde o “Livro dos Mortos” egípcio, passando pela propaganda do império Romano até chegar na indústria do entretenimento atual dos filmes e HQs (Superman, Ultraman, Batman etc.), todos têm no ícone do “São Jorge, O Santo Guerreiro” a reedição por séculos de um poderoso arquétipo. Todos caçando monstros que só existem em sonhos.

* Claudio Siqueira é Estudante de Jornalismo, escritor, poeta, pesquisador de Etimologia, Astrologia e Religião Comparada. Considera os personagens de quadrinhos, games e cartoons como os panteões atuais; ou ao menos arquétipos repaginados.

Em Guerra ao Terror, filme vencedor de seis prêmios, Kathryn Bigelow fez o caminho inverso ao de James Cameron com seu Avatar, que mostra a vitória do oprimido; da favela, do Oriente Médio, do povo nativo contra o invasor. Não por acaso, ganhou apenas três.

Mas nada se compara ao filme Tropa de Elite. Por mais irônico que pareça, foi um sucesso por parte dos guerrilheiros urbanos citados no início deste ensaio. A continuação, Tropa de Elite 2, foi a maior bilheteria da história do cinema nacional, tendo sido o único a superar a marca de dez milhões de espectadores desde 1976, feito atingido por Dona Flor e Seus Dois Maridos.


"Guerra ao Terror" (The Hurt Locker, 2009)
Nada mais justo, tratando-se de um excelente longa metragem! Mas o mais curioso é que os bordões do Capitão Nascimento se tornaram comuns entre os traficantes e moradores, que os assimilaram e passaram a utilizá-los como brados de guerra. Era comum ver, mesmo poucos anos após a estreia do segundo filme, moradores e cidadãos vestindo a camisa com os dizeres “Guerra é Guerra!” e entoando o mesmo mantra bélico para cada situação corriqueira; desde a labuta até uma desavença particular.

Além do caráter belicoso e renegado – embora não de todo subversivo – o grupamento social marginalizado possui uma coisa em comum: seu grito de guerra “fé em Deus!”.

Mas por que utilizar como brado de guerra o bordão de seu próprio algoz? Nos EUA, o termo nigger, inicialmente pejorativo, passou a ser utilizado como forma de identificação entre os cidadãos negros, enquanto, para os brancos, asiáticos e demais etnias, apenas o termo black é aceito. Da mesma forma, o termo freak passou a ser utilizado por desajustados em geral. É comum entre grupamentos sociais marginalizados se apropriar de termos de cunho pejorativo e reciclá-los na forma de epítetos de autorrepresentação.

A Diáspora do Ícone


Todos têm como totem o ícone de São Jorge, o “Santo Guerreiro” que, galopando seu alazão, subjuga a figura desprezível do Dragão. Estar “vestido com as roupas e as armas de Jorge” – um centurião romano, garoto propaganda do credo bélico de Roma – é motivo de orgulho. Mas vamos analisar mais atentamente esse hieróglifo da Igreja Romana.

Segundo a hagiografia (Ramo da História responsável por catalogar a vida de santos e beatos, além de suas virtudes supostamente “heroicas”1) da Igreja Católica Romana, São Jorge teria nascido na Lida – atualmente situada em Israel – e era soldado do exército do Imperador Diocleciano. Teria morrido na Nicomédia (hoje, Izmit na Turquia) e seus restos mortais transferidos para sua terra natal pelo Imperador Constantino que mandou construir uma igreja-mausoléu em sua homenagem. Considerado padroeiro de diversas cidades ao redor do mundo e padroeiro não oficial do Rio de Janeiro – título originalmente atribuído a São Sebastião – a figura mítica de São Jorge, no entanto, remete a períodos históricos anteriores ao cristianismo.

Uma Releitura de Belerofonte e a Quimera como um Mito de Coerção


A primeira manifestação iconográfica semelhante de que se tem notícia data do Livro Egípcio dos Mortos, onde uma figura desprovida de nomenclatura fere uma serpente com sua lança.


Na Índia, Krishna, subjuga a serpente antropomórfica Kaliya. Atentem para o fato de que Krishna, assim como São Jorge, subjuga Kaliya, seu próprio dragão, tendo um intermediário entre si e a besta. Todos os mitos que subjugam sua própria besta por intermédio da truculência possuem um intermédio, um anteparo; por vezes, um símbolo fálico. Do ponto de vista do gênero, o arquétipo Masculino, Positivo, “do bem” deve submeter o Feminino, Negativo, “do mal”. Do ponto de vista do Gênio Humano, este deve submeter o Instinto; a Razão deve ser superior à Emoção

Estes arquétipos são sempre representados  por um guerreiro, trajado em vestes bélicas, muitas vezes em uma montaria que lhe serve de veículo. O protótipo do tanque de guerra. O adversário é sempre representado como uma serpente ou figura reptílica; mas não em seu aspecto de autorrenovação, por mudar de pele, ou de abrangência, por seu corpo longilíneo poder envolver qualquer objeto em circunferência, inclusive o mundo, mas por seu aspecto rasteiro, baixo, ao revés, à mercê.

No antigo Egito, o deus Osíris trava uma batalha com Seth, a serpente do deserto, que o castra e esquarteja, lançando seus pedaços ao longo do Rio Nilo. Osíris representa o Sol, o aspecto masculino e viril. Seus pedaços são lançados ao longo do leito de um rio, sinuoso como qualquer serpente. Ísis, deusa da fertilidade, chora a morte de seu consorte e suas lágrimas se transformam em abelhas, não só porque polinizam flores mas porque, em seu voo, formam a gestalt (imagem, forma) de lemniscatas, o signo do infinito. Chamo de signo em vez de símbolo, devido à Lógica dos Signos e Símbolos, preconizada por C.S.Peirce e Ferdinand de Saussure .

Na mitologia grega o herói Belerophonte2, filho de Poseidon, cavalga um pégaso (cavalo alado) e subjuga a Quimera. O pégaso mesmo teria nascido da morte de Górgona por Perseu. Emergido do mar tal qual Afrodite após a castração de Urano por Cronos que atirou seu falo ao Oceano (também um Titã). Pégaso representa também um arquétipo feminino. Com sua ajuda,  Belerophonte pôde não só derrotar a Quimera, mas vencer as Amazonas. Zeus o nomeou “o portador do trovão e do raio”, o que faz Belerophonte próximo de Thor e Xangô, segundo o professor Junito de Souza, que também menciona que: “O simples cavalo figura tradicionalmente como a impetuosidade dos desejos.  Quando o ser humano faz corpo com o cavalo, torna-se um monstro, o Centauro, identificando-se com os instintos animalescos. O cavalo alado, muito pelo contrário, simboliza a inspiração criadora sublimada e sua elevação real.”

O cavalo de São Jorge não possui asas, não apenas para que a única figura inverossímil da imagem seja apenas o dragão, conferindo-lhe um ar de pouca credibilidade, e portanto demoníaco, mas também porque “São Jorge” é uma versão de Belerophonte castrado de sua subjetividade. Belerophonte significa Fonte de Poder. Mais tarde, acrescentou-se à lenda que São Jorge matara o Dragão em uma batalha na lua, plagiando a “cena” em que o herói grego sobe ao Olimpo.

Na mitologia Celta, Thor enfrenta Jormungand, a serpente que envolve o mundo. Na ilustração acima, tirada de uma história em quadrinhos, após sair muito maior de sua casca, Jormungand pode envolver o mundo, até seu focinho alcançar sua cauda, tal qual Ouroboros. Thor, assim como Belerophonte e seu pégaso, é o portador do trovão e do raio, simbolizados por seu martelo, Mjolnir.

A diferença é que, tanto Marduk3 quanto Shiva subjugam a famigerada Serpente através da Vontade, não pela coerção ou pela força bruta.


Na Índia, Shiva, o Destruidor (ou Transformador) possui a Serpente calmamente enroscada em torno de seu pescoço, enquanto Marduk jaz tranquilo tendo a seus pés a dócil Ti´âmat. Ti´âmat é a Deusa Dragão do Caos e das Trevas; o Abismo, as águas salgadas, mas da à luz o Mundo. Mistura-se à Apsu, as águas doces, e resgata sua completude, já que havia sido dividida nos rios Tigre e Eufrates pela lança de Marduk.

O mítico “São Jorge” é, na verdade, um plágio descarado de Belerophonte, montado num cavalo subjugando sua própria Quimera. O arquétipo do homem dominando a besta deu lugar a um mito de coerção. Não esqueçamos que a palavra “quimera” derivou para um adjetivo que designa sonhador, fantasista, sem fundamento, ilusório, utópico. Matar o sonho é castrar a subjetividade.

Transmídia Arquetípica: As versões pop do Mito


Mesmo nas formas mais sutis, o arquétipo de São Jorge e o Dragão está presente. A figura mais próxima ao ser humano possui sempre um aparato bélico enquanto sua besta particular se encontra sempre desprovida de armamento e o que faz dela um perigo é ela própria.

Muitas vezes, o herói não foi preparado para aquela missão, e seu dragão particular aparece como um deux ex machina em sua saga para confrontar-lhe de uma forma que nem o seu arqui -inimigo algum dia fez. Vamos aos casos mais conhecidos:

Ultraman x Godzilla


Ao atingir o contato uma entidade superior, um indivíduo se torna um robô de 50 metros de altura nas cores vermelho e cinza (as mesmas de São Jorge) para enfrentar criaturas gigantes e medonhas, verdadeiras quimeras híbridas de várias espécies, para formar um amálgama bestial. Não raro, tinham formas reptílicas. A mais famosa delas, embora não faça parte do universo de Ultraman é Godzilla, único personagem que connseguiu alcançar a hegemonia de protagonista personificando um dragão. Seu genérico Spectreman, em um episódio chega a enfrentar a Salamandra, que cuspia fogo. Precisa de mais?

Na foto acima, um confrade de Ultraman, Ultraseven.

Superman x Apocalypse


Todos reclamavam que o Super-Homem era um semideus e que não poderia jamais se dar mal pra valer em uma estória, o que fazia com que o personagem estivesse gradativamennte perdendo sua popularidade. Para por em xeque sua invulnerabilidade, sua editora, a DC Comics lançou mão de um deus ex machina para tirar o protagonista da mesmice. Assim, Doomsday, como é chamado nos EUA sai da terra, com  uma das mão atadas e é desce o braço no Super, literalmente com uma mão ns costas. O nome verdadeiro do Super-Homem não é Clark Kent, seu nome adotivo, mas Kal El. “El” vem do hebraico Aleph e Lamed e quer dizer “do Céu”, como seu correlato árabe “Al”, como em Alá, o Celestial.

Batman x Bane


Mesmo o soturno personagem, que nada tem de celestial possui um quê de São Jorge. Batman é possui um aparato bélico de ponta, embora não letal, pois, assim como Jorge, é um paladino da justiça. Mas o que ninguém esperava é que seu dragão não seria seu zênite Coringa, mas um brutamontes criado de última hora. Pensando bem, Bane personifica bem mais o dragão, pois sua força bruta o aproxima da imagem de besta. Cobaia de um anabolizante experimental por  ter sido condenado, ainda no ventre, por ser o filho homem de um rebelde revolucionário de uma ilha (!), Bane pode injetar o dito anabolizante (que tem o sugestivo nome de Veneno) a hora que bem entender, aumentando sua massa muscular consideravelmente e o imunizando contra a dor.

Spiderman x Lagarto


Quando o Dr. Curt Connors inventou sua fórmula reparadora, baseado em seu estudo com répteis e sua autotomia, para regenerar seu braço perdido, não sabia que isso o faria mudar para uma forma humanoide reptílica conhecida a partir de então como Lagarto. A metamorfose para um “dragão” se dá a partir de um médico, um doutor, enunciando a perda da Razão.

Homem-Aranha já tinha seu próprio dragão, mas merecia mais um. Devido a uma experiência com um organismo alienígena simbionte em outro planeta, Peter Parker acabou por trazer a criattura para a Terra e usá-la como uniforme. Após descobrir que não passava de um hospedeiro, Peter passa maus bocados para se livrar do organismo alienígena, que acaba clando com um inimigo de Peter, tornando-se a entidade conhecida como Venom.

Alien x Predador


ainda que ambos tenham traços reptilianos, a figura do Predador nos é mais humana: dois braços, duas mãos, domínio do polegar opositor, postura ereta, vestuário, linguagem articulada... já o Alien nos lembra vários bichos, sempre rastejantes, hora reptílicos, hora insectoides. Não possuem língua, cultura, roupas e se comportam como uma colmeia. É novamente a razão contra o instinto; a tecnologia contra a  natureza.

Mas o que isso tem a ver com o funk?


Tudo! O cristianismo, como religião patriarcal e consequentemente falocrática4 imprimiu na psique ocidental uma noção hierárquica vertical. O detentor do poder deve ostentar um cetro que representa seu poder coercivo, consequentemente castrador. Osíris, ao morrer no deserto, tem seu falo (pênis, para os marinheiros de primeira viagem) arrancado por seu invejoso irmão Seth, enquanto, na mitologia grega, Urano é castrado pelo titã Cronos por ter dado origem, com sua criatividade, ao universo.

Cronos – tempo – derivou para cronologia, crônica, etc. Seguindo a lógica do Tio Sam de que “tempo é dinheiro”, qualquer um que dedicar seu tempo útil à arte, ao sentimento e à contestação deve ser rapidamente subjugado.

Sob esse raciocínio, as cruzadas estupraram os povos não cristãos, saqueando seus domínios e apoderando-se de sua cultura (a exemplo de São Jorge); os EUA, com seu exército – os cruzados da Nova Era – massacram o Oriente Médio sob o pretexto de “Guerra ao Terror” e o BOPE ocupa as favelas cariocas. Tudo endossado pela mídia em reportagens tendenciosas e películas cinematográficas como “Tropa de Elite” e “Guerra ao Terror”. Todos caçando um monstro que só existe em seus sonhos.

Vale lembrar que a China alcançou o segundo PIB mundial tendo como ícone o famigerado Dragão; tão enaltecido por eles em suas festividades que em muito lembram o nosso “Bumba meu Boi”. Parafraseando Djavan: “São Jorge, por favor, liberte o Dragão!”.

NOTAS


1 - Hagiografia- Ramo da História responsável por catalogar a vida de santos e beatos, além de suas virtudes supostamente “heroicas”. É uma prática mais comum na Igreja Católica Romana, que a considera uma ramificação da História da Igreja.

O termo deriva do grego hagios, santo; e graphía, escrever. Originou-se por volta do século XVII, alegando ter como objetivo catalogar os diversos escritos a respeito dos santos. Autenticando textos não necessariamente históricos, acabou por repaginar deuses pagãos convertendo-os em ícones de devoção.

2 - Belerofonte, tal qual Caim, matou seu irmão. Daí o seu nome “aquele que matou Belero”, segundo algumas fontes. Após ter matado a Quimera sem dificuldade, tentou (tal qual Ícaro) voar ao Olimpo, “fato” que deu origem à lenda de São Jorge combatendo o Dragão na Lua, já que esta estaria no céu. No entanto, fora amaldiçoado por Zeus, que enviou uma vespa para que picasse o Pégaso. Atena tornou o chão macio mas Belerophonte, aleijado, passou o resto de seus dias coxo, peregrinando atrás de seu alazão alado.
(Fonte: Mitologia Grega, Volume I; Junito de Souza Brandão - Editora Vozes)

3 - Marduk – outro chauvinista convicto – dividiu ao meio Ti´âmat, a “Deusa Dragão do Caos e das Trevas”. De suas lágrimas surgiram os rios Eufrates e Tigre, e de seu corpo formou-se a humanidade. Esse “feito” marca a passagem do matriarcado para o patriarcado. De forma semelhante, Apolo matara Píton, ato do qual derivou o Oráculo de Delfos, que abrigaria as Pitonisas, primeiras Prostitutas Sagradas da Grécia Antiga, tão bem representadas no filme “300”.
(Fonte: Androginia, Rumo a uma Nova Teoria da Sexualidade; June Singer - Editora Cultrix)

4 - As Representações Fálicas de Poder

“O patrão ficou bolado
e fez uma reunião:
– quero todo mundo armado
lá no alto do morrão!
Fogueteiro, AR-15
o gerente de G3.
o vapor vem de pistola
eu vou falar só uma vez! –
Os soldados do meu bonde
vem de 762,
os olheiros, de traçante
o aviso é dois em dois.
O contexto, quando é sangue,
logo a gente reconhece.
Rebelde vem no comando
de AK 47.”

Os versos do funkeiro – neologismo híbrido do termo em inglês funk com o sufixo nominal -eiro – hoje em dia chamado MC após o advento do hip hop, narra um episódio comum no cotidiano das bocas de fumo cariocas. O cacique do ciberquilombo, gentilmente apelidado de “patrão” convoca um conclave entre seus guerreiros. O narrador personagem define a função hierárquica de cada um ao correlacionar a nomenclatura de seu posto à arma que porta. Detalhes como o tamanho da arma, poder de fogo ou mesmo suas especificidades dramatizam a importância do soldado para a trama, assim como os sushimen demonstram sua hierarquia por meio de facas de tamanho gradativamente maior, numa representação fálica de poder.
        

O Fogueteiro (que vigia e sinaliza a eventual entrada da polícia ou facção rival em sua comunidade) porta um fuzil AR-15, enquanto o Gerente, por ter um “cargo” de maior responsabilidade, porta uma arma de maior poderio bélico. O “Vapor”, aquele que vende a droga e desaparece ao menor sinal de perigo (daí seu epíteto) porta uma arma de menor porte. O líder porta um fuzil AK 47 – um ícone revolucionário – e responde, não por acaso, pela alcunha de Rebelde.

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