O esperado duelo
entre os filmes "Gravidade" e "12 Anos de Escravidão" na categoria Melhor Filme
acabou se confirmado na 86o Cerimônia do Oscar. O prêmio da
categoria acabou confirmando uma recorrência observada pelo menos desde 2010: além
do fato que a Academia parecer não gostar muito de premiar filmes em 3D,
percebe-se que filmes de História sempre vencem. Como explicar esse padrão?
Talvez começando por uma curiosa sincronicidade que envolve a comediante Ellen
DeGeneres e Hollywood: ela sempre é convidada a apresentar cerimônias um ano
após grandes tragédias nacionais. Talvez aí encontremos uma conexão ideológica
entre os filmes-catástrofe, os chamados filmes históricos e o atual quadro
econômico mundial recessivo.
Desde o primeiro
cinema se estabeleceu a oposição entre ficção e realidade, ilusão versus
documentário: de um lado os irmãos Lumiére que acreditavam que a verdadeira
natureza da câmera era documental; do outro lado o ilusionismo das trucagens,
cortes e sobreposições das imagens do ex-mágico Méliés que acreditava que a
essência do cinema era ficcional. De um lado o realismo documental das imagens da
saída de operários no final de um dia de trabalho captadas pelos Lumiére; e do
outro, os efeitos mágicos da primeira viagem à Lua criados por Méliès.
Não é à toa que os
primeiros gêneros populares no primeiro cinema fossem tão opostos: o fervor
religioso dos filmes sobre a paixão de Cristo versus prazer voyeurístico das
primeiras imagens pornográficas. Ficção e não-ficção, ilusão versus realidade e
formalismo versus realismo foram oposições que a história do cinema acabou
criando, ajudando a construir uma forma de entretenimento não totalmente “irreal”,
mas carregado de verossimilhança e plausibilidade. Uma forma de entretenimento
que divertiria, mas, ao mesmo tempo, seria capaz de dizer “verdades”.
Ellen DeGeneres: curiosa relação sincrônica com Hollywood |
O prêmio de Melhor
Filme para 12 Anos de Escravidão no
Oscar 2014 parece confirmar essa estratégia de Hollywood dos últimos anos em
premiar a História e um suposto realismo no interior da indústria do
entretenimento.
Pois então
vejamos: o que teriam em comum Avatar
versus Guerra ao Terror (2010), O Discurso do Rei versus Cisne Negro (2011), Hugo versus O Artista
(2012), Aventuras de Pi versus Argo (2013) e Gravidade versus 12 Anos de Escravidão
(2014)? Além do fato que a Academia não gostar muito de premiar filmes em 3D,
percebe-se a recorrência onde filmes de História sempre vencem. E nesse ano, a
lógica dos últimos anos confirmou-se: um filme sobre a pior chaga da história
recente da civilização venceu a ficção científica.
Isso sem falar de
uma curiosa coincidência histórica: Ellen DeGeneres, convidada esse ano para
apresentar a cerimônia do Oscar, sempre recebe o convite de Hollywood um ano
depois de grandes tragédias: apresentou o Emmy depois dos atentados ao WTC em
2001 e apresentou o Oscar um ano depois da devastação em New Orleans pelo
furacão Katrina. E agora apresentou o Oscar 2014 quase um ano depois do
atentado da Maratona de Boston em 2013 – e, dizem as más línguas, um ano depois
da “trágica” performance da apresentação da cerimônia por Seth MacFarlane,
criador da animação The Family Guy, série
indiretamente envolvida nos incidentes de Boston por um suposto episódio que
passou a circular na Internet onde teria previsto o atentado...
O dilema ficção X História
Sincronicidades e
coincidências sincromísticas à parte, é significativa tal recorrência em
privilegiar no Oscar de Melhor Filme produções com temáticas históricas. Mais
do que isso, é também significativo as decisões ficarem no dilema entre um
filme “ficcional” versus um filme “histórico”.
James Carville: "É a Economia, estúpido!" é a pista |
Desde o início da
cerimônia a bola já estava sendo levantada quando Ellen DeGeneres fez uma
referência a principal batalha que seria travada naquela noite (Gravidade versus 12 Anos de Escravidão): “Há duas possibilidades nesse ano. Primeira
possibilidade, que 12 Anos de Escravidão ganhe o Oscar de Melhor Filme. Segunda
possibilidade, vocês todos são racistas!”.
Por que essa
recorrência nos últimos anos em reencenar essa batalha entre ficção e história?
Como afirmamos em postagem anterior, “É a Economia, estúpido!”. Nada mais atual
do que essa frase dita por James Carville para explicar a campanha bem sucedida
de Bill Clinton. Vamos seguir essa pista.
Filmes-catástrofe X filmes históricos
Sabemos que desde
2008 a economia internacional está mergulhada em uma crise econômica, primeiro
motivada pela explosão da bolha do mercado imobiliário nos EUA e depois o
derretimento econômico da Zona do Euro.
Como já observamos
em outra oportunidade, é notório como Hollywood age ideologicamente em momentos
de crise: molda o imaginário social por meio de uma tática de
deslocamento, transformando em “objeto fóbico” tudo aquilo que nos causa medo e
repulsa. Historicamente, sempre em momentos de crise Hollywood incrementa a
produção de filmes-catástrofe criando o seguinte efeito ideológico: a
naturalização das crises por meio dos cataclismos geológicos ou cósmicos
ficcionais e a criação de uma fobia ou medo coletivo por qualquer aspiração por
mudança – sobre esse tema clique
aqui.
Produção de filmes-catástrofe é o objetivo atual de Hollywood |
Desde 2008
experimentamos uma nova onda de filmes-catástrofes como “Cloverfield
– Monstro” (2008), “Fim dos Tempos” (2008), “A Estrada” (2009), “2012” (2009),
“A Epidemia” (2010) etc. E a onda de filmes continua na década de 2010 como
reflexo da demora da retomada da economia mundial: “Invasão do Mundo: a batalha
de Los Angeles” (2011), “Ataque ao Prédio” (2011), O Impossível (2012) culminando
com a onda pop da previsão Maia do fim do mundo e as previsões esotéricas da
proximidade do planeta Nibiru que produziria, simultaneamente, caos e
renovação.
Mas esse trabalho
ideológico não é fácil. Não é meramente criar fantasias, ilusões com muitos
efeitos especiais em CGI, 3D, Imax etc. Elas precisam ser críveis, plausíveis,
verossímeis para que o espectador suspenda sua incredulidade pelo menos durante
duas horas no cinema ou no home theater.
O pesquisador
Niklas Luhmann no seu livro A Realidade
dos Meios de Comunicação (Paulus, 2005) nos fornece importantes chaves de
compreensão dentro do campo teórico da teoria geral dos sistemas. Luhmann parte
de uma interessante tese sobre o entretenimento midiático: para que ele
funcione, o sistema midiático não pode ser meramente ficcional, embora, como
sistema, ela se torne autoreferencial e cego ao mundo exterior: o mundo externo
somente é representado a partir de uma descrição que o sistema faz de si mesmo.
Em termos mais
diretos: o entretenimento sistemicamente só pode funcionar se for colocado
dentro da oposição informação/não-informação. A cada conjunto de filmes-catástrofe,
Hollywood não só deve produzir, mas premiar filmes “históricos” – que na
verdade confirmam a tese de Luhumann ao interpretarem a realidade histórica de
acordo com os princípios que o sistema descreve a si mesmo (individualismo,
heroísmo, empreendedorismo, livre iniciativa, etc., tudo isso valorizado como
virtudes da liberdade). Afinal, é em nome de tudo isso que os EUA se acham
possuidores de um “destino manifesto” em intervir em qualquer lugar do mundo
onde tais valores estejam “ameaçados”.
Filme histórico traz verossimilhança ao entretenimento
O filme “histórico”
será aquele que sistemicamente trará verossimilhança a todo o conjunto de
filmes do gênero catástrofe, o verdadeiro objetivo de Hollywood. Filmes como 12 Anos de Escravidão, Argo, Lincoln, O Discurso do Rei
etc. servem para criar uma ficção referencial ao cinema, resgatar a vocação
realista de os irmãos Lumière acreditavam, para que o lado Méliès do cinema
ganhe a força da sedução. Os filmes sobre a “realidade” alimentam a ilusão de
que o cinema pode ser realista e documental (desmentida pela sua própria
natureza de edição e de ilusão ótica do próprio dispositivo de projeção) para
que a ficção e o entretenimento consigam suspender a incredulidade do
espectador.
Não foi à toa que
o Oscar 2014 prestou uma homenagem aos heróis e Ellen DeGeneres afirmou que “o
mundo está precisando deles” para depois apresentar um vídeo com trechos de
filmes como Milk, Jogos Vorazes, Ghostbusters, Ali, A Lista de Schindler etc. onde ficção e
realidade se fundem na promoção do herói, arquétipo fundamental do
entretenimento hollywoodiano.
Se essa hipótese
for verdadeira e a crise econômica internacional se desdobrar ainda mais seja em
recessão ou guerras, mais filmes “históricos” serão produzidos para, mais uma
vez no próximo ano, o duelo imaginário entre ficção e realidade ser travado no
Oscar de Melhor Filme.
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