sábado, novembro 22, 2014

Da caridade ao cinismo do marketing social em "Quanto Vale ou é por Quilo?"

Desde a ideia do amor ao próximo transmitida por Jesus, a tragédia transformou-se em farsa: a caridade transformou-se em filantropia para, nos tempos cínicos atuais, finalmente se converter em marketing social. Esse é o tema do filme de Sérgio Bianchi “Quanto Vale ou é por Quilo?” (2005). Inspirando-se num conto de Machado de Assis e em processos judiciais do século XVIII disponíveis no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, Bianchi faz de uma narrativa que mistura sarcasmo e drama um flagrante de como a “escravidão moderna” perpetua as formas coloniais de dominação através do chamado Terceiro Setor com suas ONGs. Partindo do mito da exclusão e marginalidade, o marketing social esquece de que a miséria já está há muito tempo integrada: como oportunidade de lucro, lavagem de dinheiro e formas irregulares de captação de dinheiro público.

Misericórdia, compaixão, amor ao próximo e o perdão foram os valores civilizatórios trazidos pela ética e moralidade cristã. As epístolas do Novo Testamento descrevem como Jesus queria que o ódio e a indiferença fossem substituídos pelos “amar o próximo como a si mesmo”, forma de Deus permanecer em nós.

Depois disso, a caridade passou a ser considerada obra piedosa onde o autor abdicaria de toda a sua vaidade. O anonimato é o valor máximo por ser o ato da caridade uma descoberta íntima de Deus. As hospedarias para peregrinos de Santo Agostinho e o hospital para vítimas da fome e epidemia em Constantinopla de São João Crisóstomo na Idade Média foram exemplos do ascetismo como impulso voltado para o interior de si mesmo.

Tudo muda em meados do século XVIII quando a caridade se transforma em filantropia, entendida como a caridade cristã laicizada: “fazer o bem” deixa de ser uma virtude cristã para ser uma virtude social.



Por trás dessa transformação estava o chamado ascetismo mundano, conceito derivado da ética protestante. Na ética protestante há um componente mundano no ascetismo pela necessidade de demonstrar não somente a Deus mas aos outros a renúncia e sacrifício do indivíduo como forma de provar a todos ser um merecedor das graças divinas. Por isso, a filantropia passa a ser um gesto de utilidade e tem na publicidade a sua maior arma: a busca da visibilidade que só acirra a rivalidade entre os benfeitores.

Mas na atualidade descobriu-se que a filantropia pode ir além de meramente atribuir ao doador prestígio e alívio social. Nos tempos pós-modernos ou neoliberais atuais, descobriu-se que também  pode dar lucro ao se integrar ao fluxo dos negócios. É quando a filantropia se converte em marketing social.

O Filme


Esse é o tema da obra ácida do cineasta paranaense Sérgio Bianchi Quanto Vale ou É por Quilo? Para o diretor, por trás da rotina nacional se esconderia uma hipocrisia que esconde a dominação e a opressão das pequenas humilhações cotidianas - veja abaixo o filme completo.

O filme foi livremente baseado no conto de Machado de Assis Pai contra Mãe e nos textos do historiador Nireu Cavalcanti sobre processos judiciais do século XVIII, disponíveis no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro.

Bianchi quer nos mostrar como o sistema perversamente irônico do regime escravista é hoje reencenado no Brasil do século XXI através de uma “escravidão moderna” reeditada pela proliferação do chamado Terceiro Setor: ONGs que assessoram grandes empresas que descobriram que a filantropia pode ser profissionalizada e trazer lucros.

Bianchi retorna dessa forma à ironia machadiana ao indicar que até mesmo em atividades aparentemente virtuosas e idôneas porde haver lucros e vantagens pessoais em cima da miséria dos despossuídos. O insólito dessa situação residiria na possibilidade de lucro e sobrevivência de diversas ONGs por meio de falsas licitações públicas, lavagem de dinheiro de caixa 2 de empresas em cima do mal que deveriam combater: a pobreza.

O filme começa no século XVIII quando senhores atrelavam ao custo da liberdade de seus escravos a um juros crescente ao ano. Por trás da aparente boa vontade se escondia um negócio bem lucrativo. Bianchi faz um paralelo com os tempos atuais quando uma ONG fictícia (a Stiner Empreendimentos Sociais) superfatura a doação de computadores ultrapassados para uma escola pública em uma favela.

Brasil é cronicamente inviável?


Mantendo a tese de que o Brasil sofre de um mal social crônico e que condena o País ao imobilismo, ideia presente em sua obra anterior Cronicamente Inviável (2002), Bianchi faz uma narrativa que constantemente remete ao passado escravista com sarcasmo e tragédia.

Herson Capri e Caco Ciocler são os diretores da ONG chamada Stiner que presta assessoria em marketing social a grandes empresas. Ao mesmo tempo em que a ONG ensina o caminho das pedras para captar recursos públicos e dar à miséria uma aparência mercadológica de otimismo, esperança e vitória (nenhuma empresa quer associar sua imagem à dor e derrota), a Stiner enriquece por meio do projeto de “Inclusão Digital” com superfaturamentos em cima de verbas públicas e a transformação de uma pobre faxineira em laranja dos seus negócios.


Quanto Vale ou é por Quilo? acerta ao mostrar o quanto os chamados “marginalizados” ou “excluídos” são na verdade integrados e funcionais a reprodução do sistema econômico. Desde o livro clássico O Mito da Marginalidade (Paz e Terra, 1981) da pesquisadora brasilianista Janice Perlman demonstrou em pesquisas empíricas feitas em favela no Rio de Janeiro, como os favelados são funcionais ao sistema desde como reserva de mão de obra barata, garantia de emprego de assistentes sociais, sociólogos e urbanistas até culturalmente como insumos vitais à cultura pop de classe média com suas gírias, música, comidas etc. – veja o caso do fenômeno atual da “simplicidade descolada” ou dos “coxinhas 2.0” – sobre isso clique aqui.

Tragédia e Farsa


Porém, Bianchi passa por cima de um detalhe importante: ao querer provar a sua tese do imobilismo cultural brasileiro, deixa de perceber uma sutil ironia – se no passado colonial a dominação e escravidão foram vividos como tragédia, na atualidade tudo é reencenado como farsa.

A história do capitão do mato que recupera uma escrava grávida fugitiva para garantir a permanência do seu filho e a paz da sua família foi uma tragédia brasileira de um passado onde a violência era escancarada, explícita em um cotidiano violento: a religião era um mero conforto para anestesiar a indignidade.

Hoje a escravidão é cínica e repetida como farsa. Depois da era neoliberal dos tempos de FHC e o sucateamento do Estado que entrega para o Terceiro Setor (que vive de projetos falidos que captam rapidamente verbas públicas para contabilizar a pobreza como negócio) o gerenciamento das mazelas sociais, a velha filantropia tornou-se marketing social: a pobreza dos derrotados da meritocracia se transforma em estímulo mercadológico da esperança.

Rostos de crianças miseráveis sorridentes na “inclusão digital” dos vídeos publicitários da Stiner são agora artifícios friamente calculados para a produção deliberada de efeitos – lucro e eliminação da má consciência.

Numa linguagem de fazer a inveja à “novilíngua” do livro 1984 do George Orwell, agora a miséria e escravidão deixam de ser tragédia para virar oportunidade, otimismo e esperança. Numa compulsão contemporânea pela reciclagem universal de todos os “excrementos” produzidos pela sociedade – lixo, esgoto, embalagens, pets etc. – os pobres também são “incluídos”: sua miséria é agora reciclada como insumo de otimismo e esperança midiática, enquanto produz lucro e vantagens econômicas para amplos setores empresariais.

Por isso, um dos finais imaginados para o filme por Bianchi era um governo presidido por Lula onde o Brasil se tornaria o maior exportador de pobres para o mundo e o seu modelo de marketing social copiado por todo o planeta. Segundo um dos roteiristas, Eduardo Benaim, a falta de recursos e a impossibilidade técnica de filmar a ideia conduziram a um outro final, igualmente poderoso e inspirado no conto de Machado de Assis.

Mas a última década não comprovaria esse final anteriormente imaginado pelos roteiristas: afinal, os pobres estão sendo integrados na chamada “nova classe C” e na sociedade popular de consumo. Hoje, o “marketing social” está dando lugar a um outro modismo do cinismo corporativo: o discurso da “sustentabilidade”, novamente com inúmeras ONGs dando assessoria.


Ficha Técnica


Título: Quanto Vale ou é por Quilo?
Diretor: Sérgio Bianchi
Roteiro: Sérgio Bianchi, Nilton Canito, Sabrina Anzuapegui e Eduardo Benain
Elenco: Herson Capri, Caco Ciocler, Silvio Guindane, Lázaro Ramos, Cláudia Mello, Antonio Abujamra, Caio Blat
Produção: Agravo Produções Cinematográficas
Distribuição: Elo Audiovisual (DVD)
Ano: 2005
País: Brasil




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